— E… como ela é? — perguntou Gaspard tentando conter a excitação de sua voz. — Alta? De cabelos castanhos como os meus? Com o olhar gentil e cálido, apesar do cinza frio dos olhos?
— Sim! — respondeu sem hesitação. — Essa é a Marianne!
Não havia mais dúvidas, Teresa falava de sua irmã.
— E ela ainda está… lá? — Na verdade, Gaspard queria ter perguntado se Marianne estava viva, mas só a possibilidade de não estar…
Não, era melhor nem pensar nisso.
— Sim. Desde que chegou ao camp, nunca mais nos deixou. Apesar de casada há anos, ainda sofre quando precisamos nos mudar! — disse balançando a cabeça, mas com um sorriso bem-humorado no rosto.
Marianne havia se casado.
Havia se casado com um Romaine.
Gaspard relembrou das idas com a irmã ao festival da primavera e todas as peças começaram a se encaixar. Marianne nunca se afastava do palco, sempre implorando para ficarem um pouco mais, até mesmo quando já não havia apresentações. No ano em que foram proibidos de ir, ela chorava incessantemente, desolada, como se tivessem roubado o seu bem mais precioso. A fuga noturna que só ele vira. A despedida também na calada da noite…
La revedere.
Era claro que Marianne abandonara os Orléans para ficar com um Romaine. No fundo, Gaspard já sabia. Apenas não queria acreditar.
Nunca comentara sobre o adeus da irmã com mais ninguém e nunca tocava no assunto, principalmente depois da morte dos pais. Não apenas pela culpa de nunca ter falado nada, mas porque queria respeitar o desejo de Marianne de ser feliz, ainda que longe deles.
"E de mim."
Até Teresa aparecer.
Ao mencionar o nome da irmã, a Romaine despertou em Gaspard algo que há tempos não sentia: saudades.
Saudades da infância, das memórias felizes e, mais que tudo, de Marianne.
— Eu… eu quero vê-la — Gaspard sussurrou para si.
— O quê? — Teresa não o escutara.
— Preciso vê-la, Teresa! — ele disse, segurando a dançarina pelos braços, num movimento descontrolado. — Sou Gaspard, o irmão mais novo de Marianne. Leve-me com você até o seu camp!
Teresa ficou em choque. Não tanto com o contato abrupto de Gaspard, mas com a revelação. Marianne tinha um irmão? Por mais que tentasse, não conseguia recordar de nenhum comentário sobre irmãos, mas sua única amiga Beau também quase falava de sua vida antes do camp. Sim, imaginava que o rapaz que abordara no festival fosse parente de Marianne, mas em nenhum momento havia cogitado que tivessem um parentesco tão próximo.
— Fique calmo… — ela disse, desvencilhando-se dos braços dele com delicadeza para não alarmá-lo, tentando se afastar.
Ele a soltou de imediato e deu um passo para trás. Olhou para as próprias mãos, a vergonha de ter perdido o controle e segurado uma mulher daquela forma, ainda mais uma desconhecida, percorreu seu corpo. Era o tipo de descontrole que mais abominava, que mais tinha ódio, e fechou as mãos em punhos, engolindo em seco. O que estava acontecendo com ele?
— Marianne nunca fala nada sobre seu passado Beau, — Teresa continuou, interrompendo os seus pensamentos. Gaspard não pode deixar de notar que ela dera alguns passos para trás, se distanciando mais dele, e a vergonha queimou sua garganta — mas não me surpreende que vocês dois sejam parentes. Seus olhos são muito… singulares.
— Sim. — Gaspard disse com firmeza, tentando se agarrar ao orgulho que tinha de sua família. — Posso garantir que somos a única linhagem em Chambeaux que carrega essa característica.
— Gaspard, certo? — Ela perguntou e ele assentiu com a cabeça. — Tem dois pontos um tanto misteriosos na sua história. Sua irmã fugiu de casa pelos motivos dela, o que me leva ao primeiro ponto: por que ir atrás dela agora? Marianne nunca mencionou um irmão ou uma família, como posso confiar em você? Como posso garantir que você não quer, sei lá, tirá-la de nós à força?
Ela nunca dissera nada sobre ele? Marianne sempre fora uma parte importante de sua vida e pensar que ela sequer o havia mencionado o deixava… incomodado. Mas não era o momento para dissecar essa constatação.
