— Está mais calmo agora? — Hugo olha pra mim com suavidade. Caminhamos um pouco até chegar na praça do Grande Largo, agora sei onde estou, e nos sentamos num banco antigo e desgastado. As árvores e postes de luz rústicos se erguem ao nosso redor.
— Sim, obrigado. — minha voz ainda é quase um sussurro, estou rouco de tanto chorar. Meu celular faz um bip, uma nova mensagem. Luna e Caio. Respondo que estou bem, sem nem prestar atenção ao que está escrito. Eles aceitam, porque mandam um emoji sorridente. Coloco o celular no bolso novamente, junto com o fone.
O dia ainda traz consigo seu peso sufocante. Quero contar pra Hugo que dia é hoje, porque estou assim. Mas apenas deixo meu olhar se perder na grande igreja que se ergue em nossa frente. Um pouco distante de um supermercado.
— Você não me disse por que saiu correndo aquele dia. — ele está falando do dia em que fomos tomar sorvete. Depois de todos os acontecimentos e do que ele disse no banheiro, voltei para a mesa. Mas estava um pouco desconfortável. Eu também me sentia da mesma forma. Mas não estava pronto pra admitir ainda. Ele foi pagar a conta e eu simplesmente fui embora. Mandei uma mensagem dizendo que meu pai precisava de mim. Não nos falamos mais depois disso. Estava pensando em como dizer a Hugo que, eu também, muito provavelmente, havia me apaixonado por ele.
— Meu pai precisava de ajuda com umas últimas caixas da mudança. Pra ver quais coisas da mamãe ele doaria e quais guardaríamos de lembrança. — Não se trata de uma mentira. Isso realmente aconteceu, mas fui embora sem me despedir porque tive medo de que tivesse que dar um passo em um momento que ainda estava tentando firmar as pernas. Hoje também não estou preparado, me sinto ainda menos pronto que antes, com toda a merda sobre o aniversário da mamãe acontecendo.
— Entendo, Uri. Sinto muito. — eu não o havia dito que não tinha mais uma mãe, mas clara compreensão brilhava no seu olhar. Me perguntei se ele entendia minha dor tão bem porque já tinha passado, ou quem sabe, estivesse passando por algo parecido. Ainda não tivemos muitas conversas íntimas. O que é estranho, porque sinto como se tivesse conhecido Hugo durante toda a minha existência. — Tá vendo aquela casa ali, sobre o escorrega, deveríamos ir lá. — ele aponta para o lado direito e vejo a construção. Poucos metros de onde estamos. É uma casa de madeira, diferente dos adornos antigos da praça, é uma edificação recente.
Enquanto caminhamos por tijolinhos cinzentos e gramados, Hugo se aproxima de mim. Nossos braços roçam e sinto seu calor ao meu lado. Meus pensamentos ficam anuviados e deixo que ele continue com o contato até começarmos subir a pequena escada que leva a casa de madeira, onde algumas pessoas ficam antes de descer pelo escorrega, pequeno demais para o nosso tamanho. Por isso, apenas nos sentamos de pernas cruzadas. Um de frente para o outro. É um pouco escuro, mas ainda consigo distinguir todos os traços de Hugo. Nunca me esqueci de como ele é atraente. Magnético. Minhas lágrimas cessaram por hora. Fico feliz por ele não ter insistido em saber o que me deixou assim, apesar de recear que ele já saiba.
— Terminei o primeiro livro de A Rainha Vermelha. — ele sorri pra mim e lembranças do dia na biblioteca inundam minha mente.
— Então, foi o que esperava? — consigo sorri também. Nem me custa muito esforço, mas é apenas uma sombra ainda. Sei disso, mesmo sem um espelho.
— Claramente não. Foi incrivelmente surpreendente. O que é muito bom, mas acho que terei sérios problemas de confiança depois disso. — sua voz fica mais animada conforme se lembra dos acontecimentos da história. — Já peguei os próximos. A bibliotecária me autorizou, porque passarei as duas próximas semanas fora da cidade e vai ser legal ter algo pra ler. — me surpreendo com a informação e ergo os olhos com clara curiosidade.
— Onde você vai? — ele olha pra mim de uma forma descuidada e despreocupada antes de outro sorriso brincar em seus lábios. Seus olhos castanhos assumem um tom etéreo na luz noturna.
— Vou representar a nossa escola nas olímpiadas de física e química. Na primeira semana montaremos projetos e faremos as provas da olímpiada de física e na segunda, o mesmo calendário, mas com química dessa vez. Léo também vai comigo. — Hugo parece genuinamente feliz por poder fazer parte disso. E, já que é algo importante para ele, sinto como se fosse importante para mim também e isso me deixa um pouco mais feliz.
— Léo? — não faço ideia de quem seja.
— É o sobrinho do senhor Douglas, ele estuda com a gente. Senta na primeira fila. — ele parece se dá conta de que não consegui conhecer todo mundo ainda, quase ninguém na verdade, e faz um gesto de afastamento com a mão. — Esqueça, isso não é importante.
