— Heloise… O que está acontecendo? Quem são essas pessoas? — Mylène ignorou completamente como De la Source a recebeu, apesar de ter ficado satisfeita ao ser chamada de médica.
— Confesso que também não sei… — Heloise disse, fechando os olhos e massageando as têmporas. — Minha única certeza é que cometi um erro ao comentar com Theo sobre De la Source estar no Refúgio.
— Não foi um erro, querida irmã. Você fez a coisa certa! — Um rapaz com a mesma cabeleira loira de Heloise deu um passo à frente do grupo que rodeava o rebelde. — Você deve ser a senhorita Mylène, certo? Henri não parou de falar de vo-…
Uma tosse alta interrompeu a fala de Theo.
— Teremos que nos preocupar com uma pneumonia também, De la Source? — Heloise perguntou com uma falsa preocupação enquanto revirava os olhos.
— Theo, pode encher a jarra de água para nós? — De la Source pediu de repente, ignorando-a.
Theo deu de ombros com um sorriso, dirigindo-se até a pia para atender o pedido.
Mylène ainda estava confusa demais para assimilar o que estava presenciando. Ela se virou novamente para Heloise antes de comentar:
— Quer dizer que você falou que De la Source estava aqui para o seu irmão e…
— E hoje de manhã ele e mais essas pessoas bateram à porta do Refúgio. — Num gesto nada discreto, Heloise apontou para todos os "visitantes". — A vontade foi de deixá-los do lado de fora, mas fiquei com medo de chamar atenção da vizinhança — Heloise completou com um suspiro. — Desde então, eles não param de discutir sobre como precisam encontrar mais pistas relacionadas àquele caso de pessoas desaparecidas. Francamente, o governo deveria se envergonhar! O De la Source está mais interessado em descobrir o que aconteceu e, talvez, resgatar essas pessoas do que o próprio governo!
— Heloise! Shhh!— Uma moça que aparentava ter a mesma idade que ela a repreendeu, colocando o dedo indicador na frente da boca.
— Poupe-me, Janice — disse Heloise revirando os olhos mais uma vez. — Se vocês estivessem tão preocupados assim, não estariam discutindo tudo isso aqui. E se Mylène não fosse de confiança, Henri sequer estaria aqui. Ele estaria na prisão!
Janice abriu a boca para responder, mas sua resposta nunca veio. Três batidas foram ouvidas na porta do Refúgio e, imediatamente, todos se calaram.
— Se espalhem e ajam naturalmente — Heloise ordenou antes de atender a porta.
Todos respiraram aliviados quando, segundos depois, a figura minúscula e delicada de Tanya entrou sem nenhuma cerimônia com algumas sacolas cheias de pães e frutas.
— Foi tudo que consegui comprar! — ela disse ao repousar os alimentos em uma maca vazia. — Ué, Mylène?! Que milagre é esse vê-la aqui a essa hora? — comentou, finalmente reparando na nova chegada.
— Digamos que consegui um passe livre durante esta semana — Mylène respondeu prontamente. — Pensei em aproveitar esse tempo para estudar e cuidar do meu paciente, mas acho que me enganei.
— Pausa para o almoço! O paciente precisa ser examinado! — De la Source avisou convenientemente.
O sorriso em seu rosto demonstrava que sua sugestão não era uma coincidência, mas ninguém contestou a ideia, optando apenas por ir até a maca com a comida. Mylène também precisava se alimentar, entretanto o dever a chamava. Ela perguntou para Heloise como estava a queimadura de De la Source e a colega fez um breve resumo dizendo que tanto ela e Tanya estavam limpando a área danificada e que, apesar de ainda ser muito cedo para afirmar, a recuperação dele parecia progredir bem, não havendo sinal de pus nem febre.
— E ele não queria que a gente o tratasse! Parecia criança! Disse que tinha que ser você — Heloise se indignou. — Só conseguimos convencê-lo quando falamos que paciente morto não recebe tratamento — terminou o relato.
Mylène se segurou para não rir: ele realmente parecia uma criança mimada. Só tinha conversado com De la Source por algumas horas, mas pelo pouco que conheceu, ele era tudo menos uma. Devia existir alguma razão para sua atitude infantil, mas sentia que se perguntasse agora, ela receberia apenas um sorriso para distraí-la.
