“Você pode me chamar apenas de Henri.”
A frase não saía de sua cabeça.
A revelação tinha sido tão inesperada e chocante que Mylène nem ao menos lembrava o que respondera antes de dar as costas para o homem, indo em direção ao armário atrás de uma tesoura para cortar a roupa ao redor da queimadura. Nunca ficara tão desconcertada com uma situação ou com uma pessoa, muito menos com uma que estivesse sendo procurada por seu noivo…
E por toda Chambeaux.
Já tinha tantas coisas acontecendo em sua vida, e o que Mylène menos precisava agora era mais uma complicação. Claro, sua consciência e ética jamais permitiriam que ela abandonasse um paciente precisando de tratamento e, para ser honesta, a ponta de admiração pelo “trabalho” do De la Source também estivesse pesando um pouco na sua decisão de tratá-lo sem ao menos considerar denunciá-lo para as autoridades.
Não, ela nunca o denunciaria.
— Você é a Heloise? Foi o nome que me deram quando indicaram o Refúgio das Artes Medicinais. — A pergunta de Henri a trouxe de volta para a realidade, fazendo um calafrio percorrer o corpo de Mylène.
Ela estava tão focada em Henri De la Source estar ali e ser um foragido, que sequer havia pensado em como ele fora parar ali, machucado daquela forma, logo em frente ao Refúgio. Se o homem mais procurado de Chambeaux conhecia o grupo independente de mulheres que almejavam seguir o caminho da Medicina, quantas outras pessoas também poderiam saber?
— Como ficou sabendo do Refúgio? — ela perguntou em um tom neutro ao virar-se, finalmente com a tesoura que procurava em mãos.
— Sei que você deve estar se sentindo receosa de mais pessoas saberem sobre este lugar, mas não se preocupe. Nem mesmo os meus companheiros sabem que estou aqui.
As palavras de De la Source a tranquilizaram de certa forma. Era apavorante sequer imaginar a possibilidade de o Refúgio ser descoberto pelas autoridades e de não poder mais se reunir ali com suas companheiras.
Percebendo que Mylène parecia estar menos na defensiva, o rebelde procurado olhou de um lado para o outro como se estivesse prestes a contar um segredo, e com um sorriso no canto dos lábios, continuou:
— Na verdade, foi o seu irmão Theo que me indicou o Refúgio há um tempo, quando desloquei o ombro esquerdo. — Mylène pensou em corrigi-lo, mas se lembrou novamente do noivo e decidiu não falar nada.
— Que por um acaso é o mesmo ombro com essa queimadura imensa — Mylène notou.
— Pois é. Claramente ele não tem muita sorte — Henri disse, dando um tapa de leve no ombro ferido sem pensar.
Um grito de dor tomou conta do recinto.
Com passos apressados, Mylène se aproximou de Henri. Depois de botar a tesoura em uma bandeja próxima à maca, ela começou a ajudá-lo a tirar a capa preta, que parecia ter sido colocada de qualquer jeito. Por baixo, ele ainda trajava uma bata que um dia parecia ter sido branca, era difícil de dizer com toda a sujeira, as partes queimadas e o sangue seco. Pegando a tesoura mais uma vez, Mylène cortou a vestimenta com cuidado para analisar melhor o tal ombro esquerdo azarado. Como esperava, ela estava diante de uma queimadura profunda. Ainda havia tecido grudado na pele, porém menos do que tinha pensado.
— Imagino que vai deixar uma cicatriz? — Henri perguntou alegre. Nem parecia a mesma pessoa que há poucos minutos urrara de dor.
— Com certeza — ela respondeu, sem tirar os olhos do ferimento.
— Ótimo. Mais uma para a minha coleção de histórias.
— Histórias? — Mylène finalmente voltou a encará-lo.
— Claro. Toda a cicatriz tem uma história para contar, não acha?
Henri mais uma vez soltou o seu sorriso galanteador. Agora mais de perto, Mylène percebia o quanto o rapaz tinha traços marcantes. Nariz reto, olhos castanho-claro, maxilar bem marcado. Além de charmoso, sem dúvida era um rapaz bonito e realmente nada a ver com o homem do cartaz. Como o exército errara tanto?
— É um bom jeito de ver a situação, imagino — ela respondeu, desviando-se daqueles pensamentos fora de hora sobre a aparência de um paciente. — Bom, vou tratar sua queimadura. Já aviso que vai ser um processo dolorido.
— Tem álcool? — Henri perguntou.
— Sim, para assepsia…
Mylène estava preparada para disparar explicações, enumerando todos os motivos para nunca colocar álcool sobre uma queimadura até perceber pelo brilho maroto na expressão de Henri que ele falava de outro tipo de álcool. E, sem que ela se desse conta, um sorriso divertido apareceu em seu rosto.
