[Continuação da Parte 1]
Andando por algumas ruas e travessas, o som característico da música entrou em seus ouvidos. Segundo as leis do país, apresentações musicais eram permitidas apenas em recitais e peças, comemorações, festivais e em locais fechados. Não existia nenhum teatro por ali, o dia era apenas um dia comum, o festival fora cancelado, e bodegas e tavernas Beau de respeito não tocavam música, o que significava que a melodia estava vindo de algum estabelecimento de classe baixa.
Seguindo essa pista, ele se encontrou em frente ao bar. Na entrada era possível ver uma bandeira Romaine pendurada, assim como o símbolo que dava nome ao local: uma lebre selvagem.
Como sempre, ele reprovava qualquer bandeira que não fosse a de Chambeaux. Porém, ali ele não era Gaspard, o orgulhoso Capitão do Oeste e atual Marquês de Orléans. Ali, ele era apenas um Beau comum em busca da dançarina do festival da primavera. Repassando o plano pela cabeça, Gaspard ajeitou suas feições para combinar com as de um homem “apaixonado” determinado a ver sua “amada” mais uma vez para declarar seu “amor eterno”.
Após colocar a expressão necessária, Gaspard finalmente entrou no estabelecimento. O bar estava aberto há quinze minutos e já estava cheio. Olhando mais atentamente, ele notou que o público consistia basicamente de Romaines, uma cena bem incomum para o segundo dia de festival, ainda que o dono do bar fosse de origem romani. Durante os dias do evento, a maior concentração de Romaines era no local onde ocorriam as festividades, mas ele fora suspenso devido à explosão e às buscas pelo De la Source.
As chances da dançarina estar ali no Lapin Sauvage aumentaram significativamente.
A possibilidade de encontrá-la de verdade dera um certo ânimo à Gaspard, contudo seu olhar clínico não encontrou quaisquer sinais dos cabelos cheios e da silhueta interessante.
Silhueta interessante?
Era imprescindível acabar logo com tudo aquilo para afastar os pensamentos insanos de uma vez por todas. Com isso em mente, ele se dirigiu a um senhor que estava escrevendo algo perto do que parecia ser o caixa do recinto.
— Bonsoir. — Gaspard optara por usar o “boa noite” na língua antiga de Chambeaux, já que era um hábito comum entre as classes mais baixas do país. — Eu preciso falar com o dono do bar. Ele se encontra?
— Se quer negociar fiado, rapaz, nem tente. Hoje é domingo e não estou de bom humor— o senhor disse sem tirar os olhos do papel.
— O senhor é o dono?
Naquele instante, o homem à sua frente levantou a cabeça para encará-lo. Ele tinha todas as características romani e em seu rosto já haviam sinais de uma pessoa que carregara anos de vida nas costas.
— Vejo que o senhor é novo por aqui também. Sim, sou o dono do bar. Francisco, mas aqui na capital me chamam de Francis. Bem mais Beau, não é mesmo? — comentou com deboche.
Gaspard não sabia como responder àquela provocação, então apenas assentiu. Felizmente, Francis continuou a conversa e perguntou:
— Diga, por que está me procurando?
— Soube que apenas você poderia ajudar este homem apaixonado. Procuro a dança-
— Por Kali, todo ano é essa mesma ladainha! — Francis exclamou revirando os olhos. — Pensei que dessa vez passaria, com a suspensão do festival. Vocês Beaus adoram desprezar a gente, mas não podem ver uma Romaine que se esquecem disso — afirmou com desprezo.
O ofício de Gaspard exigia um bom nível de atuação, então mesmo ao fumegar de raiva por dentro com o comentário de Francis, sua expressão de bobo apaixonado não mudou. Ainda assim, como ele ousara dizer aquilo dos homens Beaus? Afrontar sua honra e dignidade? Como se atrevera a insinuar que ele havia se encantado com uma Romaine daquela forma? Nem todo mundo era controlado pelos prazeres da carne.
— Francis, me diga, onde posso encontrá-la? — Gaspard colocou um toque de desespero em sua voz para soar mais convincente.
O dono do Lapin Sauvage soltou um som de reprovação com um estalo de língua, seguido de um sorriso irônico.
— Persistente, hein? É o seu dia de sorte, Beau. Boa parte das caravanas só vai deixar a capital durante a madrugada, inclusive a de Teresa.
— Teresa... — Gaspard repetiu o nome sem pensar muito. — É assim que a dançarina se chama? É um lindo nome — ele se surpreendera ao reparar que sua última constatação não era atuação.
— Está apaixonado mesmo, hein, Beau? —Francis gargalhou diante da reação de Gaspard. — Tome um trago de xerez, fique mais um pouco por aqui — convidou. — Como disse, hoje é o seu dia de sorte. Teresa logo aparecerá para fazer uma última apresentação. Caberá a você lutar para ter um minuto da atenção dela, confie em mim.
