[Continuação da Parte 1]
Andaram apressadamente pelos corredores sem trocar mais nenhuma palavra e, cinco minutos depois, ambos estavam dentro de uma sala parecida com a anterior, improvisada às pressas e contendo apenas o necessário. Entretanto, a atmosfera que encontraram não poderia ser mais diferente da sala de reunião.
Uma jovem raivosa gritava com dois soldados que claramente estavam com medo, enquanto um rapaz sentado ao lado dela bocejava. Ambos estavam amarrados em suas cadeiras e ainda assim, a moça tinha tanta energia que parecia que a qualquer momento conseguiria estraçalhar as cordas que a prendiam. Ambos pareciam completamente alheios à situação em que se encontravam.
— Capitão Orléans! — os soldados bateram continência.
— Era só o que me faltava… — a moça resmungou ao reconhecer o sobrenome e os olhos do homem que entrou na sala.
— Certo, podem nos deixar sozinhos? — Gaspard pediu e os soldados deixaram o recinto, talvez mais rápido do que o apropriado. — Renaud, também preciso que você saia.
— Mas, capitão, o general me instruiu que o apoiasse!
— Alferes! — Gaspard falou rispidamente, lembrando-o de sua posição. Não gostava de agir assim, mas também não queria perder mais tempo.
— Como quiser, capitão… — ele se deu por vencido.
A sala ficou em silêncio depois da porta ser fechada pelo alferes. Gaspard pegou uma cadeira encostada perto da parede e a arrastou para o centro da sala. Sentou-se, repousando a maleta no chão com cuidado e tomou mais um minuto para observar e intimidar os dois capturados com a expressão distante e analítica que eram sua especialidade.
Se eles tivessem mais de dezoito anos, seria muito. Apesar da gritante diferença de personalidade, sem dúvida eram gêmeos com seus olhos azuis, a pele marrom clara, os cabelos escuros. As características poderiam ser Beau, mas algo neles lembrava Gaspard de alguém.
— Por Kali, vai ficar aí calado até quando? — a moça questionou.
Por Kali.
Imediatamente associou a expressão com a dançarina do festival da primavera.
— Vocês são Romaines? — Gaspard perguntou sem pensar.
Os irmãos se entreolharam ao mesmo tempo. Nenhum dos dois imaginaria que a primeira pergunta do tão famoso capitão Orléans teria que ver com a origem deles.
— Sim. Por parte de pai.
Gaspard checou o anel de relance. A cor da pedra, antes cinza, agora estava verde-escuro, indicando que a gêmea dizia a verdade. Isso fez com que ele voltasse a pensar na dançarina e nas possibilidades de encontrar conexões que o levassem até ela e, consequentemente, à sua irmã.
— Ele está aqui na capital há muito tempo?
— Ele quem?
— O pai de vocês.
— Desde que se casou com a nossa mãe — a moça respondeu, cada vez mais desconfiada.
Acreditando que as perguntas de Gaspard eram uma sutil ameaça aos seus pais, ela adicionou:
— Olha, nossos pais não têm nada a ver com isso, tá bom? Nós seguimos o De la Source por conta própria.
A pedra continuava verde-escura.
Gaspard sabia que deveria focar nas informações do rebelde procurado, porém percebeu que os irmãos talvez fossem as únicas pessoas que poderiam lhe dar alguma luz sobre como encontrar a dançarina. Eles eram Romaines, não? Com certeza sabiam onde outros Romaines se encontravam.
Era uma lógica falha e desesperada, mas seu tempo estava se esgotando: os Romaines dos vários camps de Chambeaux que costumavam se reunir na capital durante o final de semana do festival de primavera partiriam na madrugada de segunda-feira.
— Certo. — Gaspard respondeu distraidamente. O que ele realmente queria saber não tinha nada a ver com a ascendência ou com os pais dos gêmeos. — Se eu precisasse encontrar o paradeiro de um Romaine no festival da primavera, como eu faria isso?
— O que diabos…?! Você acha que só porque somos Romaines temos a obrigação de saber de todos os outros Romaines do mundo?!
— Indo até o Lapin Sauvage — o irmão interrompeu, bocejando em seguida. — O dono do bar também é Romaine e conhece todo mundo. Ele pode te ajudar.
Checou mais uma vez a cor do anel. O verde-escuro permanecia. Finalmente Gaspard sentiu que havia encontrado uma pista essencial para localizar a Romaine e Marianne.
— Arturo! Por que você contou para o capitão? Todo mundo sabe que ele detesta Romaines! E ele ainda está atrás do De la Source! — a gêmea vociferou.
— Calma, Ariana… — mais um bocejo — Se o capitão realmente quisesse saber do De la Source, com certeza estaria mais focado nessa conversa sem pé nem cabeça. — Ao contrário da irmã, Arturo sabia que as perguntas não eram uma ameaça. Era evidente que o famoso Capitão do Oeste não estava investido no interrogatório e, além disso, os cartazes de procurado de Henri espalhados pela capital eram a maior prova de que o exército sequer sabia a real aparência dele.
