[Continuação da Parte 1]
Provavelmente o segundo dia do festival da primavera não aconteceria mais naquele ano.
Gaspard gostaria de apoiá-los (apesar de sua má vontade com os Romaines) de alguma forma, assegurar como capitão do exército que estava tudo bem, que se tivesse sido algum ataque inimigo ele não pararia somente com uma explosão. Porém, a segurança de Mylène continuava sendo a sua prioridade.
Andaram mais um pouco. Logo estariam perto da carruagem e finalmente ele poderia parar e pensar com mais clareza em tudo que havia acontecido. Uma leve dor de cabeça começou a se formar em suas têmporas, fazendo com que ele se perguntasse por um instante se Mylène realmente tinha razão e ele estava tendo um derrame.
— Capitão Orléans! — alguém o chamou de repente, fazendo com que Mylène e Gaspard parassem onde estavam. — Alferes Renaud se apresentando, senhor. Venho em ordem do general Nord.
Algumas vezes era irritante ter uma aparência tão distinta dos outros Beaus, porque era muito fácil identificá-lo na multidão. Gaspard não questionava mais nada disso, mas demorou um pouco para entender como o general soubera que ele estava no festival de primavera. Então se lembrou do plano de exibição com a noiva e, com a velocidade que as fofocas corriam pela capital, o general devia saber não só onde ele estivera com Mylène, como até partes de suas conversas.
— O que o general deseja, alferes? Tem relação com a explosão que acaba de acontecer?
— Sim, senhor. Poderíamos conversar pelo caminho? — o alferes então olhou em direção de Mylène, desconfortável.
Gaspard arqueou a sobrancelha em desafio. O alferes teria a audácia de pedir para que ele dispensasse a noiva?
O homem limpou a garganta e se aproximou, desviando o olhar.
— Certo. Ao que tudo indica que… — Ele hesitou. — A nossa fonte finalmente cometeu um erro ao tentar atacar a Maison d'Argent. Sua presença no local é requisitada.
Gaspard quase não acreditou no que acabara de ouvir. As pistas do seu departamento o levaram à divisa sudeste com Sálaga e agora De la Source havia tentado atacar a Casa da Moeda. Havia algum conflito nas informações que chegavam até eles e precisariam rever as investigações.
E aquela definitivamente não era a melhor hora para isso.
— Pois bem, preciso apenas conduzir minha noiva até a carruagem e garantir que ela estará em segurança. Não devo demorar. Espere-me aqui.
— Sim, senhor! — o alferes afirmou, batendo continência.
Gaspard e Mylène voltaram a andar em passos rápidos. Ao virar a esquina, longe dos olhares de Renaud, os dois pararam. Como já era esperado por ele, Mylène estava furiosa.
— Volte lá e invente uma desculpa para o alferes! Você precisa ser examinado! — ela exclamou, num tom que só os dois podiam ouvir.
— Não posso! Se houver a captura de nossa fonte é essencial que os capitães estejam presentes — Gaspard respondeu quase de reflexo, a frase pronta que usava quando os serviços do Capitão do Oeste eram necessários.
— Alguém já disse para vocês que é completamente óbvio que a 'fonte' de vocês é o De la Source? — Mylène falou, com um suspiro pesado. — E do que te adianta estar presente na captura de um homem, se depois você vai cair morto no chão?
— Eu não vou cair morto… — Gaspard revirou os olhos. Uma dor de cabeça e um bocado de memórias nunca havia matado ninguém.
— Ah, não? E se você realmente tiver tido um derrame? Se não tratarmos logo, pode ter consequências graves! — Exclamou, gesticulando. — De repente não vai morrer, mas pode perder a fala ou capacidades motoras, aí nunca mais vai poder fazer nenhuma obrigação de Capitão que você ama tanto.
— Mylène…
— Por favor, Gaspard. — Ela implorou. — Isso é muito grave. Eu preciso te examinar e, se for o caso, já começar o tratamento com ervas medicinais. O Refúgio não fica longe daqui. Vamos, por favor!
— Mylène! Eu não tive um derrame — Ele falou de forma firme. — Eu não estou tendo um derrame.
— É exatamente o que uma pessoa que teve um derrame diria antes de começar a ficar confuso e sentir uma dormência na face. E você já estava apresentando sinais de confusão mais cedo, quando estávamos na carruagem!
Gaspard nunca venceria aquela batalha, já que sua noiva havia colocado na cabeça que seu semblante pensativo era sinal de derrame. Talvez devesse só parar de pensar perto de Mylène, para evitar mais dor de cabeça. Mas o estrago já estava feito e a única alternativa que Gaspard via para que pudesse cumprir seu dever em paz era contar de Marianne. Não era a hora ou o local adequados, mas era a única estratégia que provavelmente acalmaria Mylène.
— Eu fiquei perplexo porque a dançarina disse o nome da minha irmã — ele soltou de uma vez.
Claramente sua noiva esperava ouvir qualquer coisa menos aquela declaração.
— Co-como? Sua irmã? Você tem uma irmã!?
Se a expressão que ele tinha era minimamente parecida com a de Mylène, ele entendia por que ela estava preocupada.
— Sim — Respondeu, fechando os olhos e massageando as têmporas. — Marianne. Ela fugiu de casa quando eu tinha doze anos.
— Então faz…
— Faz quinze anos que não ouço notícias dela.
— Como nunca ouvi falar disso? — Mylène se perguntou, ainda incrédula.
— É uma história antiga. E, com a morte dos meus pais, os jornais respeitaram o luto da nossa família e nunca mais publicaram nada sobre a "má sorte dos Orléans" desde então. O tópico também virou um tabu dentro de casa, mas quando a dançarina falou o nome dela eu…
— Você ficou em estado de choque — foi a vez de Mylène completar a frase de Gaspard. — Entendi. Acho que eu também agiria da mesma forma se soubesse que o meu irmão, por algum milagre, ainda estivesse vivo.
Mylène voltou a segurar as mãos de Gaspard. Era o jeito deles de mostrar apoio um ao outro. Ele só não esperava que ela o puxasse para perto e o envolvesse num abraço tenro.
— Vá cumprir seu dever, capitão Orléans. A carruagem está logo ali, você sabe que eu sei me virar — Ela falou, levantando o rosto para encará-lo. — Só me prometa que no nosso próximo encontro falaremos sobre a Marianne.
Gaspard ficou alguns segundos sem reação, mas retribuiu o abraço por fim. Quem passasse pelo local perceberia que a sua boca estava levemente arqueada, numa cena rara: ele sorria.
— Eu prometo, Mylène.
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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia
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