O despertador de sábado toca e traz consigo o dia do aniversário de mamãe. Jogo as cobertas sobre a cabeça e tento abafar o barulho que vem do celular. Falho miseravelmente. Meus olhos ficam lacrimejados quando enfim desligo o barulho infernal. Mamãe, penso. O primeiro aniversário desde que nasci em que não comemoraremos juntos. Meu estômago dói e acabo descendo as escadas, em direção a cozinha.
Um bilhete me espera na porta da geladeira enorme. Papai avisando que terá plantão um dia inteiro e recomendando que eu vá para a casa da mãe dele, a casa de vovó. Suspiro profundamente e passo as mãos pela roupa, numa tentativa de deixar o pijama amarrotado um pouco mais decente. Mamãe sempre acordava cedo em seus aniversários e fazia vários pratos gostosos, como se ela quem tivesse que presentear e não o contrário. A cozinha era sempre repleta de gostosuras e cheiros incríveis no ar. Onde estou agora cheira apenas a água sanitária e sabão. Afasto uma cadeira da mesa e me sento, enfio a cabeça entre meus braços cruzados. Não poderei suportar isso.
Meus olhos flertam novamente com o sono, mas sei que é impossível voltar a dormir agora que já estou desperto. Agora que as lembranças me devoram como lobos atacando cordeiros. O rosto de mamãe entra e some da minha mente, milhares de vezes, e nunca permanece. Sinto meu corpo começar a tremer e minha respiração ficar ofegante. Não posso suportar isso. Achei que poderia seguir em frente sem ela. Mas não posso. Não sei se poderei um dia. Escorrego da cadeira e meu corpo parece uma pena que atinge suavemente o chão. Estou tão anestesiado pela dor interna que não sinto nada. A cadeira permanece imponente, assomando sobre mim.
Começo a mexer meus dedos, me certificando de que não paralisei por completo. Logo estou sentado encarando a cozinha que parece grande demais para apenas duas pessoas. Apoio o queixo nos joelhos e abraço as pernas entre meus braços. Não há nada mais a ser feito, deixo as lágrimas rolarem. Essa dor não vai parar nunca. Todos os momentos bons parecem ter sido varridos de vista, as horas com Caio e Luna. O recomeço. Hugo e tudo o que tivemos até agora. Esses acontecimentos parecem pertencer a vida de outra pessoa, diferente de mim. Não os vejo. O que há em minha frente é apenas dor. Lágrimas e dor, deixo me afundar ainda mais.
Minha mãe se foi, tão jovem, e não vai voltar. Ela simplesmente explodiu junto com o carro. Reduzida a cinzas e membros destroçados. Reduzida a nada, alguém que já fora meu tudo. Que ainda é. Como poderei seguir em frente se o sol nunca mais sair? Como conseguirei viver se ela não mais sorrir pra mim? Por que? Por que? Estou cansado, meu corpo treme furiosamente agora.
— Você não deveria estar passando o dia sozinho. — sinto uma mão se fechar ao redor do meu ombro e reconheço a voz de Caio. Controlo o choro e olho pra cima, a visão um pouco borrada. — Venha, vamos para o seu quarto. — me apoio nele e me levanto, cambaleante em direção a escada. Luna nos aguarda sentada no terceiro degrau. Nem sequer os ouvi entrar.
— Deveríamos ter dormido com você, nos desculpe. — ela veio até mim e me abraçou, Caio chega para o canto e me apoio apenas em Lu agora. Ela se afasta e olha pra mim, seus olhos estão um pouco marejados também. — Vou fazer algo para comer, então é melhor estarem aqui em menos de dez minutos, babacas. — diz. O "babacas" me faz sorrir um pouco. Só um pouco.
Caio e eu continuamos o percurso até o quarto enquanto Luna começa a tomar conta da cozinha, ela sempre foi a melhor em culinária de nós três, e não por ser mulher, apenas por ser, bem, Luna. Visto uma bermuda cinza e uma camisa branca e me pego desejando que papai estivesse aqui. Ele não deve estar muito melhor no hospital. Tento ser um pouco mais forte por ele. Por mim também, por todos nós.
— Pronto para descer? — Caio segura minha mão na sua e a aperta gentilmente. É o modo dele me dizer para ser forte. Quase posso ouvir as palavras ali, naquele toque. Siga em frente, El. Precisamos seguir em frente. E, não importa o que aconteça, estarei ao seu lado.
— Sim. — a fraqueza na minha voz denuncia que ainda não sou forte o bastante. Mas ao menos consegui falar algo. Está doendo, mas eu estou tentando e, apesar das pedras no caminho que insistem em me derrubar, avanço.
Voltamos para a cozinha e nos sentamos nas cadeiras da grande mesa enquanto Luna termina de fazer café e pães com queijo frito, um dos nossos lanches prediletos. Como nos velhos tempos. Como agora. Ela coloca tudo sobre a mesa e nos oferece um sinal verde. Começamos a comer e ela não demora a se juntar a nós.
