Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.
Pelo estrondo e a força do impacto, Gaspard entendeu que a explosão não tinha sido perto o suficiente para feri-lo ou ferir Mylène. As pessoas à sua volta, civis em sua maioria, entretanto, não compreendiam isso; os horrores da Guerra do Leste nunca chegaram à capital. Gritos, choros, palavras de desespero tomaram seus ouvidos.
Estariam em guerra novamente?
Como capitão, estava ciente de que deveria agir, e agir rápido. Avisar quem estivesse por perto para proteger a cabeça — apesar de não acreditar que nenhum projétil pudesse atingi-los, Gaspard não arriscaria a vida de nenhum cidadão sabendo que existia essa possibilidade —, orientar essas pessoas a buscarem um abrigo o mais distante possível da explosão e tentar descobrir o que havia acontecido. Mas antes de tudo, seu principal dever como noivo de Mylène era conduzi-la a um local seguro.
Mesmo tendo consciência do que precisava fazer, os lábios da Romaine proferindo o nome de Marianne o paralisaram por alguns segundos. Só havia uma linhagem em toda Chambeaux que concebia descendentes de olhos cinzentos — pelo menos entre a nobreza. Era a dele, os Orléans. Quer dizer, Gaspard até encontrara registros de olhos parecidos com os seus, mas apenas numa ilha gélida para lá de Kremlim durante uma de suas missões. Também investigou em sua juventude por toda a capital algum bastardo de seus parentes para confirmar essa peculiaridade da família, mas a busca não resultara em nada.
Poderiam existir outras pessoas, quem sabe até outros parentes em outras regiões do país, mas tinha a certeza de que a Romaine falava de sua irmã desaparecida. Quantas mulheres chamadas Marianne teriam essa característica tão específica de sua família? Só podia ser ela.
Marianne.
Ouvir o seu nome em voz alta parecia ter lhe acordado de um feitiço, libertando anos de memórias da infância que havia deixado de lado porque parecia se afogar todas as vezes que pensava nelas.
Ambos de mãos dadas no velório do irmão do meio, Martin, que já nascera com um problema nos pulmões. Gaspard tinha cinco anos e a irmã, dez. Marianne apertara sua mão um pouco mais forte, um lembrete de que não podiam chorar na frente das pessoas que enchiam a sala abafada e rodeavam o caixão do irmão.
Ao piscar, Gaspard voltou ao presente e a dançarina não estava mais à sua frente. Aonde fora? Precisava encontrá-la, precisava entender o que ela sabia sobre Marianne.
— Gaspard? Está tudo bem? — Mylène perguntou.
Ele assentiu, mas demorou para reagir.
As lembranças vinham em ondas e Gaspard não conseguia recuperar o fôlego.
Dois anos após o velório. Marianne e Gaspard corriam pelo jardim, em plena chuva de verão. A mãe lhes deu um baita sermão depois, principalmente porque ambos ficaram doentes. Na próxima chuva estavam lá os dois, mais uma vez, pulando nas poças ao som de suas gargalhadas, mas agora estavam espertos: entraram em casa na ponta dos pés, se enxugando escondidos para não levarem uma outra bronca.
— CUBRAM SUAS CABEÇAS E PROCUREM ABRIGO! — uma voz que parecia a sua gritava ao fundo.
Mais um ano se passara. Agora ele e Marianne estavam na biblioteca. A irmã exibia uma expressão taciturna, enquanto fingia ler algo. Pelo que ouvira dos criados, os pais a haviam proibido de manter uma amizade com Adele, a filha mais nova do visconde Curriel, com quem Marianne estava passando bastante tempo nos últimos dias. Sua irmã parecia muito triste e Gaspard nunca gostou de vê-la daquela maneira, então precisava animá-la. Queria perguntar o que havia acontecido entre as famílias para aquela decisão tão abrupta, mas tinha medo de magoá-la ainda mais. Devia ser uma situação difícil, Gaspard nem sabia o que faria se não pudesse falar mais com Marianne, que era sua melhor amiga. Então, em vez de conversar, ele se aproximou timidamente com seu tabuleiro de damas. Ela sorriu de leve, fez um sinal para que ele se sentasse com ela e jogaram a tarde toda. Marianne terminou aquele dia com um sorriso no rosto.
Era uma memória preciosa, mas Gaspard não poderia se prender às memórias do passado. Precisava assegurar que Mylène estaria a salvo. Não podia se dar ao luxo de perder mais nada. Pegou a mão da noiva e começou a levá-la para a carruagem.
Pelo menos era o que ele pensava estar fazendo.
Gaspard havia se divertido muito na primeira vez que ele e Marianne foram ao festival da primavera. Ela ainda estava bastante chateada por não poder ver Adele, então ver a irmã sorrindo de verdade era um bálsamo para a sua alma.
Mas o festival da sua memória não se parecia em nada com a cena que presenciava naquele momento. E, apesar de ter gritado mais uma vez para que as pessoas procurassem por abrigo, ninguém parecia ter lhe dado atenção. O que ele estava fazendo? Precisava deixar Mylène na carruagem, os guardas de plantão que cuidassem dos outros. Segurou as mãos da noiva e percorreu pelas ruas do centro da Capital que conhecia tão bem.
Porém as memórias não o deixavam em paz. Quando tinha dez anos, e Marianne quinze, foram mais uma vez ao festival depois de implorarem muito aos pais. Entretanto, Gaspard estava chateado porque queria ver todas as barracas, enquanto a irmã insistia que eles ficassem perto de um palco. Quantas vezes eles repetiram o diálogo?
— Vamos, Marianne! — ele pestanejara.
