[Continuação da Parte 1]
O cochilo após o almoço se transformou em doze horas seguidas de sono. Ao acordar, às três da manhã, Mylène se sentiu completamente descansada pela primeira vez em dias. E com fome também, mas Rosane e Laila, já acostumadas com esse hábito dela de pular refeições, sempre deixavam uma bandeja de pães, queijos e geleias junto a uma jarra de suco na cabeceira de sua cama.
Depois de acender uma vela para não comer no escuro, Mylène começou a se alimentar. A comida estava saborosa, especialmente o pão que Manon sovara mais cedo. A cozinheira tinha um dom de transformar os alimentos em uma experiência transcendental, mas nem mesmo as delícias dela conseguiram distrair Mylène de sua curiosidade sobre a visita repentina dos compradores. Sua vontade de ir ao escritório do pai para saber mais sobre as negociações da manhã anterior era enorme, mas era claro que não passava de vontade. O local era trancado a sete chaves.
Também gostaria muito de escapar para o Refúgio e checar a queimadura de De la Source, mas era impossível passar despercebida pelos guardas da casa. Uma pena. Apesar de tê-la deixado sem graça várias vezes, sua companhia era calorosa e divertida. Bem diferente da sensação que Gaspard passava normalmente.
Sentiu um calafrio ao se lembrar de Gaspard. Henri era o homem mais procurado de Chambeaux e Gaspard, o homem mais aplicado do exército. Se o noivo de Mylène descobrisse que ela tinha ajudado De la Source, o que faria? Terminaria o noivado imediatamente? Deixaria ela e a mãe à mercê da própria sorte, nas garras de Hugo Dupain? Gostava de pensar que não, que Gaspard seria mais honrado do que isso, mas na disputa entre o dever para com ela e o dever com a nação, duvidava que fosse ganhar. Mas ela ia fazer o quê? Deixar Henri para morrer? Mylène nunca faria isso.
Que situação acabara se metendo…
E agora era tarde demais para se arrepender. O que lhe restava era torcer para que Gaspard nunca sequer sonhasse com o que estava acontecendo.
Na tentativa de espairecer, ela pegou da estante, um livro muito bem recomendado por Heloise. Mylène estava tão imersa na história que até se assustou quando, ao amanhecer, Rosane bateu à porta para ajudá-la a se aprontar. Durante o café da manhã, o senhor Dupain ainda estava de bom humor, mas parecia estar com a cabeça longe dali, o que foi um alívio, já que em nenhum momento ele comentou sobre Gaspard.
Próximo da hora do almoço, Mylène foi surpreendida com uma visita de Anton, o cocheiro da família Orléans. Quando Gaspard conseguia um horário vago na agenda, ele o utilizava ao máximo para que ambos fossem vistos em público. A carruagem a buscava e a levava até onde o noivo se encontrava, mas essa não era uma ocorrência comum durante a semana, principalmente sem um mensageiro para avisá-la com alguma antecedência.
Como de praxe, Rosane e Laila apareceram para apoiá-la na troca de vestido e na maquiagem. Ao terminar de se arrumar, Mylène pegou a pequena bolsa que sempre portava e se dirigiu apressadamente ao hall de entrada, onde Anton a esperava.
Em qualquer outro dia, um convite repentino seria um motivo de felicidade, nada como ter uma razão plausível para se afastar da casa dos Dupain. Pela primeira vez, porém, sentiu uma certa apreensão. Mylène não gostava nada da ideia de mentir para Gaspard. O relacionamento entre os dois poderia até não ser baseado no amor, mas fora consolidado na confiança mútua, o que era mais do que muitos casais beau tinham. Não queria arriscar o que havia entre eles, mas ela também não poderia falar para Gaspard sobre o paradeiro do homem mais procurado de Chambeaux.
Com sorte, aquele primeiro encontro pós-Festival da Primavera seria focado em Marianne e não nas buscas pelo De la Source. Apesar de ficar desconfortável ao omitir informações, Mylène concluiu que a melhor forma de proceder, caso o assunto viesse à tona, era de não relatar sobre esses fatos para Gaspard.
