[Continuação da Parte 1]
Já as fadas raramente figuravam manchetes de jornal pelos problemas que traziam. A despeito dos demais seres fantásticos, as criaturinhas, singulares como eram, acabavam sendo um alvo fácil, tanto pelos seus atributos físicos quanto pelos encantos dos seus pós mágicos.
Era intrigante como os efeitos do polvilho variavam drasticamente conforme as necessidades das poções fabricadas pelas indústrias bruxas licenciadas: da cura das enfermidades cerebrais até compostos químicos das empresas de cosméticos visando a revitalização, por magia, das células envelhecidas! As possibilidades eram infinitas...
E, devido à raridade do elemento e às consequências de seu uso excessivo, que levava os beneficiários à fraqueza, a extração e venda deveriam ser feitas sob amparo legal, respeitando-se os direitos à dignidade e saúde das fadas. Desgraçadamente, como toda substância rara e repleta de propriedades mágicas, falcatruas e atrocidades eram realizadas para sua obtenção. As aquisições ilícitas, por vezes, beiravam à perseguição de fadas.
— Os Traficantes de Magia Elementar? — sugeri, considerando as utilidades do pó.
— Pode ser que sim, pode ser que não. Não se sabe se Sybila Aphrodite foi morta ou só raptada… Assim como as outras parece que ela não teve forças sequer para mudar de tamanho e alçar voo para longe do ou dos sequestradores. — Continuou Gomes com a voz inalterada. — Bem, pelo menos, não até agora… Isso pode ser considerado sangue, Louise?
Olhei novamente para os pontilhados no cimento. Precisaria me abaixar. Gomes notou meu dilema, enfiou a mão dentro do colete, vasculhou o que procurava, com a ponta da língua para fora como se estivesse concentrada, e, finalmente, puxou um canivete. Arregalei os olhos.
— Não te atre… — Ela pegou a borda do meu vestido drapeado, encontrou a trava das anáguas e soltou-as antes de cortar a minha pantalet apertada até a altura dos joelhos. — …vas — concluí, chocada, enquanto ouvia o som metálico das anáguas caindo ao chão. — Gomes… tu… tens… noção…
— Comprarei um novo! Mais bonito e confortável, garanto.
— Isso não é uma competição!
— Para mim, sempre será. Agora vamos, minha cara Louise, não te sentes mais leve?
Não podia negar que sim, parecia que um peso havia sido retirado de mim quando as esferas de ferro soltaram-se da minha cintura, além de que as pantalets rasgadas pareciam ter suavizado o calor exorbitante. Embora estivesse me sentindo melhor, não quis respondê-la, preferindo bufar e cruzar os braços, sustentando seu olhar presunçoso.
— Agora, por favor, fadas precisam do nosso foco. — Apontou para o círculo com um olhar de desespero que os óculos-lupa só deixava mais caricaturado.
Pensei em mil formas de xingá-la após a missão enquanto me abaixava para ficar na mesma posição de Agatha, o movimento facilitado pela ausência de anáguas e pelo corte do tecido interno. Inclinei-me sobre os pontilhados, verificando que estavam próximos uns dos outros. Um rastro regular dos brilhos fazia um ziguezague. Não distantes da trilha, alguns pontos eram pálidos e irregulares no formato. Pedaços translúcidos do que pareciam asas se aprumavam ao redor.
— Não sou especialista em medicina das fadas, mas, pelo cintilar, parece-me que esse pó, ou sangue, está no mínimo fresco. As asas dela não foram arrancadas… Ao menos, não totalmente.
— Sim. Sybila Aphrodite aparentemente foi arrastada por este trecho. Pelo formato e densidade do rastro, diria até que foi apunhalada na lateral do corpo. Pode ter sido puxada pelas pernas ou braços.
Retirei a luva de renda para depois esticar a mão e tocar nos brilhos. Eram viscosos. Trouxe para perto das narinas.
— Cuidado! — Gomes segurou meu pulso. Olhei-a inquisidora. — Se for pó, você terá efeitos colaterais.
— Você? — indaguei, provocativa, um sorriso malicioso se formando involuntário em meu rosto. Era raro ouvir um “você” sem segundas intenções em Belém, e, quando se tratava de Gomes, eu sempre fazia questão de apontar seus deslizes. Ela revirou os olhos e forçou meu pulso para o meu rosto, a minha mão encostando em minhas narinas. — Céus, Gomes! És uma criança! Pare!
Seu ato dissimulado fez com que parte da substância se espalhasse em meus lábios, o sabor ferroso, reconhecível em qualquer espécie de sangue quente estudada, tomou conta das minhas papilas gustativas. Peguei um lenço e limpei a boca.
— Sangue. Pela quantidade, não foi um corte ou perfuração que lhe ceifaria a vida…
— A não ser que tenham terminado o serviço em outro lugar — Gomes completou meu pensamento, e, depois, esticou a mão para tocar nos granulados pálidos, que considerei despadronizados em relação às partículas de pó espalhadas. — Veja isso, Louise. Dura como pedrinha, cheirosa como mandioca.
— Farinha?
— Das bagudas! — Gomes ergueu o floco em expectativa.
— Não se atreva a comer! — Estapeei sua mão, fazendo com que a farinha, ou seja lá o que fosse aquilo, caísse de volta no asfalto.