— Infelizmente, aqui não temos o tipo de álcool em que está pensando.
— Sério? Nenhuma chance de ter uma garrafa de xerez? Seu paciente está necessitando de ao menos uma dose para acalmar um pouco os nervos — Henri acrescentou, fazendo Mylène balançar a cabeça em descrença ainda que com um leve sorriso.
Indo de um lado para o outro com eficiência, Mylène juntou todos os itens que precisaria: pinça para tirar o tecido grudado, álcool para higienização, um bálsamo para inflamações para auxiliar na cicatrização, um balde de água, e toalhas e gaze para serem umedecidas e aplicadas na queimadura. Por fim, retornou para perto de Henri, que parecia observar cada um de seus movimentos atentamente.
— Você não é a Heloise — Henri afirmou abruptamente.
O comentário pegou Mylène de surpresa. Ele havia presumido que ela era a Heloise, o que o fizera pensar o contrário?
— Por que eu não seria a Heloise?
— Ah! Não existe a menor possibilidade de o Theo ter uma irmã assim como você.
O olhar atrevido Henri encontrou o de Mylène por alguns segundos, mas ela o desviou para mergulhar uma das toalhas no balde d'água. Não havia como negar que estava desconcertada, mas, dessa vez, era com a audácia do homem à sua frente.
— Assim como? — questionou apenas para manter a conversa e distraí-lo da dor, já que não tinha interesse na cantada que com certeza estava por vir.
— Ora, senhorita. A quem você quer enganar? Apesar de estar vestida de plebeia, claramente você não é uma.
A constatação deixara Mylène tão chocada que ela derrubou a toalha molhada no chão. Ela não estava esperando essa resposta e agora estava envergonhada por ter imaginado que Henri estivesse prestes a elogiar a sua aparência.
Mylène recolheu a toalha do chão e jogou-a num cesto perto da parede, tentando pensar numa resposta que não revelasse quem ela era ou levasse a mais perguntas. Pegou outra, encharcou-a de água, e passou delicadamente na área queimada, em silêncio. Henri se encolheu um pouco, mas fora esse movimento, sua expressão não denunciava as dores que ele com certeza sentia.
— O que me denunciou? — Mylène quebrou o silêncio, enfim, concentrada na sua tarefa de hidratar a queimadura.
— Eu poderia dizer que foi a sua postura — Henri tentou manter o bom humor na voz, mas não conseguia disfarçar a respiração ofegante. — Ou os sapatos bem polidos. Porém, o motivo principal foi o seu perfume.
— Meu perfume? Mas eu não estou usando nenhum.
— E ainda assim você exala rosas. AI!
— Perdão! — Mylène pediu após tocar na área com um pouco mais de força.
— Não… não tem problema — Henri disse, com os olhos fechados e com semblante de dor.
Mal sabia ele que Mylène havia dosado a força de propósito; não queria que ele notasse o rubor intenso que subiu à sua face após a explicação sobre o seu cheiro.
***
Ainda demoraria uma hora para que Mylène terminasse o tratamento de Henri. Com o auxílio da pinça e da tesoura, retirou o tecido grudado na pele com todo o cuidado, hidratou a queimadura mais uma vez e aplicou o bálsamo no local. O procedimento era lento e doloroso para o paciente, então não foi uma surpresa ver que o rapaz, que já estava exausto, dormira na maca.
A exaustão também parecia querer dominar o seu corpo, mas ela não se permitiria nem mesmo cochilar por medo de perder o horário da troca de guarda na casa dos Dupain. Para afastar o sono, decidiu se distrair arrumando o Refúgio: recolheu e lavou todas as toalhas que havia utilizado no pequeno lavatório que havia no fundo, esterilizou os instrumentos como pôde e os guardou em seus devidos lugares. Também aproveitou para passar um pano úmido nas poltronas de couro que ficavam perto da estante de livros e tirar o pó da prateleira de frascos e tinturas, da bancada da cozinha e da pia do lavabo. Ela riu sozinha, imaginando o que o pai diria se visse a futura marquesa desempenhando "atividades de criada".
Ao checar o horário no relógio em cima da mesa atrás da porta, Mylène viu que passava das quatro da manhã e logo precisaria voltar para casa, mas também precisava avisar as outras sobre o paciente. Após pegar um papel qualquer, um tinteiro e uma pena, Mylène escreveu um bilhete para a próxima que aparecesse ali, provavelmente a própria Heloise ou Tanya, já que ambas moravam pelas redondezas e Nicole não se encontrava na capital. Nele, descreveu brevemente o que havia acontecido e como havia tratado a queimadura de Henri. Sem dúvida uma de suas duas companheiras continuaria o tratamento sem problemas. E, como elas também simpatizavam com a causa do De la Source, ele estaria seguro.
