Ronald saiu da cozinha e foi em direção ao banheiro. Ficou pensando no que acabara de ocorrer. O sorriso da filha pareceu-lhe forçado. Pensou que ela tentava parecer bem para não preocupá-lo.
Algumas horas se passaram. Ronald já se havia preparado para dormir; estava deitado na cama a pensar sobre tudo que tinha acontecido naquele dia, quando reparou que sobre a cômoda havia um disco.
Desde a morte de sua esposa, Ronald tentara ouvir o conteúdo daquele disco várias vezes, e, em todas elas, nunca o conseguira. Ainda sem um pingo de sono, levantou-se da cama por impulso, ligou o rádio e colocou o disco. A música era “You Are My Life”, de Michael Jackson Imagens surgiam-lhe na mente enquanto ele escutava a melodia suave que o rádio emanava: momentos felizes que passara com a esposa, e especialmente o casamento e o dia em ela lhe deu esse disco.
De repente o homem começou a tremer de perturbação. Sua reação agitada era incompatível com a melodia romântica da música. Num gesto abrupto, desligou o rádio e pegou o disco. Ofegante, ficou alguns segundos olhando para o CD e sentindo uma mistura de decepção consigo mesmo e confusão. Tentando não pensar no ocorrido, colocou o conteúdo ao lado do rádio, deitou-se e tentou dormir.
Imerso em seu subconsciente, Ronald percebeu-se parado sobre uma planície. Para onde quer que olhasse, tudo o que via eram longas extensões de grama queimada, morta, podre. Até o próprio céu estava acinzentado. O único som notável naquele lugar era o uivo das ventanias. A melancolia governava o ambiente. Ronald caminhou um pouco pelo cenário sombrio até que, ao longe, notou o que parecia ser uma figura humana, mais especificamente uma mulher de cabelos longos e negros que usava um vestido preto. Ao aproximar-se o suficiente para identificá-la, estremeceu. A visão da esposa falecida, que o fitava com os olhos úmidos de lágrimas, amedrontou-o de maneira indescritível. Ele, espantado, continuou encarando-a. Estava prestes a gritar quando, em poucos instantes, tudo escureceu; logo depois se viu em seu quarto.
– Não acredito... Esse sonho de novo... – suas palavras cortavam o silêncio da noite. Virou-se então e viu, no relógio da parede, que ainda eram 4 da manhã. Ronald não conseguiu voltar a dormir naquele resto de madrugada.
~~
Dias passaram-se. Era uma manhã nublada quando Ronald estava saindo de casa para ir trabalhar; no entanto, antes que pudesse entrar em seu carro, notou uma presença próxima de si. Na calçada da casa vizinha, uma mulher idosa colocava o lixo para fora. Acidentalmente, Ronald e a senhora acabaram encarando um ao outro. “Bom dia, dona Anastasia” era o que Ronald pretendia dizer, para deixar o clima mais agradável; mas, quando estava prestes a fazê-lo, a velha lançou-lhe um olhar de desprezo, deixou o lixo no local e voltou para casa rapidamente. Tal fato não surpreendeu o homem, que entrou no carro e seguiu caminho; mas, de qualquer forma, descontentou-o, pois aquela vizinha sempre fora muito amigável com ele e sobretudo com sua esposa. Porém, cerca de uma semana antes da morte de sua esposa, ela começou a ignorá-lo e desprezá-lo; houve um dia, inclusive, em que o chamou de escória. Ronald não fazia ideia do motivo; pensou até que ela podia estar ficando maluca com a idade. Como tivesse tentado tirar satisfação e ela o evitasse a todo custo, Ronald resolveu deixá-la para lá e conviver com isso.
Ronald acabara de chegar ao escritório em que Larry marcou uma reunião entre alguns membros da investigação.
– E então? Conseguiu reunir o material? – indagou Ronald a Larry ao entrar na sala. Nela havia uma mesa circular ao redor da qual seis pessoas estavam sentadas, incluindo Larry e Rudy. Ronald dirigiu-se à única cadeira vazia da mesa.
– Sim. Esperem um pouco; estou procurando nos arquivos. – Larry respondeu, enquanto mexia em um notebook. No centro da mesa havia uma caixa de som que estava conectada ao notebook.
– Espero que não tenha perdido; não foi fácil reunir essas gravações. – disse um homem corpulento.
– Não esquenta, Rudolf; é que têm muitos arquivos aqui; mas eu logo encontro.
– Uma pena não termos conseguido reunir todas. – lamentou uma mulher ruiva.
– Desculpe; aqueles com quem tentei falar não quiseram ser interrogados novamente. Insisti muito, mas não deu em nada. – esclareceu Ronald.
– Tudo bem. Alguns também foram muito persistentes comigo. Conseguimos bem pouca coisa. Deve ser-lhes difícil relembrar esses casos tão recentes; eu mesma não sei se conseguiria dar uma entrevista detalhada se esse algo do tipo tivesse acontecido com um parente ou amigo próximo. – declarou a mulher. – Quantas foram mesmo, Larry?
