Já perto eu sentia o cheiro de morte. Não era como se esse estado tão insubjetivo tivesse um cheiro em específico. É só eu chegar perto do cemitério que eu começo a sentir o cheiro de cimento e algumas flores morrendo misturadas. Em acréscimo, acabou de garoar, então o cheiro de terra molhada nevoa sob o local aberto.
Saindo do meu carro, deixo o guarda chuva e pego a vela com o vinho e um isqueiro que estava no carro, acho que não vou me molhar tanto. Fecho a porta do carro, tranco o carro e ponho as chaves no bolso. Talvez eu não devesse ter escolhido uma roupa tão formal para só uma visita e o meu ritual. Esse terno preto com essa gravata listrada-azul me destaca do resto do povo triste com um enterro de alguém.
Andando em direção ao túmulo, naquele corredor de outros mais, desviando de poças de água, percebo que faz algum tempo que não venho aqui. Eu deveria vir mais vezes ver ele? Faz sentido eu estar aqui hoje? Será que o que eu estou fazendo é inútil? Por que será que ela não fala comigo mais? Logo eu lembro... Calma Gael Sant’Ana, você sempre faz isso. Hoje é pra honrar a pessoa que você amou e não está mais entre nós.
Chegando a mo túmulo, ponho a vela e a garrafa de vinho branco que amávamos sob o mármore negro que a família fez questão de pagar mais caro por ser o que sempre sonhou. Meio estranho um suicida viver sonhando com como quer que seu funeral seja. Mas ok, ansiedade já é o suficiente pra ti Gael. Não vá questionar a doença mental dos outros.
Desrosqueio a garrafa. Acendo a vela aromatizada pra tentar me esquecer do cheiro de morte. Junto minhas mãos. Penso nele. Lembro-me do seu sorriso, do seu jeito de rir. Lembro-me do abraço quente, do sentimento de segurança. E por fim, pra desonrar a lágrima que escorria sobre minha bochecha, lembro-me de nossas transas.
Enxugo meus olhos com a manga do meu terno, pego a garrafa, e antes de tomar o primeiro gole pra voltar a chorar eu escuto:
_EIIII!!! Me espera, vou querer também.
A início que me perguntei: “Quem é essa doida?”. Mas depois de ver o, sobretudo cinza o salto plataforma e a bolsa marrom combinando com os pés, me lembrei. Era Núbia. Nem sei por que corria com aqueles sapatos.
_Por que cê tá aqui só? – Ela perguntou.
_Por que você está aqui? – Retruquei. Ela realmente achava isso.
_Você gostava de mim, o que rolou?
_Ele morreu. – Apontei para o bloco revestido de placas de mármore. – E junto com ele minhas esperanças de felicidade.
_ Deixe de drama e me dá o vinho aí.
Ela se sentou em cima do tumulo dele e ergueu a mão. Eu dei um gole rápido e entreguei a ela. Em pé ainda, abri o paletó e me sentei à frente dela em um túmulo de granito amarelado.
_Como sabia que eu estaria aqui hoje?
_Não sabia, estava naquele enterro ali da frente. Era de um primo na minha mãe que eu nunca conheci, e tudo o que eu queria era um pouco de álcool. Quando vi você pensei em esperar a missa depois que o fechamento do caixão terminar. Mas quando vi essa garrafa na sua mão, e eu sabendo do que era, esperei todo mundo fechar os olhar na ultima oração pra sair de fininho e vim correndo.
Ao terminar sua pequena história, Núbia começou a dar grandes goles na garrafa do meu vinho.
_Então você só veio roubar meu vinho e minha solidão?
_Se tu entregou ele na minha mão não é roubar. Agora toma uns gole tu também pra gente parar de brigar. Ele não ia gostar. - Erguendo a garrafa na minha direção, virou seu rosto para a placa com a foto e o nome dele. – Mathias Vasconcelos, 1994-2019. Essa foto ficou bonita não? – A animação de antes morreu nessa frase.
_Ele sempre foi bonito. Só tinha foto em festas e bem arrumado. Essa foi a mais normal que conseguiram achar pra colocar aqui. – Estava ela lá com um sorriso confiante, uma cabelo quase que arrumado, uma camiseta vermelha e acho que um jeans de calça, a foto estava de cima para baixo com a Núbia quase visível no fundo.
_Eu estava com ele esse dia, pedi pra ele tirar essa selfie pra mostrar pra minha mãe, acho que acharam no celular dele depois de tudo.
_É você ali no fundo da foto?
_Deu pra perceber? Me borraram legal...
_Achei uma lástima nem me chamarem para o funeral ou o enterro. Mas faz sentido pra religiosidade deles eu que fui responsável. É bom que nem citem o meu nome mesmo.
_Óbvio que a culpa não foi sua, eu culparia os otários dos pais dele. Mas o tempo todo, a culpa foi dele. Se fosse assim eu também tinha culpa.
_Lembras-te daquele fatídico dia? Ou melhor, de quando tudo começou? Porque eu estava muito bêbado.
_Eu lembro um pouco. Tava bêbada também. Foi assim:
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