O verde se estende a nossa frente enquanto eu e papai descemos do carro. Ele gentilmente aperta meu ombro e dá um aceno com a cabeça. Decidimos fazer uma visita a mamãe hoje. O vale se desdobra e se afunda em grandes depressões e desfiladeiros. Estamos no topo de um penhasco e o sol laranja parece zombar dos nossos olhos lacrimejados.
Foi do alto desse penhasco que jogamos as cinzas de mamãe, meses atrás. Penso novamente sobre o acidente. Sobre como nem mesmo me lembro quais foram nossas últimas palavras. Nossos últimos momentos. Tudo é uma grande neblina envolta por tristeza e desolação quando se trata disso. Com exceção dos momentos em que uma lembrança dela sorrindo, trabalhando no jardim, cantando pela casa ou fazendo algo tão cheio de vida que faz meu coração se aquecer. Hoje, no entanto, sinto ambos. Um coração calmo e aliviado e uma tristeza aterradora, que nunca vai me deixar.
Papai suspira e me junto a ele, encarando toda a extensão abaixo. Observando como é grande e lindo, imperioso e indiferente. As coisas nunca sabem o que são. Esse vale nunca saberá que é imperial e impiedoso. Que é deslumbrante e vasto e que costumava ser um dos lugares favoritos da minha mãe. Ele nunca saberá porque esses dois homens estão parados sobre seu penhasco mais alto, em silêncio. Assim como eu nunca saberei uma infinidade de coisas, mas, chegado nesse ponto, não me aflige mais o não saber como me aflige o saber demais, o saber excessivo. Como esse penhasco, como as coisas, penso que, se não soubesse tanto, não sentiria tanto.
Memórias da minha mãe rodam pela minha cabeça novamente e me deixo afundar nesses resquícios da vida que um dia tive. Do que nunca mais terei novamente. Aperto meus punhos e me sinto preparado para chorar, mas, apesar de meus olhos terem estado marejados a pouco tempo, percebo que simplesmente não choro. Não porque não possa ou não queira. Simplesmente não vem. As lágrimas não vêm e não consigo chegar até elas. Mas não fico mal por isso, olhos secos conseguem ver melhor a paisagem. Ao meu lado, papai limpa os olhos e sinto que ao menos um de nós conseguiu dar vazão aos sentimentos que descansam por dentro.
— Preparado para descer? — a voz dele sai abafada e trêmula. Suas mangas ainda fazem o trabalho de afastar as lágrimas dos olhos.
— Claro, Max. Vamos testar o quanto essas pernas ainda suportam, espero que não caia no meio do caminho, sabe, sou o mais leve daqui. — ele sorri e as lágrimas dão um tempo. Fico feliz por ter conseguido fazer isso por ele. Por nós.
Começamos então a descida e estou preparado. O sol da tarde é quase ameno, mas a trilha é desafiadora. Envolve descer serras, passar por fileiras e fileiras de cipós frouxos e árvores com raízes espinhentas até alcançar a área plana no fundo do vale. O que, dependendo de quem está pegando a trilha, pode levar horas. Na última vez que estivemos aqui, no dia em que espalhamos as cinzas de mamãe, simplesmente não tivemos forças para descer, apesar de termos planejado. Então, fazemos isso hoje. E o pensamento de que estamos fazendo isso por mamãe me conforta e me dá força durante todo o caminho.
Desviamos de inúmeras folhas, pedras e passamos por serras inclinadas o suficiente para que eu não desejasse mesmo cair, ou então meu pai voltaria para casa sem família. Após alcançarmos um terreno mais inclinado e livre de obstáculos, que infelizmente leva a pior parte da trilha, a descida em si, que consiste em milhares de blocos de pedra quebrados entre duas grandes serras imponentes e deslizantes, papai decide puxar assunto. Talvez para afastar nossos medos. A tristeza que ocupava nossos rostos deu lugar para profunda determinação e, pelo que eu sei, papai é a pessoa mais determinada que eu conheço. Sei que chegaremos ao final e isso me motiva ainda mais a continuar descendo.
— Então, Uri. Como vão as coisas na escola? — ele diz. Posso sentir ele inspirando e espirando para controlar a respiração conforme avançamos.
Observo os longos quilômetros de extensão tranquila a nossa frente antes de me virar para ele.
