Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.
A tensão entre os presentes na sala era tão palpável quanto as paredes que os cercavam. Ninguém sequer ousava respirar mais alto. A figura imponente do general Nord, um dos homens mais notáveis de Chambeaux, era tão opressora que poucos conseguiriam encará-lo de frente sem sentir o suor escorrendo pela nuca. Gaspard estaria mentindo se dissesse que, apesar dos anos de convivência, o general não o intimidava mais.
O silêncio foi interrompido após três batidas na porta, revelando a chegada do capitão Serein, enviado para relatar as últimas atualizações sobre as buscas por De la Source. Pelo seu semblante sério, a notícia não prometia ser das melhores. Por fim, ele parou no meio da sala, saudou a todos e foi sucinto no seu relato:
— Não encontramos quaisquer sinais de Henri De la Source na própria Maison ou nos arredores.
Um imperceptível movimento nos lábios evidenciou a insatisfação de Nord ao receber essa informação. Mais uma vez Henri De la Source fazia chacota do exército ao escapar sem deixar nenhum traço. Ele era apenas um homem comum e os militares de Chambeaux haviam ganhado uma guerra há pouco tempo, então como ele conseguia fugir tão habilmente de suas mãos?
O general não sabia a resposta, sua única certeza era que ter um homem com essas habilidades sob o seu controle seria uma bela adição ao exército.
— Se isso continuar, viraremos uma piada nacional — Nord afirmou com a voz dura. — Hoje, De la Source não apenas nos caçoou ao fugir, ele também feriu a dignidade do exército e da nação ao invadir diretamente a Maison d’Argent. Prendê-lo será a nossa prioridade. Nem que tenhamos que realocar parte da inteligência e recursos da investigação de cassinos ilegais e de desaparecimento de pessoas para focar nesta busca! — o general Nord informou.
A sala improvisada pelo próprio general na Maison d’Argent voltou a ficar em silêncio por mais alguns segundos. Estavam processando a decisão do general e repassando mentalmente os relatos do que havia sido descoberto até o momento sobre a tentativa de assalto.
A conclusão era que nada sobre o incidente fazia qualquer sentido. A casa da moeda era o prédio mais vigiado do país junto com o palácio real e não havia quaisquer sinais de arrombamento ou invasão. Também não sabiam ao certo o que havia causado o estrago nas portas da Grande Chambre, a câmara do tesouro Beau. Como era um dos prédios mais antigos de Chambeaux, certamente envolvia os mecanismos de proteção mágica que os primeiros Beaus haviam deixado para trás. Era surpreendente que De La Source tivesse saído com vida no local, algo que merecia um estudo mais aprofundado, mas o Rei nunca deixaria que pesquisassem magia.
A única boa notícia era que durante as buscas, o Exército conseguira capturar dois comparsas do rebelde. O que eles confessaram, entretanto, complicou ainda mais as investigações: os capturados afirmavam que o próprio De la Source estava muito perto da explosão.
— Se ele estava tão perto da explosão como disseram, não estaria morto? — um dos primeiros-tenentes perguntou, quebrando o silêncio.
— Nos perguntamos o mesmo, porém não há sinais de… — o secretário-geral da casa da moeda engoliu em seco antes de continuar — restos humanos no lugar onde a explosão ocorreu.
— Ele não deve ter ido longe, certo? Provavelmente está bem ferido — Rivail, o Capitão do Sul argumentou, ignorando o comentário do secretário, que provavelmente nunca havia participado de uma guerra.
— Sim. É a hipótese mais provável. Serein, monte uma equipe que fique em vigia constante aqui dentro da capital. Claro que há a possibilidade de ele já estar a caminho da suposta base na divisa com Sálaga, mas também pode ter alguma base em outra região. De qualquer modo, enviamos soldados para monitorar as estradas e agora precisamos de outros que investiguem nas cidades próximas.
