— Estamos chegando? — Gaspard perguntou pela milésima vez, observando as últimas cores do pôr do sol na paisagem campestre.
— De novo, Gaspard? Por que a pergunta? — Teresa questionou com um tom divertido, sem mover a cabeça dos ombros dele, ainda segurando a sua mão. — Minha companhia é tão ruim assim?
— Não é isso! — Gaspard exclamou, sentindo suas orelhas ficarem quentes. — É só que o caminho está sendo mais longo do que eu antecipei.
O que pareciam séculos para Gaspard dentro daquela mesma carroça não eram mais do que algumas horas de viagem, pouco menos de um dia. Porém, a cada quilômetro que andavam, seu peito se apertava mais.
“Marianne…”
Depois de tanto tempo, já havia perdido qualquer esperança de revê-la, mas ele estava ali, mais próximo do momento que achou que nunca chegaria. Gaspard se perguntou se sua irmã o reconheceria mesmo depois de tanto tempo, se ela gostaria de vê-lo. O pior cenário se desenhou em sua mente: ele atravessaria o país e Marianne se recusaria a encontrá-lo. Não saberia o que fazer se isso acontecesse.
Teresa apertou a mão de Gaspard para confortá-lo, como se estivesse sentindo a ansiedade que ele parecia emanar. Se não fosse por ela, já teria surtado. Sua presença era reconfortante, embora ainda achasse escandaloso o que estavam fazendo. Algumas vezes ele sequer achava que era fingimento, como naquele momento, em que ela passava sua outra mão em seu cabelo, como se ele fosse um cavalo assustado.
— Ainda temos um pouco de chão para percorrer — Teresa falou com um sorriso na voz. — Agora se acalme. Ficar perguntando não vai nos fazer ir mais rápido.
— Eu só estava curioso… — Ele respondeu sem jeito, encolhendo-se um pouco, sentindo-se como uma criança.
Por que ele inventou de fazer aquilo? O que estava pensando? Será que estava num delírio induzido pelo derrame que Mylène achava que ele tivera? Será que acordaria e estaria em sua cama, com a noiva ao seu lado, e descobriria que tudo isso não era mais que um sonho?
Parecia um sonho. A risada de Teresa soava como um sonho, as suas provocações e a forma como ele havia perdido toda a compostura que tinha nas últimas horas pareciam saídos de um sonho. Toda a jornada até ali parecia surreal.
— Eu estava brincando, Gaspard! — ela sorriu, colocando o cabelo atrás da orelha. A luz do sol fazia com que o castanho do cabelo de Teresa ficasse da cor das madeira característica daquela região. — Você é realmente sempre tão sério assim?
— Mylène me fez a mesma pergunta quando nos conhecemos. — Gaspard deu um meio sorriso, desviando o olhar.
O que Mylène estaria aprontando na sua ausência? Conhecendo a noiva, provavelmente estaria confabulando algum novo plano para salvar a mãe ou estudando medicina secretamente ou os dois, como sempre.
— Já gosto dela. Aposto que nos daríamos bem!
— Ah, com certeza. — Ele deu uma risada curta. — Você parece ser tão impulsiva quanto ela.
— Ah? — Teresa falou com falso ultraje. — Eu sou impulsiva? Não fui eu que decidi sair com uma caravana romani do nada para ir atrás da própria irmã na calada da noite.
Como diria a classe média da capital, touché.
Com um sorriso vitorioso nos lábios, Teresa voltou a alojar a cabeça no ombro direito de Gaspard. Os dois ficaram em silêncio por alguns momentos. Então, um questionamento sobre a mulher ao seu lado retornou aos seus pensamentos, um que havia surgido antes dos dois começarem a jornada até o camp:
Por que ela o ajudava?
Já havia repassado na cabeça todos os diálogos que tiveram, todas as interações. Não havia um bom motivo para Teresa resolver não só trazer um desconhecido para a caravana, como também acreditar na história que ele havia contado. Acreditava que os Romaines eram mais cuidadosos quanto aos seus câmpuri e à sua segurança.
Por mais que pensasse, só conseguia entender ao se colocar em seu lugar: se alguém lhe dissesse que precisava desesperadamente encontrar sua irmã e ele tivesse condições de ajudar, Gaspard nunca se negaria. Ainda assim, era estranho que eles devessem fingir ser amantes, que ela aceitasse passar um dia quase inteiro ao seu lado, precisando aturar uma pessoa que conhecera por uma coincidência do destino durante o festival de primavera. Era muito esforço para nada. Deveria haver alguma razão oculta por trás de suas ações.
— Posso te fazer uma pergunta? — Ele falou com cuidado.
— Outra? Você acabou de me fazer uma! — Teresa riu ao ver a expressão de Gaspard. — Bom, depende. Você vai me deixar experimentar esse seu par de brincos mágicos?
Não esperava que o tópico sobre os artefatos mágicos viesse a tona e a olhou, respondendo sem pensar:
— Experimentar… os brincos?
