Hoje é quarta, dois dias se passaram desde que comecei no novo colégio. O uniforme é apenas jeans básico e uma camisa azul com o logo da escola, o que combina com meu tom de pele pardo e meu cabelo, que é um misto de fios castanhos claros e escuros.
As aulas da manhã foram bem tranquilas, com exceção de química. Dessa forma, Hugo acabou encarregado de ser meu tutor de reforço em química e história. Nos encontraremos hoje à tarde na biblioteca comunitária do centro da cidade. Estou ansioso.
Acabo de sair da casa da minha avó materna, que não fica longe do centro, e vou andando até a biblioteca. O clima na casa não estava tão pesado e sofrível quanto nas últimas visitas, mas ainda assim chorei ao ver o altar para minha mãe e Tio Lúcio, um outro filho que minha avó perdeu há dois anos.
As memórias da minha mãe comendo e rindo à mesa com toda nossa família reunida durante as celebrações de finais de ano voltaram tão vivamente que, se eu fechasse os olhos, tudo poderia estar acontecendo naquele instante.
— Você chegou cedo, ótimo! Gosto de pessoas pontuais. — Hugo está sorrindo para mim parado no beiral da enorme porta de vidro. — Vamos entrar?
— Sim. — respondo voltando dos meus pensamentos.
Quando estou com Hugo, mesmo que só tenhamos nos conhecido há pouco tempo, minha mente e meu coração parecem se acalmar e dobrarem de tamanho, como se eu estivesse abrindo espaço para ele caber dentro de mim. Ele me faz sentir como se não existisse apenas dor no mundo. Existem coisas boas também, Hugo é uma coisa boa que está acontecendo comigo, mesmo que eu ainda não entenda de que forma ele me vê.
— Vamos começar por qual matéria? — pergunto enquanto nos sentamos à mesa.
— História. Os horários estão no início da semana, então nos deixa menos tempo. — ele pega suas anotações e gesticula para que eu faça o mesmo.
Horas e horas se passam enquanto discutimos todos os assuntos que eles estudaram até agora e acabo precisando de muito menos tempo que o esperado para ficar por dentro de tudo. Já são cinco e meia quando nos arrumamos para ir embora. Ele está em pé, puxando nervosamente as duas alças da mochila enquanto termino de ajeitar minhas coisas.
— Quero escolher um livro antes de ir embora, topa me ajudar? — ele parece estar se esforçando para fazer a pergunta soar casual e eu fico feliz por poder fazer algo por ele em troca de toda a gentileza que ele demonstrou até agora.
— Claro, mas serei bastante exigente. — sorrio para ele, que retribui afavelmente.
Passamos por uma infinidade de corredores, folheando páginas e procurando títulos e sinopses interessantes, mas Hugo não se interessou por nada ainda. Eu também não achei nenhum livro parecido com os que eu estou acostumado a ler. Até que...
— Ah! Meu Deus! Não acredito que eles têm ISSO aqui! — estou eufórico enquanto retiro o livro da prateleira.
— O que aconteceu? — Hugo, que estava um pouco a frente, se junto a mim franzindo a testa em curiosidade.
— Você já leu A Rainha Vermelha? — estou menos eufórico agora e adquiro um tom apreensivo.
— Não. É bom? — ele está olhando para mim intrigado.
— É só a melhor saga de fantasia que li em todo a minha vida. — acho que grito a última parte.
— Ei, calma aí. É uma acusação muita séria e você mal tem dezessete anos, certo? — ele empurra meu braço de um jeito brincalhão.
— Tenho dezesseis. — coloco o livro nas suas mãos. — Eles têm todos os quatro aqui. Vamos, comece hoje e depois me diga o que achou.
— Okay, levarei ele. — ele bate o livro contra o peito e pisca para mim.
Nos encaminhamos para a central de registro de empréstimos e enquanto Hugo está conversando com a bibliotecária me direciono a seção de romance para dar uma olhada. Faz um bom tempo que não tenho tido vontade de ler nada, mas acabo pensando em pedir Hugo uma indicação. Assim poderemos nos aproximar mais. Contudo, acabo afastando o pensamento pra longe. Ele termina o registro e vem na minha direção.
— Bom, tudo certo. Afim de um sorvete? — ele está com as mãos enfiadas nos bolsos da calça depois de colocar o livro na mochila.