—Só mais essa apresentação, pode ser? Eu prometo que depois a gente vai ver as barracas.
— Gaspard, para onde estamos indo? — Mylène perguntou, sua voz distante.
O pequeno Gaspard acordara de madrugada por conta do calor. Ele se levantou da cama, ficando na ponta dos pés para abrir a janela. Ao fazê-lo, percebeu um vulto correndo e entrando por uma passagem da cerca viva. Não havia dúvidas que o vulto era de sua irmã. Ficou preocupado, mas resolveu não contar nada aos pais ou empregados. Até porque fazia dias que Marianne não saía do quarto, chateada pela proibição de não poderem ir ao festival daquele ano. Então, aquela escapada significava que ela estava se sentindo melhor, não é mesmo?
— Gaspard!
Marianne estava mais uma vez trancada em seu quarto. Seu choro era alto e Gaspard podia ouvi-lo do lado de fora da porta. Gostaria de entrar para consolá-la, mas a governanta apareceu e o mandou voltar para as práticas de piano. Aquilo não era assunto para ele e embora quisesse perguntar, era um garoto obediente. Voltou a tocar como se nada estivesse acontecendo.
Porém a melodia que chegou aos seus ouvidos foi a do desespero de quem estava à sua volta. Gritos, lamúrias, medo de uma nova guerra; tudo misturado. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo.
A última vez que vira Marianne parecia mais real do que o centro da cidade em que estava. Ele acordara assustado com a irmã o balançando com cuidado, aninhando-o em seu colo como se ele ainda fosse uma criança pequena. Seu semblante estava radiante pela primeira vez em tempos. Ela sorriu, olhou para ele e disse:
— GASPARD! — a voz de Mylène o transportou de vez para o presente. Foi naquela hora que ele percebeu que o lado esquerdo da face estava dolorido. — Gaspard, está me ouvindo?
— Sim… você está bem? — Perguntou automaticamente, massageando a bochecha.
— Desculpe pelo tapa, foi a única maneira que encontrei para chamar a sua atenção! E agora quer saber se eu estou bem? — Mylène perguntou, rindo num misto de sarcasmo e incredulidade. — É você que estava me puxando pelas ruas sem rumo, sem prestar atenção nenhuma. Estou preocupada com você, isso sim.
— Por que preocupada? — ele indagou, olhando para os lados, sem encará-la. Sentia como se tivessem virado seu coração do avesso e não queria responder as perguntas que Mylène sem dúvida faria.
— Olhe para mim, Gaspard — Sua noiva lhe ordenou.
Ele seguiu a ordem de Mylène quase por reflexo, sem entender direito o que ela queria. Os arredores pareciam seguros o suficiente.
— O que está acontecendo? O que você está fazendo? — Questionou Gaspard.
— Continue olhando.
Ele o fez. Mylène franziu a testa, encarando-o de forma quase engraçada e ele levantou uma sobrancelha. Ela colocou as mãos na cintura e pareceu satisfeita com o que vira.
— Certo, agora você realmente parece melhor. Seus olhos perderam o foco completamente agora pouco. Fiquei te chamando, mas você não me ouvia. O que houve? Foi o barulho da explosão? Já li casos na literatura que relatam esse tipo de reação em soldados que voltaram da guerra.
— Eu… — Gaspard estava pasmo com a informação porque ele, como soldado, nunca tinha ouvido falar disso. Entretanto, aquele não era o momento para discutir sobre aquilo. Aquele não era o momento para discutir qualquer coisa. — Eu estou bem agora. Foi um lapso, já passou.
— Um lapso? — Mylène repetiu, descrente. Então se aproximou e abaixou a voz, apoiando uma mão no ombro de Gaspard. — Que tal se passarmos rapidamente no Refúgio? Poderei te examinar direito!
Na maior parte do tempo, Gaspard admirava bastante a curiosidade de sua noiva — ela apreciava conhecimento além de tudo, e mesmo com as limitações que lhe eram impostas, dava seu jeito de aprender. O Refúgio era um dos lugares que ela havia encontrado para alimentar sua sede por saber e, embora ele só soubesse dos detalhes por cima, sabia que era um local bem equipado para receber enfermos de todos os tipos.
Mas ele não estava doente, não precisava de tratamento e naquele momento a última coisa que queria era despertar a curiosidade de Mylène.
— Não há necessidade disso, Mylène. — Ele faz um gesto vago. — Precisamos sair daqui. Garanto que não foi nada grave…
— Você não sabe se foi "nada grave"! Pode ter sido uma confusão mental causada pelo estrondo, mas também pode ter sido um derrame! — Mylène gritou, mas ninguém fora o próprio Gaspard a ouvira porque muitos à sua volta também estavam gritando. — Precisamos sair daqui sim, mas vamos devagar, OK? Porque se for algo no seu cérebro, quanto menos esforço fizer, melhor.
— OK. Vamos devagar — Gaspard respondeu da boca para fora, para que a noiva não se preocupasse mais.
A resposta pareceu agradar Mylène, para seu alívio. Os dois deram as mãos e saíram a passos largos em direção à carruagem.
Agora mais calmo, Gaspard os guiou pelo mesmo caminho pelo qual haviam passado mais cedo. Os aromas e a alegria Romaine haviam sido substituídos por um cenário um tanto desolador. No chão, objetos de todos os tipos haviam sido deixados para trás. De um lado para outro, alguns Romaines e Beaus se misturavam com semblantes perdidos, enquanto recolhiam o que conseguia de seus pertences e mercadorias.
[Continua na Parte 2]
Comments (0)
See all