— Parabéns, Hugo. Estou feliz por você, de verdade. — ele acena a cabeça e me encara novamente, fixa seus olhos na minha blusa amarrotada, que ao menos está seca agora.
— Vou sentir saudades, Uri. — seu tom é gentil e cirúrgico. Sinto atingir dentro de mim, meu estômago começa a remexer. Uma súbita ânsia toma conta de mim.
— Também sentirei. Espero que me mande mensagens contando sobre tudo. — minha voz, por um milagre, sei perfeitamente controlada.
— Pode deixar. Que tipo de música você estava ouvindo? Não deve ser saudável, se te fez chorar tanto assim. — Começo a gargalhar, dura um pouco e logo recupero a postura. Ambos sabemos que minhas lágrimas não tinham relação com a música. Mas entendo o que ele está fazendo. Estamos seguindo em frente.
— Vou checar, um instante. — olho para as últimas músicas reproduzidas. — Eram algumas músicas do Noah Kahan e da Nina Fernandes. E Outroeu.
— Não conheço os dois primeiros, me mande suas favoritas deles depois, quero escutar. E, caramba, eu amo Outroeu. Fui num show uma vez. Foi super mágico. — Hugo olha pra mim com um olhar cheio de alegria e empolgação.
— Sim, fui quando eles tocaram no Rio também. Foi absolutamente incrível. Mas terminei com meu namorado duas horas depois do show. — dou uma risada na última parte, memórias que parecem ser de uma outra vida preenchem minha mente. Mas, definitivamente, pertencem a outra vida. A uma outra cidade. Somos apenas Hugo e eu agora. Isso é o presente.
— Entendo. Parece um pouco complicado. — sua voz vacila um pouco. — E, você está solteiro agora, certo? — preciso me desviar dos seus olhos, que brilham com algo parecido com medo.
— Sim, estou. — Hugo suspira aliviado. — Por que?
— Bom, você sabe, sendo tão lindo desse jeito, alguém pode requisitar a informação mais tarde. E, como andamos juntos, acho bom saber. — suas palavras dizem isso, mas a maneira como ele se posta e me encara diz outra coisa. Diz: porque eu quero você, caramba.
Outra mensagem chega e leio dessa vez, antes de responder que estou bem para Caio e Luna. A escuridão se intensificou e parece ter começado a fazer bastante frio. Hugo está usando apenas uma camisa fina e treme um pouco. Tiro minha jaqueta, nunca fui de me incomodar mais que o suficiente com o frio.
— Tome, vista isso. — estendo a jaqueta em sua direção, um olhar de descrença toma conta do seu rosto.
— Não posso aceitar, você pode se resfriar. Por favor, mantenha a jaqueta. O restaurante dos meus pais é perto daqui, tenho algumas roupas por lá. — ele tenta fazer com que eu desista, sei que ele se preocupa comigo também e me sinto grato. Porém, insisto.
— Use ela até chegarmos ao restaurante. Te acompanho até lá, okay? — minha voz não deixa espaço para recusa e ele finalmente aceita a jaqueta.
— Então vamos. — ele diz enquanto se veste. — Não quero que fique muito tempo no frio, ainda mais por minha causa.
Descemos pela escada e começamos andar em direção ao restaurante da família de Hugo. Não estamos próximos dessa vez, alguns centímetros nos separam. Contudo, ele aperta os braços em torno de si mesmo, em torno da minha jaqueta e parece inspirar o cheiro. O meu cheiro. Ele me pega olhando e fica desconcertado, colocando as mãos no bolso.
Quando chegamos ao restaurante, uma linda mulher com cabelos cacheados e compridos acena para mim, parece jovem, mas sua postura denuncia uma maturidade nua e crua. Hugo dá oi e a chama de mãe. Não me surpreendo muito, ambos são bastante parecidos. Ela está organizando algumas coisas no balcão do caixa e sorri para mim enquanto guarda uns documentos. Como se soubesse quem eu era. Aceno de volta e viro o olhar, rapidamente Hugo está de volta.
— Aqui, visto isso, é mais quente que a jaqueta. — ele me passa uma grande blusa de frio marrom, com letras em amarelo metálico. Uma caligrafia rebuscada desenha uma frase: Amo garotos e garotas. — Tenho um cachecol também. — ele acrescenta e começa a enrolar um cachecol mostarda ao redor do meu pescoço. Me sinto incrivelmente quente e não só devido as roupas.
— Obrigado. — digo entre respirações ofegantes.
— Mais uma coisa. — ele está na minha frente agora, brincando com o zíper da jaqueta enquanto me olha. Parece está pesando suas palavras com cuidado. Finalmente diz. — Posso te acompanhar até sua casa?
— Claro. — digo e me viro, não quero que ele veja o sorriso enorme que brota no meu rosto.
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