Faz duas semanas desde que estou de volta e meu pai finalmente conseguiu concluir toda a papelada que envolvia minha transferência de escola. Por isso, nesta segunda estou no banco de trás do carro da minha tia Anna com seus dois filhos, Caio e Luna, ambos com feições indígenas e pele laranja herdada da família do pai. Estamos indo para o colégio e observo atentamente o caminho enquanto dirigimos.
— Está no segundo ano, certo, Uriel? — minha tia olha pelo retrovisor enquanto me pergunta.
— Sim. — respondo mecanicamente. Não estou com muito ânimo para manter conversas. Não estou com muito ânimo para nada.
— Pode ser que você fique na minha sala. — Luna olha para mim e sorri. — Ah, é tão desesperador e chato. Não vejo a hora dessa merda toda de escola acabar!
— Ei, garota, olha essa boca. — tia Anna diz do volante, mas exibe um sorriso muito parecido com o de Caio, já estão acostumados ao total desprezo de Luna pelo mundo ao seu redor, principalmente por coisas como a escola.
Luna e Tia Anna continuam conversando sobre algum curso de desenho no qual Luna está interessada e eu e Caio apenas deixamos a conversa fluir, por isso permanecemos em silêncio até termos chegado.
— Os alunos do Terceirão estão se reunindo na biblioteca para discutir sobre opções de curso no primeiro horário. Vejo vocês depois. — ele se despede da gente abanando as costas da mão enquanto pega um caminho que deve levar em direção a biblioteca.
— Precisamos ver em qual segundo te encaixaram. Vem, te mostro onde fica a secretaria. — Luna parece um pouco mais áspera e arisca dentro do colégio. Acho que não levei tão a sério o quanto ela realmente parece odiar tudo isso.
Ficamos um tempo na sala de espera da secretaria até que somos atendidos, porém os sofás são bastante confortáveis e acabo não me incomodando. No fim, uma mulher de cabelos longos ondulados, que assumo ser a supervisora, me diz que fui colocado no segundo ano B.
— Droga, cara, estou no segundo A. Mas acho que vai ser melhor para você. Te vejo no intervalo. — Luna diz. Então ela lança um sorriso resignado e vai na direção oposta daquela em que eu e a supervisora estamos indo. Chegamos rapidamente ao nosso destino.
A sala está completa, ao que parece, e um homem bigodudo de aspecto rigoroso e cabelos grisalhos parece estar passando um sermão em todo a turma.
— Sei que acham que jogos e ficadas são mais importantes que os deveres em dia, mas já estou farto de desculpas esfarrapadas, moleques. Da próxima vez receberão mais que apenas uma advertência. Estejam avisados que minha tolerân... Ah! Bom dia, Sra. Cristina.
Ele finalmente nos percebe parados a porta. Sra. Cristina, a supervisora, me apresenta como um novato e sou designado a um local nas últimas fileiras. Ela se retira rapidamente, acenando para o professor bigodudo com um sorriso muito íntimo.
— Muito bem. Senhor? — o professor se dirige exclusivamente a mim e isso me deixa tão nervoso que não consigo reparar em nada. — Vamos. Você tem um nome, certo? Não?
— Uriel. Meu nome é Uriel, mas meu pai me chama de Uri. — droga. Me arrependo no mesmo momento em que as palavras deixam minha boca e escuto risadinhas por toda a sala.
— Ah, claro. Senhor Uri. — o professor também parece sádico o suficiente para se divertir com a situação. — Me chamo Douglas. Senhor Douglas, para alunos. E, dito isso, poderia me dizer algo sobre a Inconfidência Mineira?
Fico nervoso novamente e penso que, mesmo se soubesse, não conseguiria responder corretamente. Mas, de alguma forma, consigo juntar forças o suficiente para falar.
— Me desculpe, Senhor. Estávamos no início dos anos de 1500 e descobrimento do Brasil na minha antiga escola. — Douglas, senhor Douglas, faz uma careta.
— Não acredito que aceitaram alguém com esse nível de atraso. Por isso caímos no nível dos vestibulares. Enfim, preciso que você arrume alguém para ajuda-lo, jovem. O mais rápido o possível.
— Sim, Senhor. — não foi nem o primeiro horário e eu já estou completamente cansado.
— Então alunos, alguém se voluntaria a ajudar o novato?
Duas mãos se erguem na primeira fila e mais uma na penúltima, ao lado da garota sentada a minha frente.
— Eu também.
Dessa vez a mão que se ergue é bem ao meu lado e meus olhos são imediatamente atraídos por ela. Parece tão firme e sua coloração escura é tão linda que quase me pego desejando ser tocado por ela ali mesmo.
— Bem, Léo, Luíza, Raissa e Hugo. Você pode escolher, senhor Uriel. — Douglas exibe uma expressão contrariada e desejosa de resolver logo o meu problema.
Encaro rapidamente todos os alunos que levantaram a mão e no mesmo instante tenho minha resposta.
— Pode ser ele. — aponto para o garoto ao meu lado, Hugo.
— Tudo bem, senhor Hugo, ele agora está em suas mãos. Faça um bom trabalho.
— Pode deixar, Senhor Douglas. — Hugo diz e se volta para mim.
É engraçado como não reparei nele no instante em que cruzei a porta. Aquele rosto ficou na minha mente ao longo dessas duas semanas e agora ele exibe o mesmo sorriso vivaz de quando nos vimos pela primeira vez no restaurante.
— Obrigado. — minha voz sai perfeitamente normal pela primeira vez desde que entrei na sala.
— Se prepare, não pegarei leve. — ele responde e sorri novamente antes de se virar para a frente.
É isso. Aqui está. Não me concentro verdadeiramente em mais nenhuma aula e quando saio para encontrar Luna no intervalo ainda estou pensando no sorriso e em como não conseguia ignorar a presença de Hugo ao meu lado durante todos os minutos. Sinto algo quente na barriga enquanto caminho e começo a sorrir sem nenhum motivo aparente. Está se tornando cada vez mais fácil.
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