[Continuação da Parte 1]
Após o tratamento, Mylène e De la Source se juntaram aos demais ocupantes do Refúgio para o “almoço”. Entre uma piada e outra, o bando voltou a discutir as questões táticas que executariam. Parecia o tipo de conversa que Gaspard teria com seus subordinados, só que fora do exército e com mais descontração e codinomes menos óbvios. Mylène começava a entender como aquelas pessoas haviam escapado tantas vezes.
Em pensar que, ao acordar, ela imaginara que teria um dia calmo…
Não só a viagem repentina do noivo havia lhe dado liberdade, como agora ela presenciava os planos de ação de um grupo de rebeldes. Era insano pensar que estava ali com Henri De la Source e seus companheiros, mas era empolgante ouvir sobre aquela conversa que parecia ter saído de uma ficção aventuresca.
Não que ela estivesse ativamente tentando desvendar o que estava sendo dito, afinal, já havia decidido que quanto menos soubesse, melhor. Então, quando o grupo começou a discutir algo envolvendo a prisão, um par de gêmeos e outra explosão, Mylène decidiu catalogar mentalmente quais itens deveriam ser repostos.
— E quanto aos desaparecimentos? — De la Source perguntou, chamando sua atenção.
Esse tópico em particular a interessava bastante e queria saber se havia notícias novas. Saber que pessoas estavam simplesmente sumindo e quase nada estava sendo feito era preocupante e ela não parava de imaginar os horrores pelos quais estavam passando. Será que eram mantidas em cativeiro como a sua mãe?
— Ah, obviamente o oficial não aceitou a denúncia — Janice falou, revirando os olhos. — Você sabia, Henri, que não existem moradores de rua em Chambeaux? Não há como alguém que não existe desaparecer.
Henri bufou e o resto do seu bando suspirou pesadamente. Mylène podia não entender exatamente o sentimento, mas sabia muito bem como era horrível pedir ajuda e fingirem que seu problema não existia. Ainda mais quando era o governo — que teoricamente deveria ajudar e proteger todo mundo, mas preferia fingir que não havia nada de errado acontecendo. Se não eram nobres sofrendo, não havia por que se preocupar. Que raiva ela tinha da hipocrisia de Chambeaux. Era melhor que nem tivessem governo se fosse para resolverem tudo sozinhos.
— Como imaginei, teremos que fazer tudo sozinhos novamente. — Henri soou cansado.
— Eu não sei porque você ainda tenta. — Theo retrucou.
— Fazer o quê? Eu sou um idealista. Algum dia o general Nord pode acordar feliz e decidir que é a hora de fazer algo além de aterrorizar os câmpuri romani e efetivamente resolver algum dos trezentos problemas reais que esse país tem. — Henri enfiou uma uva na boca, esperando terminar de mastigar antes de continuar. — Theo, do seu lado, que novidades temos?
Theo então começou a contar uma história extremamente elaborada sobre como um deles ficou na esquina como pedinte e várias aventuras que deixaram Mylène ligeiramente perdida. No fim, havia um "VD", que, ao que tudo indicava, capturava os desaparecidos, e a comercialização de linha. Mylène não sabia nem se havia entendido direito, mas Gaspard saberia o que fazer com essas informações. Ao contrário do general Nord, Gaspard jamais deixaria algo ilegal acontecer se chegasse ao seu conhecimento.
Entretida com as novas companhias, Mylène quase perdeu a hora de encontrar Anton. Ao olhar para o relógio, viu que faltavam dez minutos para as duas da tarde, horário que combinaram de voltar à mansão dos Dupain. Ela se despediu de todos rapidamente e, antes de sair, avisou às companheiras de Refúgio que, se tudo desse certo, retornaria no dia seguinte por volta do mesmo horário.
Apertando ainda mais o passo, Mylène refez o caminho percorrido anteriormente. Aproximando-se do final do quarteirão, viu que Anton já aguardava.
Mylène acabou tirando um cochilo durante o caminho, sendo acordada quando o cocheiro pediu permissão para abrir a porta da carruagem. Ao entrar em sua residência, foi recebida pelos empregados, como de costume. Ela os dispensou, mas antes que Rosane pudesse se retirar com os outros, Mylène discretamente pediu para que ela ou Laila levassem qualquer resto de almoço para seu quarto.
