Os gritos abafados misturados a soluços reverberaram pela Praça da República. A figura esguia de Sybila Aphrodite foi arrastada pela calçada, os braços amarrados por uma corda grossa de palha trançada, parte das asas se despedaçando com o movimento. Em uma tentativa de se livrar do seu algoz, ela se esperneava e sua magia cintilava para tentar alterar seu tamanho e escapar voando. Mas o aperto em seu pulso era forte demais, agressivo. Exausta de tanto lutar, foi puxada com ainda mais força entre resmungos de esforço. Seu destino, ao que parecia, era a estrutura de concreto em tons pastéis.
Ao longe, vultos se cercavam em torno do odioso ato, as recompensas granuladas em seus braços, como se assistissem a um filme de horror degustando pipocas.
***
Era para ser só uma noite divertida e tranquila com meu noivo. Assistiríamos ao “The Female of the Species”, que já estava há meses em cartaz e, depois, talvez jantássemos em um dos novos restaurantes da prestigiosa família Fernandez de Castro.
Mas Agatha não facilitou meu dia.
Em frente ao espelho, alisei os drapês sobre as anáguas. Suspirei. As camadas de tecido pareciam opressoras sobre minha pele, como uma panela com água fervente que cozinha pupunha. Só que, neste caso, o cozido seria a minha pessoa, caso decidisse ficar com tal traje o dia inteiro. O calor de Belém piorara com rapidez após o início do uso da tecnologia a vapor, o suficiente para que apenas as mais corajosas das senhoras — e das senhoritas —, se aventurassem no uso de peças como aquelas. Não obstante, aqueles adereços floridos e os cortes ondulados estavam tão fora de moda. Virei-me de um lado a outro observando quão antiquada eu parecia...
Não importava! Era um presente do meu noivo. Deveria demonstrar mais respeito por sua gentileza, mesmo sendo ela desprovida de senso de moda e noção quanto ao calor: ah, Norberto! Receio que tenhas esquecido como é nossa Cidade das Mangueiras em suas desventuras pelo mar.
Meus pensamentos foram interrompidos por um barulho na janela. Um pombo-robô agitava as asas mecânicas e bicava o vidro com urgência. Abri a tranca e permiti que voasse pelo aposento, o barulho de ferrugem agudo o suficiente para fazer-me tampar os ouvidos.
O pombo piou arrastado enquanto pousava na cabeceira da cama, suas placas de ferro rangendo, e abriu o bico. Aproximei-me para pegar o pergaminho que ele regurgitou.
Desenrolei o documento, logo notando as letras irregulares da detetive Gomes:
Cara Dra. Louise Doyle,
Estimo um agradável dia que, a despeito de minha boa vontade, não será minimamente sossegado para mim. Recebi, mais cedo, uma certa ligação do Delegado Astrogildo, que solicitava meu comparecimento a uma cena de crime na Praça da República.
Valha-me a pretensão!
Não pude sequer cogitar recusar tal pedido.
Fico aqui a pensar, apenas, que a senhorita ficaria deveras satisfeita em saber de minhas circunstâncias atuais, uma vez que há tempos não apreciamos a companhia uma da outra, o que será apenas agravado por esta irremediável missão investigativa sobre a qual debruçar-me-ei solitariamente, e sabe-se lá, minha querida, o que poderia acontecer-me nesta perigosa empreitada.
Acaso não estejas disponível — o que eu depreenderia com quase perfeição, embora contrariada —, este seria um bom momento para lembrar-me de que possuo, também, outras amizades que poderiam acompanhar-me nesta desventura.
Cordiais saudações ao senhor vosso noivo ausente.
Sempre sua,
Detetive Agatha Gomes.
Encarei o pombo em uma indagação silenciosa. O animal mecânico fitou-me de volta com suas placas de ferro rangendo enquanto girava a cabeça e arrulhava, um dos seus olhos quase saltando das órbitas.
— Ela na verdade quis intimar-me a comparecer nesta missão, certo? — perguntei retoricamente. O pombo continuou a me encarar, suas placas atritando em um agonizante barulho agudo. Revirando os olhos, peguei um pote de graxa e, com o auxílio de uma flanela, passei-a entre as dobras ferrosas do mensageiro com cuidado, para não manchar meu vestido. — Queria que enviasse meus mais sinceros xingamentos para aquela energúmena esnobe que ignorou minha última carta. Se ela pensa, pretensiosamente, que vou desfazer-me de meus compromissos apenas para satisfazer seus caprichos, engana-se.
Ah, como Gomes se engana!
***
Menos de uma hora depois, eu chegava ao encontro da energúmena.
A praça estava isolada. Os casebres pintados em branco e cores pastéis estavam fechados para visitas, uma vez que era ainda terça-feira, à exceção do que eu sabia ser o posto do vigia da praça: uma pequena guarita cilíndrica, com teto em forma de cone, toda feita de ferro pintado de um azul acinzentado desgastado. O Theatro Waldemar Henrique, em suas linhas neoclássicas, erguia-se imponente mesmo durante o dia, embora suas fascinantes apresentações ocorressem apenas quando o sol se punha. A alguns metros dali estava o Cine Olympia, recém-inaugurado pela família Fernandez de Castro, conhecida pela gestão dos restaurantes mais luxuosos da cidade. Em pouco tempo, o empreendimento se tornara mais famoso do que sua culinária caríssima que utilizava os condimentos e especiarias da região.