Sem perder tempo, o general fez um aceno para um alferes que se encontrava na porta e, imediatamente, os soldados convocados entraram no recinto para receber as instruções e comandos. Depois de passar as ordens, Nord engatou num outro assunto que Gaspard não conseguia compreender — a voz do general não passava de um barulho distante —, ele não estava ouvindo e nem tentava ouvir, apenas fingia prestar atenção.
Sua mente não estava lá.
Em nenhum momento esteve.
Seus pensamentos corriam de lá para cá, alternando entre as lembranças da irmã desaparecida, a dançarina que as evocara e a sua revelação para Mylène. Eram muitos sentimentos envolvidos. Ele não sabia lidar bem com tudo aquilo. Nunca soube.
Desde a morte dos pais, seu único objetivo era deixar o passado para trás e construir uma nova era para a família Orléans. Precisava se destacar, então estudou até se tornar o melhor. Precisava de dinheiro para pagar as dívidas dos pais, então se alistou no exército, subindo de patente até se tornar o Capitão do Oeste, um dos postos mais importantes no país. Precisava manter sua linhagem, então encontrou uma noiva de respeito na senhorita Dupain e ainda fez um vantajoso acordo de casamento com ela.
Ouvir notícias da irmã, entretanto, parecia ter despertado algo nele há muito tempo adormecido. Seus objetivos não mudaram, mas a sensação de que tudo somente se completaria se tivesse a certeza de como Marianne estava era mais forte que nunca.
Sua irmã estaria viva? Se sim, ela estaria bem? Estaria casada? Estaria em apuros? Se não estivesse viva, o que teria acontecido? Onde estaria enterrada?
Gaspard queria respostas, mesmo sabendo que essa terrível vontade de saber o que acontecera com Marianne foi o que levara seus pais à beira da falência. Desde que ela desaparecera, eles gastaram cada centavo do marquesado, recorrendo até a empréstimos, para encontrar qualquer pista que os levasse à filha. O desespero deles atraíra incontáveis aproveitadores, colocando-os em vários becos sem saída. Essas emboscadas só terminaram quando um relato afirmando que a irmã havia sido capturada por mercenários de outro continente os levou a embarcar num navio que, ironicamente, acabou afundando suas vidas de uma vez por todas.
Gaspard assistiu a tudo calado.
Aquela memória, sua última com Marianne sempre o atormentava. Mas, naquele momento, ela parecia estar mais vívida que antes. Gaspard conseguia sentir o calor do abraço carinhoso de Marianne na noite de despedida e ouvir sua voz falando:
— Gaspard, estou indo atrás da minha felicidade. Sei que nunca a encontrarei aqui. Você promete nunca contar para papai e mamãe que estou indo embora?
Apesar de desejar que a irmã ficasse, Gaspard sabia que ela só voltaria a sorrir radiante como já não fazia mais se prometesse não falar nada. Ele inocentemente assentiu com a cabeça. Marianne o abraçou mais forte e proferiu sua última palavra antes de soltá-lo e desaparecer.
La revedere, o adeus romani.
Era apenas uma criança seguindo o pedido da irmã, mas a culpa de ter feito aquela promessa e nunca ter falado para os pais sobre Marianne enquanto tudo ia por água abaixo ainda o consumia.
— Por fim, capitão Orléans, preciso de seus serviços! — A exclamação de general Nord interrompera as lembranças Gaspard, obrigando-o a se concentrar no presente.
Foi naquele momento também que Gaspard percebeu que todos os ocupantes da sala haviam sumido, sobrando apenas o general Nord.
— Ao seu dispor, general — ele respondeu, ajustando a postura.
— Mandei chamá-lo não só por você ser uma das peças-chave das investigações relacionadas ao De la Source, mas também por seus talentos diplomáticos.
Gaspard entendeu prontamente a fala do general.
— Precisarei dos meus artefatos — Gaspard disse, tentando ganhar tempo para colocar a cabeça no lugar.