A empolgação com a conversa no Refúgio fora tanta que Mylène mal tocara na comida que Tanya comprara. Apesar do apetite, ela se sentia aliviada por ter apenas beliscado o “almoço”. Era a hora de relatar como havia sido o “encontro” com o noivo e seu estômago revirava só de pensar em Hugo Dupain.
Em frente ao escritório, Mylène viu que a porta estava fechada e ela decidiu aproveitar a oportunidade para respirar fundo antes de encarar o pai com mais uma de suas atuações. Quando estava prestes a bater pedir permissão para entrar, a voz do pai a deteve.
— Como assim parte da mercadoria está doente?! — O senhor Dupain vociferou.
— Provavelmente não passa de uma gripe simples… Mas para garantir, chamamos o médico da outra vez para dar uma olhada — uma segunda voz respondeu sem muita firmeza.
— Todos sabem que não existe uma “gripe simples” na travessia por Kremlin! Uma gripezinha pode ser fatal e pode colocar tudo a perder! — Uma terceira voz, que Mylène reconheceu com a do senhor Verry, comentou fervorosamente. — Dependendo do diagnóstico, talvez precisemos adiar a movimentação da mercadoria em uma semana.
— Isso é inaceitável! Esse foi o único comprador que exigiu um prazo e pagou muito bem por isso! — o senhor Dupain exclamou.
A pulga atrás da orelha de Mylène voltou a coçar. Como assim a mercadoria estava doente? Seu pai era um comerciante de tecido, mas tecidos não podiam ficar doentes… Estariam falando sobre algum tipo novo de bicho-da-seda?
Estava ávida para ouvir mais, porém um barulho no corredor chamou sua atenção, lembrando-a que, se fosse pega espiando aquela conversa, com certeza o senhor Dupain ficaria sabendo e a sua mãe sofreria as consequências.
Ajustando sua expressão para disfarçar que estava escutando a discussão, ela finalmente bateu à porta
— Loic, agora não! — o senhor Dupain gritou raivoso.
— Sou eu, papai. — Mylène fez de tudo para manter a voz firme, mas conseguia sentir as mãos tremendo. — Acabei de voltar do encontro com Gaspard — ela usou o primeiro nome do noivo para relembrá-lo que os planos dele estavam dando certo, rezando para que isso funcionasse mais uma vez.
Alguns passos rápidos foram ouvidos de dentro do escritório. Segundos depois, a porta se abriu, mas o senhor Dupain deu apenas um passo para fora do cômodo, fechando-a atrás de si.
— O que houve, papai? O senhor está em reunião? Perdão, eu não quis incomodar… — ela fingiu inocência.
— Não é incomodo, querida. Como foi o encontro? — Ele perguntou com calma, mas seu rosto estava vermelho, denunciando agitação anterior.
— Foi ótimo. E esta semana, Gaspard disse que conseguiria arranjar tempo para almoçar comigo todos os dias… — adicionou com um falso sorriso tímido, implorando internamente que sua atuação estivesse boa o suficiente. — Estou tão empolgada!
— Ah! Enfim, uma boa notícia! — O senhor Dupain exclamou. — Vai ser bom para se acostumarem com a presença diária um do outro. Preciso voltar para dentro. Conversamos mais durante o jantar.
— Claro, papai.
A vontade de ver sua mãe era imensa, mas Mylène acreditou que seria mais prudente se resguardar. Suas mãos ainda estavam tremendo. Após se despedir do pai, ela se forçou a não sair correndo dali. Com todo o autocontrole que possuía, subiu as escadas até seu quarto como se não tivesse acabado de testemunhar uma discussão acalorada do pai com seu sócio e um terceiro homem desconhecido sobre um tópico suspeito.
Quando finalmente entrou em seus aposentos, trancou a porta, percebendo que mal estava respirando.
Tecidos não ficavam doentes, mas seres vivos sim. Plantas, animais, pessoas. Verry havia afirmado sobre o quanto uma gripe simples poderia ser fatal na travessia por Kremlin e que seria melhor esperar pelo diagnóstico de um… médico? Mylène estava certa que o homem desconhecido falara que chamaria o mesmo médico de antes e bichos-da-seda não exigiam esse tipo de cuidado. Bichos-da-seda não ficavam gripados. Não era possível que estivessem falando de pessoas, era?