Poucos eram os transeuntes que se aventuravam em uma caminhada sob o sol a pino, embora o corredor de mangueiras fornecesse algumas sombras. A maioria eram casais jovens, beirando a adolescência pueril, com seus braços enroscando-se como um gancho. Um casal particularmente chamou minha atenção: o rapaz apontava para uma das árvores, exatamente igual a todas as outras, como se fosse o objeto mais fascinante do continente, enquanto a jovem ao seu lado ria alegre com qualquer comentário, provavelmente irrelevante, que ele tenha feito. Ah, o amor primaveril nas suas belas incongruências, em que se basta pura e simplesmente amar.
Já tive aquela idade.
Quando os amantes passaram por um grupo de pessoas, reconheci de longe um corpanzil e os cabelos ondulados presos em um rabo de cavalo sensato. A detetive Gomes estava agachada em um ponto isolado por policiais que seguravam fitas amarelas. O colete marrom-claro cobria a camisa branca de manga comprida, alinhada por debaixo da calça larga de tom terroso. Os jovens casais passaram por ali despejando um passageiro olhar curioso antes de seguirem seus caminhos.
Quando me aproximei o suficiente, alguns dos policiais viraram para mim, desconfiados.
— Ela está comigo! — garantiu Gomes, sem sequer tirar os olhos do círculo isolado. Usava um dos seus estranhos óculos-lupa, um aro maior que o outro para ampliar a visão. — Nossa, Louise! Venha ver isto… Sei que não és especializada em medicina legista, mas podes me dizer se é sangue de fada ou só pó.
Aquela frase aguçou minha curiosidade. Pigarreei e os policiais saíram de minha frente. Arredei-me deles até alcançar a detetive. Ela me encarou acocada e sorriu, a expressão incomum enquanto um de seus olhos estava quatro vezes maior que o outro.
— Esses óculos-lupa te deixam ainda mais aterradora.
— Um prazer inenarrável rever-te também, cara Louise. — Ela me olhou dos pés à cabeça. — Que antiquado é esse teu vestido. Não foi moda em Paris no século passado? Se não me falha a memória, acredito que seja um pouco apertado debaixo das infinitas anáguas, não? Certamente não ajuda em tua locomoção.
— Preocupada comigo, Gomes? — Dei um meio sorriso zombeteiro, mas ela não se mostrou afetada.
— Na verdade, sim. Estavas andando igual a um patinho cheio de penas. Confundirias as donas de casa durante o Círio e elas poderiam cozinhar-te em um caldo de tucupi facilmente.
— Ora, sua… — Respirei fundo e empinei o nariz. — Trata-se de um vestido caríssimo que ganhei do...
— Ilustre noivo, claro, sim. — Ela se virou para a cena do crime. — Uma pena que teu noivo esteja mais preocupado com uma estética démodée do que com o teu conforto. Além das pantalets apertadas, já notaste a temperatura infernal da nossa cidade com esses...
Enquanto falava, ouvimos o motor agudo e uma sombra colossal do que parecia ser uma baleia-jubarte se posicionando sobre nós. Um zepelim luxuoso de tons dourados planava acima das nuvens, um rastro de fumaça preta substituindo o céu limpo.
— ...nos últimos tempos? — Agatha terminou de queixar-se sabendo muito bem que eu entenderia sua reclamação apesar do barulho infernal do dirigível. — Deveras inadequado.
— Não está tão… — Tossi enquanto abanava a fumaça e as pequenas cinzas de carvão que desceram dos céus. — … quente quanto parece.
O olho desproporcionalmente grande de Gomes fixou-se um pouco acima das minhas sobrancelhas. Corei quando senti duas gotas de suor escorrerem teimosas da minha testa para a bochecha. Dei-lhe um sorriso cínico, girei seus ombros largos para que ela voltasse a encarar o chão e apoiei-me nela para identificar o vestígio do crime. Antes que eu reclamasse de não enxergar nada, Gomes ergueu, na frente do meu rosto, um óculos-lupa. Peguei-o, contrariada, e o coloquei.
Arquejei ao ver pequenos pontos brilhantes no asfalto acinzentado, como purpurinas carnavalescas.
— Que curioso. São dificilmente vistos a olho nu. Diria até que poderiam passar despercebidos.
— Segundo informações dos policiais, fadas têm sido dadas como desaparecidas por aqui. Uma delas, de nome Sybila Aphrodite, foi sequestrada nesta madrugada — explicou-me enquanto examinava a trilha de pontilhados cintilantes.
— Que horror!
Fadas são seres tão iluminados. Apenas algumas delas gostavam de pregar peças, mas a Delegacia de Controle de Criaturas Mágicas — a DCCM — possuía punições específicas para quem violasse regulamentações de convívio interespécies, tal como já ocorrera com um determinado cavaleiro das águas que, soube por aí, teria flertado com moças já comprometidas em festas da elite belenense. A ação da DCCM era vasta e muito requisitada, havia uma notícia imensa no jornal do dia anterior a respeito do fiasco que fora o desfile quimérico no domingo do Arraial da Pavulagem: tudo culpa da rivalidade dos centauros e bucentauros, estes últimos descendentes dos Búfalos do Marajó. A DCCM precisou intervir com uso da força, obrigando as erveiras patenteadas na delegacia a utilizar o banho-de-cheiro “Acalma-te, maninho!”, deixando um rastro de seres quiméricos adormecidos na Avenida Presidente Vargas.
O mais completo caos. Que final de semana fora aquele?
[Continua na Parte 2]
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