Não que ele estivesse com insônia, mas seu sono definitivamente estava longe de ser tranquilo. A Romaine do festival parecia ter destrancado uma porta secreta em sua alma, liberando pensamentos abandonados há muitos anos. Deitado em sua cama, mais memórias da irmã surgiram, algumas há muito esquecidas.
Onde elas estavam se escondendo até então? Será que ouvir o nome de Marianne saindo da boca da dançarina tinha sido alguma espécie de encantamento?
Passando a mão em seus cabelos desgrenhados, Gaspard sorriu amargamente ao se dar conta da própria imaginação. Romaines poderiam ter seus truques, suas crenças e superstições, mas todos os feitiços tinham sido perdidos nas areias dos tempos. Forçando-se a parar de pensar sobre essas coisas sem sentido, Gaspard revirou-se novamente em sua cama, conseguindo adormecer somente um pouco antes do dia nascer, quando um estranho sonho o fez voltar a questionar se encantamentos tinham deixado de existir de fato.
No início, parecia mais uma memória do que um sonho: Gaspard estava no festival da primavera com Mylène, assistindo às apresentações, como no dia anterior. Tudo se transformou quando a dançarina entrou em cena. A música lenta e sensual seguida de sua entrada dramática com a fumaça misteriosa eram as mesmas de suas recordações, mas diferente do que acontecera na realidade, Gaspard não estava mais em meio a multidão ou com a noiva ao seu lado. Não, agora ele se via sozinho na praça.
A dançarina continuou a executar seus passos hipnotizantes, como se nada estranho estivesse acontecendo. Até que seu olhar encontrou o de Gaspard e, sem aviso, seus movimentos mudaram e ela se aproximou lentamente, sempre no ritmo da canção.
Observando um pouco mais aquela mulher misteriosa, Gaspard finalmente se rendeu, admitindo a beleza da Romaine. Com sua pele brilhando como ouro queimado, seus cabelos volumosos e cacheados, seus lábios cheios e carnudos, e seus olhos de lince num tom de mel, sem dúvida, ela era uma mulher bonita. E, pela primeira vez, ele se permitiu reparar nas curvas da dançarina. Sua cintura era fina, o que realçava seu busto cheio e parecia um lugar perfeito para entrelaçar as próprias mãos.
Seus pensamentos fizeram com que Gaspard sentisse vergonha de si mesmo. Nunca fora o tipo de homem que se importava com as necessidades da carne. Suas prioridades sempre foram outras, recuperar o nome de sua família sendo a maior entre elas. Ao ponderar sobre seu objetivo principal, pensou em Mylène de imediato e seu constrangimento aumentou mais. Ele era um honrado homem Beau e pretendia continuar com essa postura.
Ainda assim, era difícil manter os próprios valores com a dançarina à sua frente, mexendo seus quadris daquele jeito fascinante. Gaspard não acreditava que sua mente o traíra daquela maneira.
A música acabou e agora não havia nem palco ou praça, eram apenas Gaspard e a dançarina, um de frente para o outro. A proximidade entre eles trazia uma intimidade que deixou o capitão desconcertado. Ela sorriu e, abrindo os lábios, disse:
— Por Kali, os olhos realmente são cinzentos iguais aos da Marianne.
Com o coração acelerado, Gaspard imediatamente despertou. O tom sedutor que a dançarina usara apenas no sonho não saia de sua cabeça. Era um delírio escandaloso.
Todo aquele sonho tinha sido escandaloso.
Ansiava tanto encontrar a dançarina e ter notícias da sua irmã que seu inconsciente lhe pregara uma peça.
— Sim, foi isso que aconteceu — Gaspard falou em voz alta para si mesmo, com o coração descompassado.
Decidido a deixar o sonho de lado, Gaspard se levantou da cama, encaminhando-se até o uma poltrona no canto do quarto em busca do terno que havia vestido no dia anterior. No bolso, ainda estavam os brincos mágicos que pegara “emprestado” da maleta do exército.
Outro ato escandaloso. Mas de que outra maneira uma figura conhecida como Gaspard poderia se infiltrar para encontrar pistas sobre o paradeiro da dançarina num bar cujo dono era Romaine? Seria impossível esconder seus olhos cinzentos sem o par de brincos fazendo esse trabalho por ele.
