— Um sorvete de limão e um misto de creme e chocolate, por favor. — Hugo faz o pedido a um atendente que veio até nossa a mesa. Nem precisamos de um menu, já sabíamos o sabor preferido um do outro. Graças a aquela noite.
Pela manhã na escola apenas trocamos bilhetinhos reclamando de como os horários passam incrivelmente devagar nas sextas e segundas, e em qualquer outro dia entre elas, e mantivemos o distanciamento normal. Continuamos com as mesmas conversas cotidianas relacionadas ao colégio e nos despedimos com acenos educados. Nada demais.
Quando deu a hora de encontra-lo na biblioteca comunitária cheguei com dez minutos de antecedência, Hugo chegou com cinco. Ele sorriu pra mim e passamos umas duas horas e meia estudando, o que foi o suficiente para encerrar minhas aulas de reforço. Hugo ainda não teve tempo de terminar o primeiro livro de A rainha vermelha, então não pegamos o segundo. Estou aliviado por não ter que tomar mais o tempo de um garoto tão ocupado, que agora olha pra mim como se eu fosse a coisa mais encantadora do mundo, sentado no outro lado da mesa, de frente pra mim. Estamos esperando os sorvetes, mas parece haver muitos pedidos na nossa frente.
— Devo encarar você saindo comigo como um agradecimento de despedida por apenas duas aulas de reforço? — Hugo dá um sorriso de lado, sem exibir os dentes. Uma luz sarcástica ilumina sua feição.
— Você pode encarar como quiser. — eu digo e tento manter uma expressão confiante, bem divergente da expressão contemplativa que vinha mostrando até então.
— Vou sentir falta de ensinar coisas a você, Uri. Espero que não se afaste de mim agora que não tenho mais uma desculpa para te ver. — ele me encara intensamente e o sorriso no canto do rosto se alonga mais. Hugo está começando um jogo no qual ele é excepcionalmente bom e no qual eu sou uma terrível causa perdida. — Isso é, considerando que eu precise de desculpas para te ver. Elas ainda são necessárias?
Engulo em seco. Olho ao redor para todas as pessoas em nossa volta na grande sorveteria. Há tantos casais, de todas as formas, e muitas famílias também. Até algumas pessoas sozinhas aqui e ali, que parecem estar se divertindo bastante sem ninguém. Tento deixar o clima do ambiente tomar conta de mim, observando as faixas vermelha e branco e as janelas de vidro, que se abrem em cada parede da construção. Depois de vaguear por alguns instantes e controlar meu nervosismo, decido me tornar um jogador melhor do tenho sido até agora.
— Você nunca precisou de desculpas desde o início, Go. Por que elas importariam agora? — coloco um sorriso brincalhão e apoio o queixo nos dedos enquanto me inclino e ergo o rosto para que fique na altura do dele. Criei um apelido também. A maneira como eu reagi parece ter o surpreendido, porque ele perde o sorriso zombeteiro e me encara agora. Sua expressão parece vacilante, então acabo franzindo a testa, fechando o sorriso e virando um pouco a cabeça para o lado. Tudo isso era uma pergunta bem explícita entre nós: quem está no comando agora?
Para minha infelicidade, Hugo se recupera rápido demais. Seus olhos focam na minha mão, e quase pulo do assento de couro da cadeira, quando ele a puxa e segura meus dedos entre os seus, virando a palma para cima. Ele leva seu polegar até o centro e começa deslizá-lo. Sinto o sangue começando a correr nas minhas veias, mas não vou recuar dessa vez, e acabo colocando minha outra mão sobre a que ele usa para me acariciar. Ele para o movimento e me encara. Suas mãos ásperas contra as minhas, que são admiravelmente suaves.
— Se encantando com as mãos de alguém que nunca teve que dar duro na vida? — um tom cínico toma conta da minha voz, mas me sinto estranhamente envergonhado por ser tocado por alguém cujas mãos já fizeram tantas coisas úteis e importantes. Cujas mãos poderiam fazer tanto mais, se eu apenas não fosse tão covarde.
— Sim. Há alguma parte sua que seja menos que adorável? — ele se afasta do toque e nós dois voltamos nossas mãos para uma posição rente à mesa. Os braços alinhados como dois soldados. — Não importa, mesmo se houvesse, tenho certeza que ainda assim eu a acharia incrível.
Controlo a vergonha e o calor que suas palavras causam em mim. Consigo sentir minha respiração seguindo um caminho errático, mas não posso continuar assim. Quero dizer a Hugo que suas mãos são incríveis, que elas contam toda uma história e ele ainda é tão jovem. Preciso falar que se um de nós dois não é nada menos que adorável, é ele, e não eu. Mas apenas fico em silêncio, porque os sorvetes chegaram.
— Obrigado. — nós dois dizemos em uníssono ao atendente, que sorri de uma maneira forçada e se dirige para outras mesas. Nossos olhares agora são completamente direcionados aos sorvetes em uma elegante vasilha redonda, com as cores branco e vermelho, na nossa frente.
— Hmm. — eu digo após provar o sorvete misto. É uma das coisas mais gostosas que já provei. Hugo acompanha minha aprovação, mas voltado ao seu sorvete de limão.
— Por favor, Uri. Você tem que provar isso. — ele deixa a vasilha no lado oposto da mesa enquanto empurra a cadeira com rodinhas até estar bem ao meu lado. Diferente do nervosismo que senti com nossa conversa mais cedo, o que sinto agora é uma estranha familiaridade. Não é a primeira vez que nos colocamos tão próximos um do outro e meu corpo encontra o encaixe mais confortável em questão de segundos. — Podemos fazer uma troca. Você prova um pouco do meu sorvete de limão e eu experimento o seu misto. Pode ser? — balanço a cabeça em acordo e Hugo pega a vasilha com o sorvete de volta.