— Estão bem legais, papai, para ser sincero. Não te contei que vou ser um dos noivos da quadrilha, contei? O comitê de organização quem me convidou.
Ele abre um sorriso que o acompanha até os olhos. Depois volta a uma expressão sarcástica.
— Você. Não me contou. Mas, quando passei na casa da sua tia ontem a noite, ela perguntou se eu iria ver e então Caio e Luna me disseram. Estava esperando você querer tocar no assunto, de qualquer forma. — ele assente com a cabeça, como se eu tivesse pedido para ele confirmar um diagnóstico.
— Ser intrometido sempre foi uma das suas qualidades mais fortes, Max. Não estou surpreso. — digo e olho sem expressão para frente enquanto caminho.
Ele ri um pouco e me preparo para as próximas palavras.
— Isso é bom, Uri. Já que sou o Sr. Intromissão, deveríamos falar sobre Hugo também. Você mal se acalmou nas duas semanas em que ele estava fora e, como ouvi de fontes seguras, ele esteve com vocês no fim de semana. Algo a declarar? — ele levanta um dos cantos da boca em uma expressão zombeteira.
— Pensei que estivesse incrivelmente ocupado com seus plantões, mas parece que vasculhar a vida de um adolescente é algo que sua agenda aceita facilmente. — tento soar no mínimo um pouco zangado, mas acabei usando o tom de: que seja, não dou a mínima.
— Bom, se o adolescente em questão for o ingrato do meu filho, que sofre por ter um pai super legal, minha agenda pode fazer milagres. — ele me lança um olhar intenso que, se tratando de um pai normal, só poderia significar problemas. Problemas sérios. Mas, vindo de Max, é apenas um olhar de provocação.
— Okay. — digo. — Você venceu. O que quer saber sobre o Hugo?
Ele junta as mãos em um punho fechado, como se estivesse vendo seu casal favorito em um momento constrangedor na televisão. Papai é uma pessoa especialmente esquisita, mas, uma vez que ele paga as próprias contas e não faz mal a ninguém, não tenho no que me meter. Posso jurar que seus olhos brilham e mal posso esperar para chegar na descida, onde seremos obrigados a ficar em silêncio. Mesmo gostando de conversar com papai, sempre tivemos a politica de papo aberto em casa, o pensamento de uma descida em silêncio me faz andar mais rápido.
Ele continua em silêncio ainda, como se fosse uma oportunidade muito rara e ele devesse analisar todas as opções detalhadamente.
— Você tem os próximos cinco segundos para fazer a pergunta, Max. Ou diga adeus. — olho para ele, que ainda está com as malditas mãos entrelaçadas. — 5,4, 3...
— Espere! Tudo bem, aqui vai. Você e Hugo são endgame? — ele finalmente desentrelaça as mãos. Mas seu olhar beira o obsessivo.
— Endgame? — é possível que eu tenha me esquecido de como caminhar e esteja apenas o encarando incrédulo.
— Você sabe, quando um casal vai terminar junto e...
— Eu sei o que é. — o interrompo. — Mas, por que diabos, você usou isso?
— Todo mundo usa. — ele diz solenemente.
— Não homens de quase quarenta anos. — rebato.
— Bom, só porque seu mundo vai se fechar por você ser "maduro demais", Uri, não quer dizer que todos precisem fazer isso. Vou usar as gírias que eu quiser na maldita idade que eu quiser e seguirei gostando do que eu quiser. Agora, se quiser responder minha pergunta, filho. — Okay. É um daqueles momentos lembre-se que sou seu pai e me sinto um pouco mal pelo que falei.
— Nós nem namoramos ainda. — digo.
Ele olha pra mim em uma afirmação silenciosa: sim, e daí? Não foi o que eu quis saber.
— Sim. Eu gosto dele, papai. E ele gosta de mim. — digo por fim. — Seremos endgame. — acrescento sorrindo.
— Viu? — ele diz. — Não foi tão difícil. Você poderia maneirar no drama.
— Eu? — pergunto ofendido. — Olhe para você. Como vou me portar quando o meu pai age como uma maldita fangirl?
— Fangirl? — ele pergunta, mas soa como fangau.
— Bom, Max, você precisa atualizar seu vocabulário de gírias. — digo lançando um sorriso para ele e depois me viro. Chegamos a descida e, agraciado, eu aceito as próximas horas de silêncio.
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