Apesar de sua preocupação anterior, quando tentei examinar melhor o sangue da vítima, Gomes tinha uma mania inescrupulosa de provar os objetos encontrados em missões investigativas, principalmente os de cunho alimentar, ignorando por completo as possibilidades de envenenamento. Com ela, aprendi que as pistas possuem cheiros, sabores e texturas, e que ângulos pouco explorados como esses poderiam ser cruciais para os resultados.
Entretanto, não por isso deixava de condená-la por colocar a própria vida em risco. Se ao meu lado estivesse, nada provaria, assim como a própria Gomes evitava que eu expusesse a minha saúde a situações pitorescas como inalar, sem querer, o pó de fada.
— Gosto de tua preocupação comigo… — disse enquanto observava o floco caído no chão.
Então pegou um fio próximo, erguendo-o em frente ao meu rosto. Peguei-o, e sua textura grossa arranhou meu dedo repleto de creme de hidratação. Gomes trouxe-o para si, usando os óculos-lupa para ampliar a visão.
— Fadas têm cabelos tão grossos assim?
— Nunca tive a oportunidade de ver uma tão de perto — confessei. — Alguma ideia do que faremos a seguir?
Em uma última olhada, Gomes encontrou, além dos vestígios que tínhamos, uma rolha. Metade de uma, na realidade.
— O criminoso estaria bebendo vinho? — indaguei. Agatha ainda observava o material esfarelado.
— Pequeno demais para pertencer a uma garrafa de vinho… — Colocou o que sobrou da rolha em um bolso interno junto com outros flocos do que parecia farinha e o fio grosso que encontrou. — Sinto a formigante sensação de que esse crime nos leva a ela!
Revirei os olhos.
— Não, Gomes! Lady Morgana não tem, em absoluto, nenhuma participação neste crime.
Agatha abriu a boca para contestar, mas antes que pudesse fazê-lo, antecipei-me de suas elucubrações desnecessários:
— Tua obsessão com ela irrita-me, sabes disso! São dez anos de convivência, nenhum deles sem que tuas impressões sobre ela sumissem. Foram séculos e mais séculos de discussões sobre a periculosidade inexistente de vampiros! Lady Morgana não é uma ameaça! Tuas últimas investigações sequer estão...
Gomes pôs o dedo indicador nos meus lábios, o pequeno calo na falange de cima roçando em minha pele enquanto eu sentia meu rosto esquentar. Para minha infelicidade, não era o calor de Belém a causa dessa reação inconveniente.
— Louise, cansa-me demais quando tentas defender minha arqui-inimiga.
— Ela não é tua inimiga, é apenas uma socialite que quer perpetuar a própria existência sem um nome sujo.
— Não se trata de sua natureza vampírica pura e simplesmente. Sabes disso. — Sussurrou em tom de conspiração. — Agora, voltemos à investigação.
Suspirei, desistindo de maiores discussões. A obsessão de Gomes com Lady Morgana era um assunto delicado e quase tinha o mesmo peso que minhas próprias rivalidades. Por esse motivo, não adiantava exaltar-me.
Fora o novo objeto, nem sequer uma pegada era visível. Olhamos ao redor, o ambiente sem qualquer alteração de movimento. Algumas pessoas ainda passeavam pela praça, seus vestidos de última moda levemente drapeados, ou fraques e cartolas perfeitamente alinhados, corsets retesando a postura…
— Ultimamente, as pessoas têm frequentado muito essa praça por conta das sessões do Cine Olympia — comentei por alto, enquanto Gomes não parava com o hábito de mover os olhos quando pensava. — A inauguração não foi há muito tempo. Meses, talvez.
— Sim, eu soube…
— Logo após a inauguração houve aquele escândalo todo envolvendo os Fernandez de Castro. Dizem que foi matéria no país todo. Os zepelins e trens espalharam jornais com a manchete como se fossem pedaços de carne a tubarões. Soubeste?
— Sim, homens traindo suas mulheres, o de praxe. — Os olhos castanhos fitavam todos os lados. Imaginava como o cérebro dela estaria funcionando naquele instante. Era como se sua mente fosse uma máquina a vapor cheia de engrenagens.
— Li no jornal de hoje que a esposa ameaçou dar início ao divórcio em um litígio processual.
— Sim, mais do que na hora.
— Parece um filme essa história deles.
— A propósito, deveríamos aproveitar que estamos juntas para assistirmos à próxima sessão! — Ela disse, erguendo-se.
— O quê? Gomes, estamos em uma missão… E outra, vou com o Norberto mais tarde.
— É só não contar o final para ele… — Ela fitou o céu, pensativa. — Deveria existir uma palavra que prenunciasse o conhecimento do final de uma obra, prejudicando a imersão do telespectador ou leitor. Até o fim do dia penso em uma.
Ela se virou para falar com os policiais.
— Gostaria de uma entrevista com o Chefe de Vigilância da praça e alguns guardas que ficaram a postos de noite… — Os policiais assentiram, sem pestanejar. — Ah, e não avisem aos funcionários do Cine Olympia que estamos aqui.
— Por quê? — indaguei no lugar da polícia.
— Talvez saibam de algo... Uma dica, cara Louise: teus investigados não podem ter tempo de ocultar provas, caso as tenham. Para investigadores comuns, os medos são quase inexistentes… Se souberem que eu estou aqui, a probabilidade de recuarem será altíssima.
Encarei sua expressão compenetrada, a pele bege dourada brilhando sob o sol como citrino. Dei um sorriso contido antes de dizer:
— Tout à fait, mon cœur¹. Faremos o que quiseres!
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¹ "Absolutamente, meu coração" (tradução livre)
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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