Aleksey estava fodido.
Estava em uma plataforma que pendia de uma árvore com pelo menos quinze metros de altura. A área dedicada à Madeira era composta por uma pequena floresta com dezenas de árvores como aquela, de onde se dependuravam plataformas, cada uma em uma altura diferente. Assim que subira na árvore, Aleksey percebera que a pessoa que desenhara essa seção havia calculado a distância entre elas para que não fosse possível passar de uma a outra só com saltos, sem ajuda de magia. Mesmo se estivessem mais próximas, não havia risco nenhum de Aleksey tentar trapacear dessa forma.
Pulou na plataforma para testar a resistência das cordas, e quando elas começaram a se desmanchar em suas mãos, confirmou suas suspeitas: um impacto muito grande as arrebentaria e ele despencaria dali. Excelente! Exatamente o que ele precisava naquela prova. Se ele desse sorte, iriam precisar só de mais algumas semanas de cama enquanto esperava seus ossos remendarem novamente.
Não era possível. Se fosse só ele procurando um padrão para as provas anteriores que tinham estudado, aceitaria o erro, mas com Ivan? Ivan nunca errava. Se ele havia dito que seria uma prova de perícia e habilidade, então seria uma prova de perícia e habilidade. Era estatisticamente improvável que fosse de resistência, muito menos de resistência e habilidade, como parecia ser o caso. Aleksey lembrava das palavras perfeitamente porque havia tirado sarro de Ivan por uma semana pela forma pomposa como ele as dissera pela primeira vez.
Mas ali estava ele, vivendo o estatisticamente improvável. Bem, a sorte nunca estivera ao favor de Aleksey e não sabia por que achou que dessa vez seria diferente. O que restava era lidar com as circunstâncias da melhor maneira possível, o que naquele momento era sair de lá com o título de Alquimista Extraordinária, apesar de tudo estar contra ele, para poder esfregar nas fuças de seu tio. Queria mostrar que não importava o que Yakov fizesse, ele era incapaz de derrubar Aleksey. Portanto, precisava se apressar se quisesse vencer.
Olhou para a lateral esquerda, na seção do Fogo onde Morena começara a prova, mas só havia escuridão. Mordeu o lábio inferior, apreensivo. Fogo estava longe de ser uma das suas afinidades – que eram madeira, terra e água –, mas não se chegava à prova de Extraordinária sem conhecer todos os subdomínios de um elemento, e parecia que aquela prova iria obrigá-los a lidar com a escuridão. Se a prova fosse manipulá-las, ele nunca passaria dali. Não, esse seria o último obstáculo que enfrentaria.
Do lado direito, as árvores abriam caminho para um lago e Aleksey engoliu em seco, concluindo que se ele conseguisse terminar sua seção, era por ali que seguiria. Pelo menos a água ajudaria a aliviar qualquer dor que viesse a sentir, mesmo com o feitiço que Ivan havia costurado em suas calças. Olhou novamente para as duas seções vizinhas da prova, franzindo a testa.
Eles queriam que lidassem com sombras, um sub-elemento que até algumas especialistas em Fogo não sabiam controlar direito, e que, na parte de Água, lidassem com um… laguinho? Que sequer estava congelado?
Tinha que ter alguma pegadinha.
Ele descobriria em breve, assim que chegasse lá. Primeiro, precisava passar pela madeira. Respirou fundo, fechando os olhos, se concentrando na tarefa à frente. A chave para o controle da magia era uma mente limpa, focada, consciente de cada parte do seu corpo e dos fluxos de magia ao seu redor. Desesperar-se não o ajudaria em nada. Ele já tinha passado por situações muito piores do que essa prova estúpida, e conseguiria passar por ela também.