— Desculpe. Acho que vai ter que ficar pra próxima. — tenho que ir para casa dos meus avós paternos agora, com Luna e papai. — Podemos marcar um outro dia, digo, se você quiser. — olho para ele esperançoso.
— Claro. Claro. Pode ser depois da nossa próxima aula de reforço também. Mas acho que você não vai precisar de muitas, afinal de contas. — algo no seu tom de voz soa meio...triste?
— Sim. Quando vai ser a próxima aula? — estou ansioso para tomar sorvete e poder passar a maior quantidade de tempo que puder com esse garoto. Algo nele me atrai como um imã.
— Ainda não sei, tenho que checar meus horários de estudo e trabalho para ver quando estarei disponível novamente. Você tem WhatsApp?
— Sim. Tenho. — Dou meu número para ele e começamos a andar em direção a saída.
— Você é bastante inteligente, Uri. Tudo bem se eu te chamar da mesma forma que seu pai? — ele sorri ao se lembrar do meu primeiro dia na escola.
— Acho que está tranquilo — estamos na calçada agora, em frente a biblioteca. — e não sou tão inteligente assim.
Ele se aproxima de mim, bem perto do ouvido e sussurra.
— Eu te acho genial. Ei, o que é isso?
Ainda estou atordoado pelo que ele acabou de fazer e fico ainda mais quando ele leva sua mão ao lado direito do meu pescoço. Tenho uma pequena cicatriz em forma de espiral lá. Minha mãe disse que não sabe como a consegui, mas foi pouco depois que nasci.
— É uma cicatriz. — consigo sentir o calor começando entre minhas pernas e subindo para a barriga. Hugo ainda está me tocando, ele desliza seus dedos suavemente pela cicatriz e preciso de todo meu auto controle para não soltar um gemido de prazer. — Tenho ela há um longo tempo, acho que a recebi logo depois que nasci, mesmo assim, considero como uma daquelas marcas de nascença.
— Nunca vi algo assim antes. — sua mão volta para o bolso da calça, mas o calor ainda está percorrendo todas as passagens dentro de mim. — Tem uma textura gostosa.
Preciso virar o rosto para impedir que ele consiga ver o sangue que eu consigo sentir invadir minha face. Foco em outra lugar e vejo Luna e meu pai acenando do outro lado da rua. Eles estão parados ao lado do carro e me pergunto a quanto tempo estão lá.
— Eles chegaram. Preciso ir. Obrigado novamente, por tudo que fez por mim. — saio andando depressa sem esperar a resposta dele.
— Boa escolha, Urizinho. Hugo é uma das poucas pessoas que não são babacas naquela escola e, provavelmente, em toda a cidade. — Luna está jorrando seu cinismo novamente e meu pai ri. Ainda estou envergonhado demais para expressar qualquer reação.
— Quando vai me apresentar a ele, Uri? — meu pai abre um sorriso branco como quando tenta acalmar um paciente e fazer ele cooperar mais com o tratamento. — Não quer convidá-lo para vir conosco?
Não entendo por que ele diz isso. Como eu o convidaria agora? Mas me viro na direção oposta e Hugo ainda está na calçada em frente a biblioteca, olhando para nós. Meu pai acena para ele, que acena de volta e depois começa a andar de novo para casa, envergonhado.
— Acho que não vai rolar, Tio. Pelo visto os dois são tímidos demais. — Luna está sorrindo provocantemente para mim.
— Papai, ele é só um amigo que está me ajudando com as matérias atrasadas. — A verdade dessas palavras me faz sentir um vazio de alguma forma. O modo como papai e Luna reagiram a isso me faz pensar que talvez Hugo também tivesse sentido tudo o que eu senti, mas afasto minhas ilusões para longe.
— Se amigos se tocam daquela maneira, então não estou fazendo essa coisa de amizade do jeito certo. — Luna diz com um tom profundo e meu pai explode em gargalhadas.
— Vamos. — ele se recupera e passa os braços ao redor dos meus ombros. —Não queremos que os bolinhos de queijo da vovó esfriem.
Entramos no carro e ele dá partida. Luna vai no banco da frente e posso ver eles sorrindo durante todo o caminho. Ainda estou um pouco envergonhado, mas não consigo evitar um sorriso também.
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