Gaspard não conseguiu esconder a cara de surpresa diante da constatação. Ele, que quase nunca demonstrava as suas emoções, havia sido desmascarado por um garoto cansado.
De fato não queria estar ali.
Desde que ouviu o nome de Marianne saindo da boca da dançarina, só conseguia pensar na irmã. Passou o dia preso nesse encantamento, focado apenas em descobrir mais sobre ela, que por um momento havia esquecido do seu dever como Capitão do Oeste. Um reles adolescente precisou lembrá-lo de suas responsabilidades.
— Arturo, não é? — Gaspard, com um meio sorriso no rosto, usou o nome que ouviu a garota usar. — Você está certo. Vim apenas interrogá-los de praxe. Afinal, o exército sabe que De la Source conseguiu escapar da explosão.
— Ele estava muito perto, talvez não tenha sobrevivido! — Ariana se apressou a dizer.
Gaspard nem precisou checar o anel para saber que ela estava mentindo, porque a resposta de Ariana não batia com a situação.
Se ela acreditava tanto em Henri De la Source, por que ela tentaria convencê-lo de que o homem estava morto? Pela sua experiência, seguidores como Ariana e Arturo se recusariam a acreditar neste tipo de informação. Eles mesmos haviam declarado que decidiram se aliar ao De la Source por conta própria e o anel confirmara a veracidade do que eles falaram.
Estava claro para Gaspard que aquilo não passava de uma encenação. Era provável que desde o início os dois estivessem seguindo um roteiro previamente combinado. Afinal, por que dois jovens que pareciam tão astutos acabariam capturados pelo exército de mão beijada? Além do mais, nenhum dos dois aparentava estar ferido.
E se os gêmeos estivessem apenas ganhando tempo para que o mandante conseguisse escapar? Não existia a possibilidade de De la Source ter saído ileso da explosão que ele não esperava que acontecesse, com certeza estava ferido e não conseguiria se deslocar com a destreza de sempre. E se tiverem sido feridas grandes o suficiente para os comparsas de De la Source se sentirem compelidos a enviar distrações, significava que o homem mais procurado de Chambeaux não tinha condições de sequer entrar numa carruagem e fugir para a fronteira com Sálaga.
Era evidente que os gêmeos estavam ali porque, por trás, havia um plano maior.
Aliviado, Gaspard sentia que finalmente a sua inteligência estratégica voltara a funcionar.
— Claro que ele sobreviveu. Nós sabemos! — Gaspard blefou dramaticamente — Inclusive, — continuou, torcendo para que pelo menos um deles mordesse a isca — sabemos que ele deve estar escondido na base próxima à fronteira com Sálaga.
Os irmãos se entreolharam abismados. Pareciam chocados.
— Co-como você já sabe sobre a base de Sálaga? — Arturo perguntou fingindo estar assustado.
Discretamente, Gaspard olhou para a mão.
A pedra do anel estava vermelha.
Touché.
— Depois de tantos anos à procura de De la Source, era de se esperar que começássemos a seguir as pistas certas — Gaspard fingia presunção e aumentou o tom da voz. — Alferes Renaud, já tenho a informação de que precisava!
— Desgraçado! — Ariana gritou logo em seguida, movendo-se com tanta força na cadeira que logo poderia cair no chão e se machucar. Tudo por uma boa atuação.
Gaspard pegou a maleta, deixando a sala sem se despedir. Já nos corredores, pediu a Renaud que o levasse até o general. Pouco tempo depois, ele estava novamente sozinho com Nord para relatar sobre as conclusões do interrogatório, que muito provavelmente a ligação de uma base perto de Sálaga com De la Source nunca existira e que as buscas deveriam se concentrar apenas na capital.
O general não se deixou abalar pela informação de que mais uma vez tinham falhado com o paradeiro do homem mais procurado de Chambeaux. Dessa vez, eles ao menos sabiam informações mais concretas sobre sua atual localização e a honra do exército logo seria restaurada. De la Source estava ferido e por perto, logo seria capturado. Era tudo que importava.
— Você fez um bom trabalho, Orléans. Descanse por hoje. — Nord apertou o ombro de Gaspard antes de se despedir de vez — Voltamos a nos falar amanhã.
Gaspard assentiu, aliviado. Apoiando a maleta na mesa mais próxima, ele devolveu o anel ao seu devido lugar entre os artefatos mágicos. Entretanto, antes de fechar a maleta novamente, resolveu cometer uma loucura.
Uma loucura que poderia levá-lo a dividir uma cela com De la Source no futuro.
Ainda assim, ele decidiu se arriscar.
Olhou para o Nord de canto de olho. Percebendo que o general não prestava mais atenção nele, Gaspard puxou o par de brincos para o bolso do terno, trancou a maleta e finalmente deixou o local.
A partir daquele momento poderia se concentrar no que mais importava: descobrir onde estava a dançarina e conseguir qualquer migalha de informação que fosse sobre sua irmã.
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