— Podemos ver Game of thrones daqui a pouco. O que acham? — Luna quem quebra o silêncio. É uma boa série que nós três estamos assistindo. Eu e Caio assentimos e ela sorri um pouco, um sorriso forçado. Ela não sabe como me ajudar, nem eu sei, quero agradecer a ela, aos dois, por estarem aqui comigo ao menos. Se não fosse por isso, talvez ainda estivesse chorando grudado ao chão.
— Trouxe banco imobiliário também. — Caio diz. Logo estou sorrindo um pouco e um riso leve e estranho toma conta de mim.
— Jura? — pergunto.
— Claro, você precisa sentir que vale alguma coisa hoje, então até mesmo deixaremos você ganhar. — ele dá um sorriso zombeteiro e Luna o acompanha, sinceramente dessa vez.
Nunca perdi no banco imobiliário. Nenhuma vez desde que tinha sete anos e Caio e Luna sempre detestavam jogar comigo por causa disso, sempre monopolizando tudo. Há anos, desde antes de eu ir embora, que não jogamos e fico realmente contente por poder jogar agora. Estou tão feliz por meus primos estarem aqui, eles são os melhores amigos que eu jamais poderia sonhar em ter.
O dia se passa tranquilamente e nos distraímos entre maratonas de Game of thrones e partidas de banco imobiliário, as quais, devo mencionar, ganhei. Ajudamos Luna com o almoço e depois voltamos para a sala, continuando a maratona apenas. Quando chega perto das seis da tarde, Luna e Caio assumem posturas intrigantes e ansiosas.
— Desculpe, Urizinho, mas precisamos ir. Temos um jantar de serviço do papai hoje. Você está convidado para ir conosco. — Luna se inclina para mim, sentado no colchão no chão. Ela me encara do sofá e vejo que realmente deseja que eu vá com ela.
— Acho melhor não. Deve ser importante e não quero azedar as coisas por lá. — forço um sorriso e a encaro suavemente.
— Você sabe que nunca é um incômodo, El. — Caio pisca serenamente por trás das lentes. — Venha conosco, por favor.
— Não, Cá. Eu acho melhor não. — suspiro e volto a olhar para a televisão, conscientemente ignorando os dois.
— Tem certeza de que pode ficar bem agora? Não vai fazer nenhuma bobagem, certo? — Luna diz, o que chama minha atenção e consigo ver o discreto olhar de censura que Caio oferece a ela.
— Claro, Lu. Não vou me matar, meu pai já perdeu pessoas demais, relaxem. — a expressão que toma os rostos deles é pavor. Me dou conta do quão insensível devo ter soado. Caio e Luna passaram seu dia inteiro comigo. Não é justo eu agir assim. Suspiro novamente. Tento soar menos babaca dessa vez. Afastando a tristeza e a raiva. — Vou ficar bem, pessoal. Prometo. Posso mandar mensagens regulares se quiserem, ou se precisar de alguma coisa. Quero que aproveitem esse momento em família, não precisa se preocuparem tanto comigo.
— Okay. — Luna diz. — Mas quem diabos aproveita jantares de serviço, ainda mais em família? — eles se despedem com sorrisos afáveis e saem.
Continuo no colchão, encarando a televisão. Já fazem horas que os dois foram embora. Mandaram mensagens a cada trinta e cinco minutos, perguntando se estou bem. Já recebi três e respondi todas da mesma forma. Sim, estou bem, não se preocupem. Mas todos sabemos que é impossível para mim estar bem hoje. Resolvo vestir uma calça e uma jaqueta, pego meus fones, e saio para caminhar.
Observo a cidade ao meu redor, as ruas mal calçadas e cheias de morros, as flores que estão por todo o canto. O ar noturno é carregado e um pouco rarefeito, enquanto caminho apressadamente. Para lugar nenhum. Não reconheço a música que toca em meus fones, não reconheço os rostos que passam por mim, apenas sigo andando. As lágrimas voltam novamente e começo a tremer, me forço a andar mais rápido para recuperar o controle do meu corpo. Paro um pouco para recuperar o ar e, quando olho ao redor, não sei identificar muito bem aonde estou. A parte da frente da minha roupa está encharcada. Preciso voltar. Não devia ter saído de casa. Começo a girar levemente, tentando ver onde estou e então meus olhos o encontram, já andando em minha direção, sua expressão carrega surpresa e medo.
— Uri, o que você está fazendo aqui? — Hugo me olha cuidadosamente e me pergunto como devo parecer aos olhos dele nesse exato momento. Queria poder dizer algo. — Uri, por favor, está tudo bem?
Ele segura meus braços e faz com que eu precise inclinar a cabeça para poder o enxergar. Seus lábios se desprendem com a preocupação iminente. Tento juntar palavras, mas só consigo formar uma nova torrente de lágrimas. Afundo a cabeça no peito de Hugo. Pelo que eu sei, não será a primeira vez que arruíno uma camiseta dele.
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