Poderia vestir uma capa? Sim, sem dúvida. Mas pessoas desconhecidas que pediam informação com o rosto coberto nunca passavam confiança.
E Gaspard precisava que o dono do bar confiasse nele.
Se fosse possível, iria ao Lapin Sauvage naquele exato momento. Tinha pressa e estava um pouco fora de si, ansioso por notícias de Marianne. No entanto, eram sete da manhã e o bar não estaria aberto ainda.
Resignado, guardou os brincos numa gaveta da cabeceira da cama. Em seguida, arrumou-se impecavelmente e deixou a casa dos Orléans para ir à Central do Exército. Era domingo, mas a situação na Maison d'Argent não permitiria que ninguém descansasse até que tivessem mais detalhes do paradeiro de De la Source. O dia inteiro transcorreu como um borrão com pinceladas do sonho que tivera mais cedo, as horas se arrastando até o momento em que finalmente poderia colocar seu plano em ação.
Quando voltou para casa, cumprimentou sua tia Greta distraidamente. Como sempre, ela perguntou:
— Diga-me, meu querido e imbecil sobrinho, você finalmente terminou o noivado e libertou a encantadora senhorita Dupain?
— Sinto decepcioná-la mais um dia, minha querida tia.
Greta riu e tomou mais um gole do seu chá. Era apenas uma provocação, mas sempre havia um fundo de verdade em suas palavras.
Num dia normal, ela daria continuidade àquela troca de farpas tão comum entre eles. Porém, ao encarar o sobrinho por mais alguns segundos percebeu seu olhar perdido e uma ruga característica em sua testa, algo o perturbava.
— Pressinto que hoje não nos veremos no jantar? — ela indagou, já imaginando a resposta.
— Tenho assuntos urgentes do trabalho — Gaspard justificou, dirigindo-se à escada que levava aos aposentos da casa.
— Certo. Apenas não seja mais imbecil que o normal e não deixe de se alimentar.
Ele apenas concordou com a cabeça. Sabia que essa era a maneira dela demonstrar seu afeto. Se não estivesse tão ansioso para ir atrás da Romaine, acompanharia a tia no chá. Quando finalmente entrou no quarto, sentindo que a anestesia do dia finalmente passava, ele olhou para o relógio e viu que o Lapin Sauvage abriria em meia hora. E era lá que estaria.
Gaspard pegou sua roupa mais simplória, uma que sempre deixava de reserva no armário. Ele a vestiu e depois de desarrumar o seu rabo de cavalo tão característico, pegou os brincos mágicos na gaveta, colocando-os nas orelhas. Imediatamente, um frescor conhecido tomou conta de seu rosto, subindo até o topo da sua cabeça. Ao se encarar no espelho, as feições refletidas não eram mais as suas.
Usar essa magia pela primeira vez foi uma experiência assustadora: não reconhecia o próprio reflexo. Porém, acabou se acostumando já que o artefato sempre o transformava no mesmo homem de rosto Beau comum: pele branca, lábios finos e olhos azul-escuros. Perfeito para seus disfarces.
Discretamente, ele deixou a casa dos Orléans. Anton, o cocheiro, já o esperava com uma carruagem mais simples do que a que ostentada com Mylène à caminho do festival: preta, estilo fiacre e sem qualquer brasão nobre, a que sempre utilizava em suas missões. Anton nunca fazia perguntas quando Gaspard pedia por aquela carruagem ou quando usava “máscaras” diferentes, era o homem que o capitão mais confiava.
— Vamos para o sudeste da capital — Gaspard avisou.
Esses momentos dentro da cabine costumavam ser perfeitos para refletir e aperfeiçoar seus planos, mas sua ansiedade bagunçava seus sentimentos e pensamentos. Ainda tentou se concentrar algumas vezes e se frustrou ainda mais. Desistindo, deixou-se levar pelo balanço da viagem, permitindo-se apenas esperar pelo que viria a seguir.
Algum tempo depois, o cocheiro anunciou que finalmente tinham chegado ao seu destino. Gaspard pediu que ele parasse a carruagem naquele mesmo local e que o esperasse. Depois de descer do veículo, iniciou a busca pelo Lapin Sauvage: Gaspard não conhecia a localização exata, mas sabia que o bar se situava naquela região.
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