Seu pai era um canalha, mas Mylène não acreditava que ele pudesse chegar a esse nível de maldade.
“Você tem certeza disso?”
Mylène ficou negando para si a tarde inteira, mas com o cair da noite também veio o choque da realidade: seu pai, Verry e a outra voz estavam sim falando de pessoas. Simplesmente não havia como ser diferente. E aquilo era pavoroso, asqueroso e repugnante, características que já atribuía ao senhor Dupain, mas que agora haviam chegado a um patamar ainda pior.
Manter a compostura durante o jantar fora difícil, sua mente parecia estar focada apenas na mais tenebrosa descoberta sobre o seu pai. Só conseguira desviar a própria atenção quando precisou elaborar uma história sobre o local do almoço secreto com Gaspard. Inventou que fora um momento romântico, supervisionado pela senhora Greta, claro. Ainda assim, a refeição passara como um borrão. Não lembrava dos detalhes da conversa, mal se lembrava da despedida, apesar de ter certeza de que ela fora convincente.
De volta ao quarto, Mylène andou de um lado para o outro, pensando no que mais o pai estaria envolvido. Isso a fez refletir sobre a tal “melancolia” da mãe. Avril havia ficado realmente mal após a notícia do falecimento de León, não queria sair do quarto e não queria interagir com ninguém, nem mesmo com a própria filha. Só Mylène sabia o quanto ela se esforçara para a mãe voltar a viver. Quando Avril começou a se recuperar e a incentivar os estudos da filha, houve uma briga muito feia entre seus pais.
Sim, uma briga da qual havia se esquecido até aquele exato momento.
Avril Dupain gritava, acusando o marido de ter matado o filho. Não era uma acusação incomum no calor do momento, mas era esquisito como o seu pai afirmava que aquela fora a “primeira manifestação da doença” para Mylène e todos que perguntassem sobre a saúde da esposa. Sua mãe tinha ficado mal antes disso e estava se recuperando, mas, na época, Mylène apenas achava que era seu pai sendo negligente como sempre. Pelo menos até descobrir a verdade sobre a doença de Avril.
Poderia estar sendo paranoica, mas será que León sabia de algo? Parando para raciocinar, o irmão mais velho, que cursava Direito na Universidade, fora chamado do nada para a Guerra do Leste.
Sim, era seu dever como cidadão beau, mas por mais que não quisesse admitir, sua família tinha condições financeiras o suficiente para impedir que ele fosse chamado. Mylène e sua mãe receberam a notícia sobre a convocação do irmão pelo pai e nem puderam se despedir, pois haviam sido avisadas que era de exercício imediato. Quando León morreu, eles chegaram a receber um comunicado oficial do exército sobre sua morte? Ela não conseguia se lembrar de algo do tipo, só lembrava de ter recebido a notícia pelo senhor Dupain.
E se seu pai realmente tivesse matado seu irmão porque ele havia descoberto alguma coisa sobre seu esquema sujo? E se as acusações de sua mãe fossem verdadeiras, justamente por ela ter evidências sobre a morte de León? E se o seu envenenamento não tivesse a ver com a obsessão de seu pai em fazer parte da nobreza?
E se…
E se Mylène estivesse surtando com todas aquelas suposições?
“Não, você não está surtando”.
Naquele momento seu cérebro fez uma nova conexão e a imagem de Heloise conversando sobre os planos do grupo do De la Source ressurgiu:
“Desde então, eles não param de discutir sobre como precisam encontrar mais pistas relacionadas àquele caso de pessoas desaparecidas".
Seu pai realmente estava envolvido em algum esquema de tráfico humano? Será que havia alguma ligação com o caso que o bando de De la Source tentava solucionar? Mylène tinha muitas perguntas e nenhuma resposta.
Com os pensamentos a mil, checou rapidamente o relógio próximo à estante, e viu que logo seriam onze da noite. Depois de conferir a rotação dos guardas em um pedaço de papel debaixo do travesseiro, ela decidiu: iria ao Refúgio para falar com Henri.
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