Como Capitão do Oeste, Gaspard era oficialmente responsável por manter a ordem e a segurança da região — principalmente da capital, localizada na área mais oeste do país —, traçar estratégias contra ataques inimigos, organizar rotinas de treinamento e direcionar patrulhas para defender seus cidadãos quando necessário. Entretanto, a patente não passava de fachada para que agentes externos não descobrissem que ele era o verdadeiro responsável pelas investigações que ocorriam secretamente em Chambeaux.
Uma de suas reais funções era a de extrair informações relevantes de alvos importantes. Assim, se existiam comparsas do De la Source retidos, sua missão era saber tudo que eles sabiam. E um interrogador precisava estar completamente imerso no momento do interrogatório para não deixar nenhum detalhe escapar.
Logo, se havia algo que não conseguiria fazer naquele momento era interrogar pessoas. Pelo menos não enquanto não parasse de pensar em Marianne e na dançarina.
— Imaginei que diria isso, portanto pedi que buscassem a sua maleta na Central do Exército um pouco antes da reunião — o general respondeu, apontando para um objeto preto atrás de si. — Quando estiver pronto, avise o alferes Renaud. Ele está aguardando para acompanhá-lo até a sala onde os prisioneiros estão.
Gaspard fingiu que tudo estava bem e assentiu para o general, que deixou a sala em seguida.
— Maldição… — ele murmurou enquanto se aproximava da maleta.
Ao abri-la, encontrou seus instrumentos de trabalho: artefatos mágicos que lhe garantiriam vantagens para interrogar e espionar.
Obviamente isso era mais um dos segredos de Estado, como a magia que protegia a Maison d'Argent. A magia era proibida em Chambeaux por causa de uma lei antiga, que não havia sido revogada mesmo depois de seu desaparecimento há algumas gerações. Não que ela impedisse que objetos antigos e encantados circulassem pelo país de vez em quando, principalmente em leilões clandestinos, mesmo que ninguém soubesse ao certo como eles funcionavam. O exército fazia vista grossa desde que eles não causassem problemas para a coroa e a nobreza — até porque eles mesmos faziam uma exceção para o Capitão do Oeste.
Todos que ocuparam o cargo antes de Gaspard receberam a maleta à sua frente para operar a favor do país, o símbolo máximo de confiança e do poder que lhe fora investido. Com ele não fora diferente.
No início ele havia se negado a utilizar os artefatos. Não conseguia confiar na magia, já que não entendia completamente seu funcionamento e quais poderiam ser os possíveis efeitos adversos a longos períodos de exposição. Entretanto, Gaspard também sabia que ser um rosto conhecido por causa de seu título de marquês e a cor singular de seus olhos dificultavam as missões de espionagem e dentre os artefatos existiam objetos que ajudavam a disfarçar a sua aparência a ponto de deixá-lo irreconhecível. A praticidade venceu o receio e Gaspard acabou aceitando que esses itens poderiam ser vitais na realização de seu trabalho.
E lá estavam os doze artefatos mágicos. Aparentavam ser objetos comuns: relógio, pares de brincos e de sapatos, uma flauta, uma jarra, um colete, um chapéu, uma capa, uma lamparina e um anel, mas cada um deles com uma função única quando utilizados corretamente. Ao contrário de sua resistência inicial, usá-los agora causava uma rara excitação em Gaspard, mas seu cansaço emocional era tanto que ele queria apenas devolvê-los para a maleta e voltar para casa.
Após uma rápida olhada, Gaspard optou por usar apenas o anel. Com ele, bastava estar em um raio de dois metros e fixar o olhar numa pessoa que conseguiria detectar se ela estava falando a verdade ou não.
— Pronto, alferes! Pode me levar aos capturados — Gaspard disse assim que fechou a mala e dirigiu-se à porta.
— Claro, capitão! — Renaud respondeu prontamente, guiando Gaspard para outra parte da Maison d’Argent.
[Continua na Parte 2]
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