O coração de Gaspard acelerou. Mal acreditava na própria sorte. Ele pensou que ir ao Lapin Sauvage lhe daria apenas uma pista para encontrar o camp da dançarina, não imaginava que agora teria a oportunidade de perguntar sobre Marianne.
Esquecendo sua indignação anterior e grato pela informação, Gaspard pagou pelo xerez oferecido e saiu em busca de um lugar que desse uma visão privilegiada do pequeno palco improvisado no canto do bar.
Para não perder o foco, ele decidiu que tomaria apenas um trago da bebida, entretanto, um acabou se transformando em quatro com direito a uma rodada de quitutes romani de aparência duvidosa, em sua opinião. Experimentou uma das comidas relutantemente, mas acabou gostando. Não lembrava de ter tomado café da manhã, talvez aquela tivesse sido sua primeira refeição do dia. Ele simplesmente não sabia mais.
E ele também não saberia dizer que horas eram quando Teresa finalmente subiu ao palco do Lapin Sauvage para se apresentar. Acompanhada de quatro músicos, uma música agitada começou. Gaspard esperava pelo espetáculo de dança, mas foi surpreendido: Teresa estava ali para cantar.
Ao seu redor, Romaines executavam passos que pareciam conhecer há anos. Os que não se arriscaram no baile, cantaram com Teresa. Os outros, os poucos Beaus que estavam no bar, batiam palmas no ritmo enquanto admiravam a apresentação. Existia no ar uma energia diferente de tudo que Gaspard já sentira.
Teria sido isso que Mylène descrevera no festival?
Três músicas depois, Teresa agradeceu a plateia com uma reverência e desceu do palco. Gaspard sentiu suas mãos pinicando com uma leve ardência, não tinha se dado conta na hora, mas provavelmente também tinha batido palmas no ritmo das canções. Era impossível não participar. Foi essa sensação que fez com que Gaspard se sentisse sóbrio novamente e pronto para a ação. Decidido a não perder mais tempo, ele foi em direção à Teresa. Entretanto, não conseguiu avançar no caminho e, de repente, a frase sobre lutar pela atenção da Romaine fez sentido. Muitos admiradores e admiradoras a cercaram, impedindo que ele se aproximasse mais. Uma angústia ameaçava tomar conta de seu ser, mas sua mente perspicaz formulou um plano, que apesar de imperfeito, seria sua melhor opção.
Virando-se em direção à porta do bar para sair do recinto, Gaspard sentiu a brisa fresca da noite batendo em seu rosto, percebendo o quão quente estava no interior do estabelecimento. Ele estava com sede por conta do calor, da agitação e dos tragos de xerez, mas não tinha tempo para pensar nas suas necessidades fisiológicas.
Após circular pela construção onde o Lapin Sauvage se localizava, Gaspard encontrou as portas do fundo do bar. Teresa e os músicos não entraram pela entrada principal, então era provável que sairiam pelo mesmo lugar. Depois de vinte minutos de espera, uma porta se abriu e Teresa surgiu, confirmando a suposição de Gaspard.
O tempo que tivera para se preparar não parecia ter sido o suficiente e, ao contrário do que imaginava, ele não conseguia sequer dar um passo à frente. As perguntas que precisava fazer estavam todas na ponta da língua e as respostas sobre Marianne estavam diante dele, a menos de dois metros de distância.
Ainda assim, Gaspard estava paralisado.
Felizmente, Teresa o notara parado ali na meia luz e se aproximou.
— Ah, você deve ser o Beau apaixonado que Francis comentou! — A Romaine falou colocando as mãos na cintura. — Até tentei te avistar do palco, mas vocês Beaus são muito parecidos.
Parecidos.
Imediatamente Gaspard se lembrou do artefato mágico que o fazia parecer com um Beau comum. Soltando um dos brincos da orelha, o frescor de magia desceu até o pescoço. Ele não conseguia se ver, mas podia conceber a imagem distorcida que criara com metade de sua face mostrando sua verdadeira aparência e a outra, apresentando os traços de outra pessoa.
— Por Kali! — Teresa exclamou, reconhecendo o olho cinzento. — O rapaz do festival? Magia? Como...? — A confusão era aparente em Teresa.
— Vamos deixar a magia de lado por enquanto — Gaspard disse, colocando o brinco de novo. — Ontem você falou um nome. “Marianne”.
— Sim, falei. Ela é uma Beau que chegou no nosso camp há quatorze ou quinze anos.
O tempo batia com o desaparecimento de sua irmã.
— E… como ela é? — perguntou Gaspard tentando conter a excitação de sua voz. — Alta? De cabelos castanhos como os meus? Com o olhar gentil e cálido, apesar do cinza frio dos olhos?
— Sim! — Respondeu sem hesitação. — Essa é a Marianne!
Não havia mais dúvidas, Teresa falava de sua irmã.
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