— Então... — seu olhar é atencioso e ele respira duas vezes enquanto me observa. — posso provar seu sabor preferido? Ou você quer tentar primeiro? — sua expressão passa perto de desafiadora agora e não entendo o porquê.
— Tudo bem, eu vou primeiro. — levo minha colher até a vasilha dele, mas ele afasta o sorvete do meu alcance. — Não, Uri. Não é assim que funciona. — ele volta a sorri e ergue as sobrancelhas. Imediatamente entendo que fui pego. Maldito Hugo. Mas me recomponho e consigo soar, senão provocante, ao menos indiferente.
— Como vai funcionar, então? — nossos olhares se encontram novamente por não sei qual vez nessa tarde e sinto um frio nervoso por baixo da pele.
— Assim. — Hugo enfia sua colher bem fundo no sorvete de limão e depois estende ela em frente a minha boca. Esperava por isso, então apenas abro a boca educadamente e o deixo entrar. O sorvete de limão é realmente maravilhoso, Hugo retira a colher suavemente.
— O que achou, Uri? — ele devolve a colher para a vasilha e estende a mão, limpando o canto da minha boca. Me controlo para não estremecer de susto e de... desejo.
Sinto meu rosto completamente despido de qualquer expressão defensiva e provocante quando respondo, vulneravelmente e com calma.
— Estava muito saboroso. Mas ainda acho creme e chocolate meu sabor preferido.
— Minha vez de provar então. Vamos em frente. — sua expressão também assume apenas um brilho ansioso e isso me deixa muito mais destoante do que quando ele estava provocando.
Pego uma boa quantidade do sorvete misto com a colher e a estendo para Hugo, que já espera com a boca aberta. Porém, minha mão treme e acabo deixando tudo cair na blusa dele. Ele se afasta com uma expressão surpresa e eu fico completamente sem reação, mas depois me levanto e corro em direção ao banheiro.
Estou reunindo uma boa quantidade de papel toalha para poder limpar Hugo quando sinto sua voz atrás de mim.
— Você não pode simplesmente bagunçar as coisas e fugir. Isso não é legal. — ele me encurrala entre seu corpo e a pia. Suspiro um pouco e ergo a mão com uma quantidade de papéis muito maior que a necessária para limpar sua blusa.
— Não estava fugindo. Estava arrumando um jeito de concertar tudo. — minhas palavras saem nervosas e cambaleantes. Penso que nunca serei tão bom quanto Hugo é em saber como deve se portar e o que dizer. — Mas pelo visto você deve ter algum problema com esperar o tempo dos outros. — meu tom agora soa incrivelmente perto de agressivo enquanto bato os papéis contra o peito dele.
— Sou incrivelmente paciente e respeitoso, Uri. Saiba disso. Só não quero ver as pessoas de quem gosto correndo para longe de mim. — suas palavras agem como laços ao meu redor, me prendendo cada vez mais ao que sinto por ele.
— Só queria limpar você. — não havia nada nada além de suavidade no meu modo de dizer agora.
Ele leva os papéis até a pia, molha um pouco, e então os entrega para mim novamente.
— Vá em frente. — sua expressão é incrivelmente terna agora e ele parece emitir algo próximo de vergonha, não me lembro de tê-lo visto assim antes.
Me aproximo dele novamente e pressiono os papéis contra sua barriga, fazendo movimento de vai e vem e tirando o grosso da mancha, não vai dar pra limpar completamente apenas com isso e nós dois sabemos. Sinto a respiração de Hugo perto de mim e ela vai ficando cada vez mais carregada. O peso de seu abdômen contra a minha mão me deixa completamente extasiado e continuamos assim por muito mais tempo do que o necessário. Nos afastamos sem dizer nada.
— Vamos voltar. — observo a porta aberta e penso que ainda não terminamos o que viemos fazer aqui. — Você ainda não provou o sorvete misto. — saio caminhando, de costas para Hugo. Antes que eu atinja a porta, ele segura meu braço e se aproxima.
— Depois de hoje, nem vai ser necessário provar seu sorvete misto, eu já tenho um sabor favorito. — sua expressão se mantém terna e convidativa, ele abre um sorriso comum e estimulante, um sorriso que torna impossível desgostar de alguém como Hugo.
— É? — o encaro com um olhar provocativo. — E qual é seu novo sabor favorito?
O momento se estende entre nós e apenas ficamos ali, absorvendo o peso de todas as nossas ações e palavras enquanto tomávamos sorvete. Sinto o aperto da mão de Hugo se intensificar no meu braço e seu hálito perto do meu rosto.
— Preciso realmente dizer, Uri? — o modo como ele usou meu nome me deixou incrivelmente instigado. Ele o disse como se soubesse quem eu sou, como se não houvessem dúvidas. Como se tivesse todo e qualquer pedaço meu. Como se eu fosse dele.
Ergo a cabeça em desafio e deixo que ele observe enquanto faço o meu melhor para parecer imponente. Dessa vez ele é quem parece completamente a minha mercê e gosto disso.
— Ainda não tenho uma bola de cristal, Go. Então ajudaria. — sua pegada se solta e ele passa as mãos nervosamente pela parte manchada da camisa antes de se recuperar e assumir uma postura descuidada enquanto diz.
— É você. Somente você. E espero que saiba disso. — então ele sai do banheiro como um furacão e logo está sentando na sua cadeira, de volta a posição original, tomando seu sorvete. Não hesito em me juntar a ele.
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