Sem mais demora, Mylène se aproximou da maca que ficava mais ao fundo, onde o rebelde já se encontrava sentado e sem camisa, preparado para o exame. Não era uma atitude profissional, mas agora que o desespero de socorrê-lo tinha passado, era impossível não reparar no quão definidos eram os braços e o torço de Henri, ainda que magros. Um brilho chamou a atenção da médica: em seu pulso havia um cordão enrolado com uma duas voltas e um pingente de chave que não havia reparado na noite anterior.
O pequeno objeto atiçou a curiosidade de Mylène com seu design antigo desgastado, bem diferente das chaves atuais que eram lisas e sem ornamentos. Gostaria de saber mais, entretanto era melhor não perguntar nada.
Quanto menos soubesse, melhor.
— Alguma reclamação específica, senhor De la Source?
— Sim. Quando você vai me chamar pelo meu nome? — ele perguntou com um meio sorriso.
— Até onde eu saiba, De la Source também é o seu nome — Mylène respondeu, pegando um estojo e retirando o álcool para esterilizar as mãos.
— É e não é. Romaines não têm sobrenome, eles apenas utilizam o nome do local do camp em que nasceram.
Mylène não sabia da ascendência do rebelde nem desse detalhe da cultura Romaine. Enquanto ela se inclinava para analisar a queimadura, não conseguiu deixar de pensar no quanto De la Source realmente tinha alguns traços parecidos com o povo seminômade. Mas será que tinha ouvido certo? “Eles”? Henri De la Source não era Romaine?
— "De la Source" significa “da fonte” na língua antiga de Chambeaux, não é? Seu camp é perto de uma? — arriscou a pergunta.
— Chérie, eu não pertenço a nenhum camp. E não é porque sou rebelde nem nada, eu apenas vivia perto de uma fonte. — De la Source deu de ombros. — Sempre morei na capital, apesar de ter que me esconder longe daqui de tempos em tempos. Acho que meu sangue romani não é tão forte assim.
— Você prefere ficar em um lugar só?
— Por incrível que pareça, sim. Acho que depois de ser forçado a ir de um lugar para outro, a estabilidade se tornou algo importante para mim. Bem irônico para alguém procurado pelo governo, não? — ele deu uma risada com a situação.
Antes que Mylène pudesse responder, ele continuou:
— É difícil, mas gosto de pensar que estou ajudando outros como eu. E tenho meus companheiros.
Uma mistura de sentimentos invadiu Mylène: admiração, tristeza, constrangimento e identificação. Como não admirar um homem que se arriscava tanto por seus ideais, por suas pessoas queridas e até mesmo por desconhecidos? Seu coração apertou ao imaginar todos os infortúnios pelos quais o rapaz já passara e continuava passando para ajudar todos eles. Por conta de sua posição na sociedade e a situação delicada de sua família, Mylène compreendia que era quase impossível se expor tanto quanto De la Source, mas isso não diminuía a vergonha de si por saber que não conseguiria fazer tanto quanto ele. Pelo menos não por enquanto. Porém assim que ela resgatasse sua mãe…
Mylène sentiu um nó na garganta.
— Eu… Eu entendo. — Não era a hora e nem o lugar para pensar sobre isso. Engolindo a sensação ruim e, sem deixar transparecer o que realmente estava pensando, Mylène voltou para um assunto seguro: — Bom, apesar da aparência feia, a queimadura está limpa e sem sinais de infecção. Agora, o ideal é que você ficasse pelo menos uma semana de repouso absoluto.
Ela olhou para os visitantes que conversavam animadamente enquanto se serviam e acrescentou:
— Mas já percebi que isso será impossível.
— Em minha defesa, todo o bando está aqui porque estavam preocupados. — Ele abriu mais um sorriso — E precisamos organizar nosso próximo trabalho.
— Não sei dizer se aprovo essa sua resposta ou não — Mylène disse sorrindo de volta. — Alguma outra casa da moeda a ser explodida?
— Doutora! Essa é uma acusação injusta! Eu não explodi a Maison d’Argent… — Ele murmurou. Sem dar tempo de Mylène sequer formular um questionamento ele continuou a falar: — E como você me pergunta uma coisa dessas? Você mesma disse que não era uma nobre rebelde!
O último comentário de Henri fez com que ela parasse de aplicar o bálsamo em seu ombro para encará-lo. Seu olhar atrevido estava lá. Prometera para si mesma que o rapaz não a deixaria desconcertada novamente, mas acabou sentindo as bochechas corarem um pouco.
— Talvez eu realmente seja um pouco rebelde, afinal.
— Soube no momento em que te vi.
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