– Ao todo, conseguimos sete gravações. Admito que foi um número bem abaixo do esperado, em se tratando de 12 casos; mas como consegui as dos dois mais chamativos não importa muito agora. Ah! achei-a. Prestem atenção. A primeira gravação é do caso Hebert Nelson, um adolescente de 17 anos. Porque os pais não quiseram dar detalhes, conseguimos esse relato através da namorada, que, apesar de ainda não estar bem em relação ao que houve, fez um grande esforço para contribuir com a investigação. Ouçam-no atentamente. – após dizer isso, Larry deu play na gravação.
“– Então, Jéssica, o Hebert alguma vez mostrou sinais de que poderia fazer algo assim durante o relacionamento que vocês tiveram? Como era o humor dele?” Era a voz de Larry.
“– Não, nunca... Ele era uma pessoa calma, divertida e gostava de fazer piadas com frequência... Ele só começou ficar estranho no dia do ocorrido...” A voz feminina que proferiu tais palavras expressava desânimo.
“– Pode me dizer como ele estava nas últimas vezes em que vocês se viram?”
“– Nós tínhamos brigado fazia pouco tempo, pois... bom, fico um pouco envergonhada de admitir; mas eu estava com ciúmes porque ele tinha ficado muito amiguinho de uma colega nossa e não me dava mais tanta atenção... Suspeitei que ele pudesse estar tendo um caso com ela às escondidas... Ele disse-me que eu estava cega de ciúmes, e brigamos... Passamos o dia seguinte inteiro sem nos falarmos, mas ele parecia tranquilo... Então se passou mais um dia; eu, estando arrependida de ter brigado por um motivo tão bobo, ia pedir-lhe desculpas na escola, mas ele havia faltado... Perguntei para os amigos dele se algo havia acontecido, e eles disseram que não haviam recebido mensagens dele desde o dia anterior... Tentei ligar, mas ele não me respondeu; então decidi ir à casa dele depois da aula... Quando cheguei lá, a mãe dele disse que ele estava estranho, que não queria conversa e não saía do quarto; agradeceu-me por ter ido até lá e disse que esperava que eu pudesse fazê-lo melhorar de alguma forma... Então fui ao quarto dele; quando cheguei lá, estava tudo escuro... Ele estava sentado em posição fetal em cima da cama... Foi uma cena triste de observar... Tentei falar com ele, mas ele assustou-se quando me viu.” De repente, a garota começou a falar mais rápido. Seu tom ficou mais tenso e assustado.
“– Aqueles olhos...” sussurrou.
“– Desculpe! não ouvi bem.” Interrompeu Larry.
“– Ele olhou-me de uma maneira bizarra... Sinto desconforto até de lembrar. Era como se ele estivesse apavorado, com medo de mim... Eu jamais o tinha visto com uma expressão assim...” A garota hesitava mais que o normal.
“– Perguntei o que lhe havia acontecido, e ele respondeu algo como ‘Eu vejo’... Sua voz estava tão pávida quanto o seu rosto... Disse que não entendi e perguntei ‘vê o que?’, ao que ele respondeu ‘O fim do mundo’... Ele só podia estar zoando comigo; não tinha nexo algum o que estava dizendo... Pedi para parar de brincadeira, e então ele disse ‘Eu escondi a ferida’; tentei perguntar que ferida, mas ele interrompeu-me dizendo ‘Ele veio até mim como punição’... Eu já não estava entendendo mais nada, então simplesmente parei de falar. Ele continuou falando ‘Eu o vi... Ele sabe da verdade...’. Desanimada, quase chorando, tentei perguntar de quem ele estava falando, e então ele me respondeu ‘O Apodítico’. Eu não fazia ideia de como reagir. Nada do que ele disse fazia qualquer sentido pra mim. Saí de lá chorando... Quando ouvi que ele havia-se suicidado algumas horas depois, fiquei desesperada e comecei a me culpar... Pergunto-me se tudo teria sido diferente se eu tivesse ficado lá com ele...” As lágrimas da garota transpareciam em seu tom de voz. “– Bom, isso é tudo que tenho a relatar...”
“– Entendo. Sei que está sendo difícil para você; mas gostaria de fazer só mais algumas perguntas, se puder me responder. Ele tinha conhecido essa colega de quem estava próximo fazia pouco tempo??”
“– Ah, não... Ela estuda conosco há bastante tempo...”
“– Certo. Sabe se ele teve envolvimento com desconhecidos ou se andou falando com pessoas que tinha conhecido recentemente, etc?”
“– Não que eu saiba...” Respondeu a garota, confusa.
“– Muito obrigado pela colaboração, de verdade mesmo; ela vai ajudar bastante na investigação. Pode contar conosco! Muito em breve descobriremos a razão do ocorrido.”
A gravação terminou.
Comments (0)
See all