O primeiro salto foi forte demais. A plataforma tremeu sob seus pés e um dos lados da corda arrebentou, mas ele foi rápido o suficiente para se segurar na outra e subir nela até chegar no galho mais próximo. Ele se balançou para o próximo salto, e quase não alcançou a plataforma, segurando-se por pouco no piso de madeira. Seu coração parecia prestes a explodir, mas ele se levantou, os músculos dos seus braços tremendo com o esforço.
Só acertou o ritmo depois da quinta plataforma: se tivesse o impulso e a postura corretas, era fácil usar o vento para guiá-lo. Depois que pegara o jeito, começou a reparar nas árvores e nas plataformas ao redor. Não era possível que a prova fosse só aquilo, só encontrar o controle perfeito e passar por um caminhozinho. Eles faziam esse tipo de coisa no primeiro ano de treinamento, quando não tinham nem quinze anos completos, não era algo digno de uma prova Extraordinária. Com alguns saltos, confirmou a sua hipótese de que havia um feitiço que o impedia de avançar sem ter completado a tarefa daquela área, seja lá qual fosse a tal tarefa.
Nara, a especialista em água, surgiu enquanto ele tentava entender se havia algum padrão, as heras das árvores puxando-a da água. Ela estava completamente seca e parou na primeira plataforma logo depois da seção da água, a alguns metros de Aleksey. Ela sorriu e levantou uma sobrancelha quando viu Aleksey, numa provocação clara.
— Exibida — falou ele, e Nara gargalhou.
— Atrasado — retrucou ela.
Nara fez um gesto teatral com a mão e Aleksey sentiu ela puxar a magia do lago atrás de si para alimentar as árvores.
Essa era a beleza da magia elemental: dentro dos ciclos de criação e destruição, dava para utilizar qualquer um dos elementos e ter efeitos parecidos. A água alimentava a madeira, então Nara sequer precisou mudar a fonte de sua magia. Aleksey observou com um meio sorriso enquanto ela construía uma ponte de heras que a acompanhava enquanto ela caminhava entre as plataformas. Nara lhe lançou uma piscadela e um beijinho de despedida, e ele revirou os olhos. Adiantaria muito ela chegar rápido do outro lado e descobrir que não conseguia passar.
Aleksey se virou para o caminho que havia feito, observando as árvores, antes de olhar para a plataforma em que se encontrava. Ele conseguia sentir uma pulsação embaixo da magia que corria em suas veias, como um coração batendo devagar embaixo da terra. Balançou um pouco a plataforma até encostar no tronco da árvore, fechando os olhos, tentando igualar as batidas do seu coração com a frequência da magia na raiz das árvores, infiltrando-se aos poucos nas linhas de energia que as conectavam. Toda floresta era uma família, e em equilíbrio, as árvores sempre ficavam mais fortes se estivessem juntas, construindo um padrão único e harmonioso impossível de ser replicado.
Só que nem todas as famílias eram harmoniosas, e nem todas as florestas estavam em equilíbrio. No emaranhado de fios de magia, as árvores dissonantes piscavam como fogos de artifício no Dia de Reis.
Eram três padrões diferentes, cada um formando um caminho tortuoso. Aleksey sabia bem como funcionavam esses enigmas, nada disso era uma novidade: era preciso deixar o fluxo de magia uniforme para liberar seu acesso à próxima seção, fazer com que houvesse equilíbrio pelo menos por alguns instantes para que a barreira abaixasse. Focou nas árvores que via como pretas, que serpenteavam num caminho em direção ao lago. Em algum lugar da arena, Nara era um foco de magia parado, provavelmente esperando o próximo passo de Aleksey para copiá-lo, porque era a cara dela tentar diminuir o próprio esforço.
Ele não podia culpá-la. Normalmente, o enigma que os aguardaria seria muito mais difícil do que aquilo e poderia demorar muito tempo para desvendar. Talvez estivessem pegando leve na parte de raciocínio para pegar mais pesado no quesito físico, mas só de pensar nisso, Aleksey sentiu calafrios.