— Boa tarde, Anton. Para onde Vossa Excelência gostaria de me levar hoje? — Mylène perguntou ao avistar o rapaz.
— Ah! Bom dia, senhorita Dupain! Er… — Anton respondeu, claramente nervoso e olhando para os lados. — Bem, — limpou a garganta com um pigarro — Vossa Excelência disse que gostaria de fazer uma surpresa, então não posso contar até chegarmos no local.
A atitude de Anton era um pouco suspeita, mas Mylène decidiu não comentar. Era provável que o nervosismo do cocheiro tivesse a ver com alguma situação delicada envolvendo o próprio Gaspard. Um dia ouvira do noivo que o cocheiro era o homem mais confiável que já conhecera, então ela também confiava nele.
— Uma surpresa assim, no início da semana! — ela exclamou de maneira falsa. — Eu realmente tenho o melhor noivo do mundo! Imagino que meu pai tenha sido avisado de imediato sobre o almoço?
— Sim, senhorita. Assim que o cocheiro chegou, comuniquei ao senhor Dupain sobre a possibilidade de um encontro com Vossa Excelência. Ele já lhe deu a permissão para sair. — Loic se pronunciou, parado como uma sombra um pouco atrás de onde Mylène estava.
Mylène se controlou para não tirar o sorriso do rosto e revirar os olhos. Loic tinha o péssimo costume de aparecer sorrateiramente atrás dela. Ele era como uma extensão dos olhos de Hugo Dupain, e Mylène estava bastante consciente que deveria tomar um cuidado redobrado com suas falas e atitudes em casa.
— Ah, obrigada! — ela se virou para agradecer Loic. — Podemos ir, Anton.
A desconfiança de Mylène aumentou ao ver o sorriso amarelo do cocheiro. Ainda assim, ela entrou na carruagem quando ele abriu a porta e a ajudou a subir. Anton, logo em seguida, tomou o seu lugar à frente, dando o comando ao cavalo e deixando a casa para trás.
Algumas ruas depois, o veículo parou, ainda na zona residencial dos Dupain. Após alguns segundos, Anton abriu a porta da carruagem novamente. Olhou para os lados mais uma vez e disse:
— Desculpe, senhorita. Estou improvisando… — ele estendeu a mão para ajudá-la a descer.
— Improvisando? O que houve? — Mylène perguntou preocupada, aceitando a mão e baixando da carruagem.
Anton se afastou um pouco antes de começar a analisar as rodas do veículo.
— Eu deveria apenas ir à mansão Dupain para entregar um recado para a senhorita, mas tive receio de que alguém pudesse nos ouvir. Principalmente aquele tal de Loic. Ele é o típico mordomo que mata todo mundo ao fim de um romance policial, com todo respeito.
— Você fez bem — Mylène comentou, concordando internamente com a observação do cocheiro. — Há realmente algo de errado com elas? — questionou ao se aproximar das rodas.
— Não, senhorita. Só estou fingindo para não levantar suspeitas e não tomar mais do seu tempo.
— Anton, você está me deixando ansiosa. Qual é o recado de Gaspard?
— Ah, claro! Desculpe, não sou muito bom de improvisações! — ele disse sem graça. — Vossa Excelência deixou a cidade às pressas pela madrugada. Ele foi atrás de Marianne e disse que tanto a senhorita quanto a senhora Orléans entenderiam o recado.
Mylène, que não esperava ouvir aquelas palavras, abriu um sorriso de alegria misturado com alívio. O peso de mentir para Gaspard não a atormentaria, pelo menos não naquele dia. Pensaria como procederia e no que falaria quando a hora chegasse.
— Que notícia maravilhosa, Anton! — ela exclamou genuinamente. — Estou muito feliz por ele! Será… Será que ele achou a dançarina Romaine do Festival da Primavera? — perguntou mais para si mesma, pensando no quão incrível seria se Marianne e Gaspard finalmente se reencontrassem.
— É, ele estava com uma Romaine bem bonita… — o cocheiro comentou distraidamente. Logo em seguida, ele percebeu que o comentário sobre a aparência da moça fora desnecessário, principalmente porque a senhorita Dupain poderia se sentir ofendida.