A irmã fugira por saber que seus pais não permitiriam que alguém da família Orléans se envolvesse com os Romaines. Gaspard compreendia a razão de Marianne e, por mais que não concordasse, desejava que ela fosse feliz acima de tudo. Queria ver com os próprios olhos a felicidade dela para ter certeza que sua decisão de nunca falar nada sobre a fuga não fora em vão, mesmo com todo o sofrimento que carregara. E quanto ao motivo de ir atrás dela agora… Bom, ele não confessaria que quem desencadeara esse desejo fora a própria Teresa.
— Não tenho como provar que apenas gostaria de ver minha irmã mais velha de novo — Gaspard falou com sinceridade. — Nossos pais já faleceram há muito tempo e restamos apenas eu e uma tia que odeia a nossa família. Na noite em que Marianne desapareceu, ela veio até mim e se despediu com o adeus romani — ele riu de si mesmo ao perceber que, de fato, sabia desde sempre que a irmã havia se juntado aos Romaines. — Ela disse que estava buscando a felicidade dela e eu a respeitei e continuarei respeitando. Eu só… — sua voz falhou e ele limpou a garganta antes de continuar. — Eu só quero vê-la mais uma vez.
A dançarina olhou diretamente para Gaspard, ponderando tudo o que havia dito.
— Vamos ao segundo ponto misterioso da sua história — disse Teresa, chamando a atenção de Gaspard ao passar uma mão pelos seus cachos volumosos.
Ela parecia estar lutando para colocar as palavras certas em seu próximo argumento. Depois de mais alguns segundos sem falar nada, ela soltou uma pergunta inesperada:
— Por que diabos está usando uma magia para ocultar sua aparência?!
Gaspard riu com o absurdo do questionamento. Ela realmente não sabia quem ele era?
— Além dos meus olhos chamarem atenção? — Gaspard perguntou ainda rindo. — Digamos apenas que eu seja uma personalidade conhecida em Chambeaux.
Teresa não conseguia disfarçar a surpresa que tomava conta de seu rosto. Com os olhos arregalados, os lábios de Teresa abriram de leve. Perdido em suas próprias aflições, ele não notara antes, mas agora sob o luar, reluziam macios e atraentes.
Não entendia de onde vieram tais pensamentos, mas era claro que estava completamente descontrolado. Odiava se sentir assim. Odiava sentir que não tinha poder sobre seus próprios sentimentos. Gaspard suspirou aliviado quando uma voz ao final da rua os interrompeu ao gritar:
— Teresa, a caravana sairá em breve!
— Você tem quinze minutos para se livrar desse Beau! — Outra pessoa comentou e várias risadas seguiram.
— U-la-lá! — Ela exclamou, substituindo a expressão de choque por uma divertida. — O tempo voa quando descobrimos mais sobre o passado oculto de uma amiga, não é mesmo?
— Você acredita no que eu disse? — Gaspard perguntou sentindo um alívio dentro de si.
— Vou te dar o benefício da dúvida — Teresa deu de ombros. — Até porque você vai precisar tomar uma decisão difícil agora: vai partir com a caravana ou não?
— Perdão? — ele com certeza ouvira a pergunta errado.
— Você me ouviu — ela respondeu e soltou uma piscadela travessa para ele.
Gaspard ficou claramente desconcertado com o gesto da dançarina, ainda mais com a proposta que ela havia acabado de fazer. Mas ele não demorou para responder.
— Vou com você, mas antes preciso avisar ao meu cocheiro que…
— Não, não! Nada de avisos! Está louco?! — Teresa falou exasperada, surpreendendo Gaspard. — Como quer que eu confie que a celebridade Beau não vai colocar alguém atrás da caravana? Nós deixamos as cidades às segundas de madrugada exatamente para evitar que saibam para onde estamos indo.
— Eu não… — Gaspard começou a contestar, mas optou apenas por explicar a situação. — Preciso apenas dar o recado ao meu cocheiro que está a algumas quadras daqui.
— E isso não é nada suspeito — Teresa lançou um sorriso cheio de ironia.
— Venha comigo para ter certeza de que não farei mais nada que isso — ele propôs e estendeu a mão para Teresa.
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