A madrugada não havia sido nada como imaginara, mas, pensando agora, era melhor assim. Tratar a queimadura de Henri e se distrair com a limpeza do Refúgio ocupara tanto sua mente que a imagem da senhora Dupain na cama já não a assombrava mais. Pelo menos não naquele momento. Em vez disso, seus pensamentos se dirigiam para o rapaz deitado na maca perto da janela.
Henri De la Source.
Mylène ainda não conseguia acreditar que havia socorrido o homem mais procurado de Chambeaux. O mesmo homem que o noivo investigava, a nobreza detestava e o restante da população adorava. Uma figura que sempre lhe pareceu distante e um tanto mítica, agora estava adormecida na sua frente.
Ou pelo menos era o que ela pensava.
— Já vai? — a voz de Henri ressoou no Refúgio.
— Perdão… Te acordei? — Mylène perguntou, aproximando-se da maca.
— Você não. Foi a dor dessa queimadura.
— Sinto muito, mas não vai melhorar tão cedo.
— Uau! Obrigado por me animar!
Mylène sorriu diante da alegria falsa que Henri demonstrava.
— Nunca imaginei que o grande De la Source fosse espirituoso assim.
— É o que acontece quando a única coisa que se tem por muito tempo é justamente o bom humor — Henri falou brincando, mas Mylène sentia que a constatação era mais séria do que parecia. — Mas, me diz, já está indo mesmo? Não é mais seguro esperar o sol nascer por completo?
— Provavelmente seria, mas daí não conseguiria voltar para casa despercebida.
— Quer dizer que você é realmente uma nobre rebelde?
— Não sou uma nobre oficialmente, muito menos rebelde.
— Olha, da última vez que chequei, moças abastadas que estudam medicina secretamente e cuidam de criminosos da coroa Beau entram sim na categoria de rebelde.
Mylène ficou chocada com Henri mais uma vez. Ele era muito mais perspicaz do que a maioria das pessoas, mas fazia sentido. Só assim para escapar por tanto tempo do governo de Chambeaux. Ao contrário do espanto anterior, Mylène não ficou em silêncio ou sem reação, ela gargalhou com o comentário. Talvez ela fosse rebelde mesmo por estudar escondido, mas se ele soubesse sobre seus planos de casamento…
— Eu cuidaria de você até se fosse a pior pessoa do mundo, De la Source. É meu dever como futura médica — ela disse ainda rindo e se lembrando dos pensamentos que a tomaram quando soube quem ele era de fato. — Agora tente dormir mais um pouco, ok? Logo outra de nós estará aqui e continuará cuidando de você.
— Definitivamente não vou a lugar algum com uma queimadura de explosão me matando.
— Nem se o exército estivesse atrás de você? — Mylène brincou.
— Rebelde e com senso de humor. Assim meu coração não aguenta, senhorita! — A entonação teatral a fez rir novamente.
Ao olhar o relógio, Mylène viu que se não saísse em quatro minutos, perderia a troca de guardas. Preparando-se para ir embora, ela começou a se despedir:
— Bom, preciso realmente ir.
— Antes de ir, poderia me dar um pouco de água?
— Nossa! Mil perdões! Você deve estar morrendo de sede, não é? — ela disse já correndo para encher uma jarra de água. — E deve estar faminto também. Infelizmente, não há nada para comer aqui.
— Não se preocupe, eu sei lidar bem com a fome — disse sorrindo.
Apesar do sorriso, era evidente que o comentário de De la Source era sério, por mais indiferente que parecesse. Afinal, ele deixara bem claro que a fome já fizera parte da sua história.
E era ainda pior saber que muitas pessoas em Chambeaux passavam pela mesma situação.
Era estranho estar pensando naquilo enquanto enchia uma jarra de água para De la Source? Estaria se preocupando demais? Como o rebelde havia se mantido saudável e forte, apesar da má alimentação e de todos os ferimentos que sofrera?
— Consegue se levantar um pouco para beber? — ela perguntou, retornando para onde estava antes.
— Uma ajuda viria a calhar…
Sem dizer mais nada, Mylène envolveu Henri com os braços e o apoiou a ficar sentado. Ao ver que ele estava numa posição estável, ela o soltou para encher o copo de água e entregar a ele. Henri bebeu e depois voltou a se deitar tranquilamente e sem a ajuda de Mylène.
— Você me enganou! Não precisava da minha ajuda!
— Não mesmo, mas queria sentir seu perfume de rosas de novo. Então, menti — Henri, disse dando de ombros e, em seguida, franzindo o cenho por movimentar o ombro ferido.
Não teve um sorriso atrevido dessa vez, mas o atrevimento do rapaz acabou atingindo Mylène tal qual a explosão que ele mesmo causara mais cedo.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia
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