— É, então deve ser ela mesmo, ela era linda! Imagino que ele não tenha previsão de volta, né? O exército já foi avisado?
Anton demorou um pouco para responder, considerando se o patrão permitiria que aquele segundo pedaço de informação fosse compartilhado com a futura marquesa. Alguns segundos depois de ponderar, ele finalmente falou:
— Avisei ao exército que Vossa Excelência havia encontrado uma pista sobre uma fonte em Sálaga e que não poderia perder seu paradeiro.
Imediatamente, Mylène se lembra do comentário de Gaspard no caminho para o festival sobre a suspeita da base de De la Source em Sálaga, fato ainda desconhecido pela imprensa.
— Ele realmente sempre pensa em tudo! — ela não conseguia parar de sorrir.
Uma ideia surgiu na cabeça de Mylène. Se Gaspard estava fora extraoficialmente, o exército não divulgaria sobre sua saída da capital. O senhor Dupain jamais saberia se, por um acaso, ela visitasse o Refúgio durante o dia com a desculpa de estar saindo com o marquês. E, com sorte, o bom humor de seu pai se manteria com essas "saídas" com Gaspard a ponto dela receber permissão de visitar sua mãe de novo. Era uma oportunidade maravilhosa que Mylène não poderia deixar passar.
— Já que Gaspard está fora da cidade, você poderia me levar a um lugar durante esse tempo, Anton?
— Claro, senhorita! — afirmou Anton ao terminar a atuação de consertar as rodas. — Vossa Excelência já avisou toda a criadagem que estamos à sua disposição mesmo que ele estivesse ausente. Apenas me diga o local e o horário que a levarei com prazer.
***
Mylène e Anton combinaram que ele a buscaria todos os dias daquela semana na hora do almoço e a deixaria de volta duas horas depois. Sem mais perguntas, o cocheiro a deixou a um quarteirão do Refúgio, partindo em seguida.
Por sorte, a capa marrom que Gaspard guardava dentro de uma mala embaixo do banco para "emergências" estava intacta. Ela a vestiu e percorreu o caminho até o Refúgio com calma, admirando a paisagem de dia como se fosse a primeira vez, completamente despreocupada com a possibilidade de seus trajes refinados chamarem atenção. Desde que começara a frequentar o local, ela praticamente só havia andado por aquelas ruas de madrugada.
Em frente è escada, Mylène desceu os degraus devagar com medo de alarmar quem quer que estivesse no Refúgio. Nenhum barulho de dentro poderia ser ouvido, a lamparina mágica estava acesa e provavelmente Heloise, Tanya e De la Source estavam lá dentro.
De la Source…
Dessa vez, estaria pronta para resistir ao seu charme.
Com a chave na mão, ela abriu a porta do lugar. Olhou o interior do recinto e fechou a mesma porta quase que de imediato. Com o coração disparado, quase saindo pela boca, Mylène acreditava ter entrado no local errado. Não que isso fizesse sentido, já que usara a chave de sempre.
Afastando-se um pouco, ela analisou a entrada do Refúgio. A aparência era a mesma. O que estava acontecendo?
Poucos segundos depois, a porta voltou a se abrir e metade de uma cabeça loira que parecia ser a de Heloise surgiu pela fresta.
— Mylène, é você? — ela perguntou com um sussurro.
— So-sou? — respondeu, sentindo-se assustada e confusa com que o acabara de presenciar.
Heloise se mostrou por completo e a encarou mais um pouco como se avaliasse a situação. Habilmente, ela agarrou a mão de Mylène e a puxou para dentro, fechando a porta novamente.
Agora dentro do local, ela conseguia entender melhor o que vislumbrara há alguns segundos. Além de Heloise e Tanya, havia, no mínimo, cinco homens e duas mulheres. Uma quantidade de pessoas muito maior do que ela esperava encontrar. Todos a encaravam desconfiados.
No centro, De la Source analisava uma espécie de mapa. Ao levantar a cabeça, ele exclamou com um sorriso que parecia iluminar o lugar inteiro:
— Finalmente a minha médica está de volta!
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