Com o caminho traçado, foi a vez dele se exibir: com um pequeno truque envolvendo diferença de pressão, caminhou no ar, entre as plataformas, como se estivesse passeando calmamente. Acenou para Nara, esperando que ela o seguisse – e fizesse o caminho para voltar de onde ela viera, não o que a faria ir para a seção do Fogo. Se ela queria se aproveitar dele, que pelo menos ele se divertisse no processo. Era um gasto desnecessário de energia e de estamina numa prova na qual ele já estava em desvantagem, mas não seria esse pequeno detalhe que o impediria de ser mais extravagante do que Nara e de atrapalhá-la.
A mãe dele sempre dizia que seu orgulho seria sua ruína, mas todo mundo precisava de um defeito fatal, e o orgulho lhe cabia muito bem.
Quando chegou na última árvore e conseguiu saltar para a beirada do lago, respirou fundo uma, duas, três vezes para se acalmar, e aos poucos abrir caminho para as outras energias elementais. Primeiro sentiu sua perna esquerda latejando, os músculos repuxando numa reclamação pelo esforço dos últimos minutos.
A dor que viria mais tarde seria de matar, mas esse era um problema para o futuro.
Depois disso, retomou a consciência das suas mãos, dos seus braços, do seu pescoço, do seu corpo como todo. No entanto, algo parecia esquisito, fora do lugar. A floresta ainda pulsava atrás dele, e o lago repousava à sua frente, cálido e cristalino. Nada daquilo parecia real, era como se fosse um sonho esquisito em que ele estivesse em seu corpo e assistisse a tudo de cima ao mesmo tempo.
Não estava faltando algo naquela prova? Parecia que havia algo faltando. Ele sentia que algo estava faltando. Não podia ser só aquilo. Ao mesmo tempo, tudo parecia estar perfeitamente normal, no lugar exato, na ordem que devia estar.
Quando finalmente começou a distinguir os sons e sua visão voltou ao foco, as coisas começaram a parecer mais reais. O cheiro de água e do óleo das lamparinas o deixou levemente enjoado e Aleksey olhou para cima, se lembrando de que o lago era a seção mais próxima da plateia. Todo mundo parecia muito animado, gritando coisas que ele não conseguia entender. Tinha tanta gente assim para ver a prova deles? Ninguém tinha mais o que fazer? A semana de prova dos alunos mais novos não começava dali alguns dias? Se os alunos do quarto ano fossem mal na matéria que ele lecionava por estarem lá, perdendo tempo de estudo para ver essa prova, eles iam se arrepender amargamente.
Seus olhos desceram pela arquibancada quase involuntariamente, procurando por Ivan. Morena dissera que ele estaria mais para a frente, será que estava na primeira fileira? O que ele acharia dessa prova sem sentido? O que diria do erro de cálculo que cometeu? Conseguia até imaginá-lo com um biquinho contrariado, explicando como improvável não era o mesmo que impossível, logo, não estava errado. Aleksey sorriu suavemente, imaginando as milhares de observações que viriam sobre a prova, com os comentários de sempre sobre como Aleksey poderia melhorar nisso ou naquilo, a voz de Ivan embalando seu cansaço. Não achava ruim, pelo contrário – a única pessoa que Ivan não criticava era Morena, e Aleksey não tinha certeza se não ser alvo do escrutínio de Ivan era algo necessariamente bom.
Mas em vez de achá-lo, deu de cara com a última pessoa que queria ver no universo.
Seu tio.
E então tudo fez sentido.
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais
Edição: Marina Orli e Val Alves
Preparação: Laura Pohl
Revisão: Lavínia Rocha
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Vitor Castrillo
Ilustração: Júpiter Figueiredo
Agradecimentos especiais aos Betas: Gih Alves, Franklin Teixeira, Thiago Lee, Ana Elisa, Fernanda Nia, Dayse Dantas e Diego Matioli
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