— Sim! Artefatos mágicos são caros, já tentei participar de leilões, mas nunca consegui vencer uma disputa — ela disse entusiasmada, descolando-se de Gaspard para ficar completamente de frente para ele.
— E por que investir em artefatos? Você já não lê sorte, estrelas e tudo mais? — Perguntou com um gesto vago para os céus, e imitou o movimento de Teresa, também se virando para ela.
— Uau, quando eu penso que estou finalmente indo com a cara de um de vocês, vocês me decepcionam. Incrível! — Teresa comentou de forma cáustica, revirando os olhos. — Sei que deve ser difícil de acreditar, mas magia e leitura da sorte não são a mesma coisa.
Idiota.
Claro que não eram. A magia havia desaparecido do continente. Já a leitura da sorte era algo central da cultura romani. Apesar de conhecer os dois conceitos, soltar um comentário daqueles havia sido mais forte do que a sua lógica e fez parecer que ele nada mais era do que um ignorante supersticioso.
— Você pode experimentar o brinco — falou abruptamente, tentando disfarçar a vergonha de si mesmo. Não haveria problema nenhum em deixá-la usar por alguns minutos, desde que ela não soubesse a proveniência deles.
— Tudo bem, vou esperar ansiosa — ela respondeu sem nenhuma provocação, o que fez com que ele se sentisse mais envergonhado ainda. — Qual é a pergunta que você queria me fazer?
Desviando o olhar, Gaspard escondeu as mãos para Teresa não ver seu nervosismo. Por algum motivo, achava que a resposta da dançarina poderia ajudá-lo a entender como sua irmã reagiria, fazendo com que o pior cenário do reencontro entre os dois desaparecesse da sua mente.
— Por que está me ajudando? — Ele falou rápido demais e se explicou quando percebeu que soou quase rude. — Quer dizer, sou grato pelo que está fazendo por mim, mas é só que…
Ele não conseguiu terminar a frase porque, mais uma vez, Teresa teve uma crise de risos por conta de algo que tinha dito ou feito. Gaspard estava genuinamente preocupado e ela ria da cara dele?
— Bom saber que posso tentar ser o próximo bobo da corte, caso eu queira trocar de emprego… — Gaspard murmurou, num tom autodepreciativo que esperava que escondesse o quanto ficara chateado dessa vez.
— Perdão, Gaspard! — Teresa tratou de se desculpar, ainda que continuasse rindo. — É só que você é tão… tão rígido, contido… Até para fazer uma pergunta é uma cerimônia! Respira, relaxa. Aqui não existem hierarquias. Os únicos bons modos que vou exigir de você são respeito a mim e a minha cultura.
Aparentemente, ele conseguira falhar no pouco que ela exigira dele. Passou uma mão pelo cabelo quase inconscientemente, sem saber direito como agir.
— Mas respondendo a sua pergunta, confesso que também me peguei questionando a mesma coisa. — Ela voltou a falar, dessa vez com o semblante mais sério. — Eu não sei quem você é de fato, apesar de não ter dúvidas do seu parentesco com Marianne. Como te disse lá no Lapin Sauvage, quem garante que você realmente não quer raptá-la ou algo do tipo? E você ainda é do exército… Poderia muito bem estar mentindo para fazer algo contra o meu camp.
— Eu nunca faria isso… — Gaspard falou rápido demais e Teresa levantou as sobrancelhas, encarando-o.
— Como eu posso ter certeza disso? Mas algo me diz que você está falando a verdade — Teresa disse, voltando a sorrir. — É complicado. Acho que apenas resolvi dar um salto no escuro. Você parecia tão perdido, tão desesperado, sabe? Nem o melhor dos atores do camp conseguiria fingir tão bem. E enquanto corríamos pelas ruas da capital, pensei que, se eu estivesse na mesma situação, buscando notícias da minha irmã, eu gostaria que alguém fizesse o mesmo que estou fazendo por você agora.
Gaspard concordou com a cabeça, olhando para os próprios joelhos. Essa resposta era lógica, algo que fazia sentido. Ele não entendia nada de intuição e sentimentos, mas entendia de honra e confiança. Sentiu-se extremamente grato por aquela mulher depositar coisas tão grandes em si, e tudo em troca do quê? Usar um artefato mágico por alguns momentos.
A troca entre eles ainda parecia tão desbalanceada, ao mesmo tempo que genuína. Alguma vez já presenciara algo do tipo na sociedade Beau?
— Agora, se quiser a minha opinião, acho que seria uma boa ideia tentar a carreira de bobo da corte. Tenho certeza que você faria mais pessoas rirem com a sua falta de senso de humor.
Dessa vez, o Capitão do Oeste não conseguiu conter um pequeno sorriso.
— Eu entraria para a história como o pior bobo da corte de todos.
— Mas ainda seria melhor do que fazer parte do exército Beau… — Teresa comentou rapidamente, num tom mais baixo e sombrio, que Gaspard ainda não tinha presenciado. Depois se levantou e voltou a falar da mesma forma que antes. — Vamos. Precisamos descansar para a vigília mais tarde.
[Continua na Parte 2]
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