Se havia algo que considerava inquestionável em minha vida eram as decisões de Gomes. Desde que nos conhecemos no colegial, aos dezessete anos, época em que vivíamos isoladas — ela com seus experimentos laboratoriais, eu com meus livros —, notei que Gomes pensava mais rápido do que a maioria das pessoas.
Nossos colegas não gostavam do seu jeito avoado, considerando-o inapropriado para uma garota. Qualquer brincadeira a respeito de seu comportamento e estética irritavam-me mais do que a ela própria, sempre tão preocupada em resolver algum mistério ou aprimorar suas invenções, imersa em seu mundo particular do qual, por vezes, eu tinha o privilégio de fazer parte. Com o tempo, suas habilidades peculiares chamaram a atenção não somente de professores como do Poder Público, e Gomes iniciou uma carreira de detetive, que, em poucos meses, alavancou pelo país inteiro. Ela nunca deixou de convidar-me para resolver seus intrigantes casos.
Lembro-me de quando viajamos à França para investigar nossa primeira missão internacional: o misterioso caso do barco que navegava à deriva pelo rio Blies, cuja foz se localiza em Sarreguemines, uma cidade no nordeste do país. Meu francês de família auxiliou-a mais do que meus pífios conhecimentos de caloura da faculdade de medicina na época, uma vez que as investigações eram paranormais. Não se sabia quem o conduzia, nem como, mas o barco de madeira desgastada passeava pelas margens da cidade assustando toda a população. Nenhum representante religioso conseguiu expurgar aquele mal que, de fato, não era do nosso mundo.
Gomes precisou entender todo o passado da cidade, em especial o da Mansão Durant, que, apesar da arquitetura simplista por fora, possuía uma magnitude e luxo indescritíveis por dentro. A família nos recepcionou bem, com alimentação diária e conforto. Na madrugada, o barco navegava solitário até encontrar-se à beirada do terreno. Tivemos de passar uns dias lá para Gomes conseguir deduzir que aquela não era uma história de demônios que emergiam do inferno como mortos-vivos sanguinários.
— Demônios são os vivos, cara Louise — ela disse quando descobrimos os ossos enterrados no porão da mansão.
Foram necessárias apenas algumas novas provas e entrevistas para que Gomes amarrasse as pontas. A cada cem anos, a família Durant e a igreja local escolhiam um indivíduo estrangeiro para servir de sacrifício para a magia proibida, sugando-lhes as almas para fortalecer a cidade ou, como Gomes apontara, para fortalecer os Durant em sua eternidade suja. Mas, naquele século, um seminarista de origem pobre vindo do outro lado do país se tornou o amor da caçula Durant, que pouco sabia das atrocidades da própria família, pois era debilitada: suas atividades se resumiam a passear pela mansão, no máximo podendo sair até o cais de madeira durante a noite, ocasião em que conhecera o rapaz. Sua história de amor durou pouco tempo, mas a peregrinação fluvial do jovem perdurou para além da vida.
Bastou-nos acionar a Organização das Nações Humanas e Mágicas Unidas para que a família e a igreja local fossem responsabilizadas. Devido à rara prisão de uma nobre família, Gomes e sua parceira — a minha pessoa, com muito orgulho! —, viraram notícia em todos os lugares do mundo.
Os dias que se seguiram ao sucesso foram gloriosos. Mas Agatha não gostava de exibições e optou por nos conduzir a pequenos restaurantes da cidade, passeios a cavalo e de barco. Estaria mentindo se dissesse que aquela não fora uma das melhores viagens da minha vida, ainda que tivesse conhecido tantos outros pontos turísticos luxuosos aos quais Norberto insistia em levar-me desde o nosso noivado.
Afinal, ele não era Gomes.
Lembrar-me das aventuras com a detetive era sempre um passatempo que buscava evitar, pois a saudade do que não se pode ter é um abismo sem fim. Porém, seria pretensioso demais negar o quanto sentia falta, ainda mais por estar acostumada ao seu jeito tão peculiar de demonstrar interesse pelo que fosse mais insignificante no mundo, como se a beleza da vida estivesse em todo lugar… Inclusive em mim. As incongruências de um olhar apaixonado sobre a curiosidade da vida eram reconfortantes.
Mas, após alguns anos, as mulheres precisam encontrar um companheiro para dividir a vida, e meus pais se encarregaram de tornar Norberto o meu noivo, o que apenas me distanciou ainda mais de Gomes.
Afastar-me dela gerou mágoas entre nós, o que era resolvido após encontros em cafés, quando Gomes contava-me suas aventuras. Eu ouvia com deleite, em um misto de tristeza, por não mais poder acompanhá-la em todas as missões, e alegria, por vê-la tão à vontade em seu ofício de detetive.
Talvez, dentro de mim, também vivesse um pouco de inveja…
Uma sensação desgostosa que não me trazia os melhores sentimentos, mas Gomes, sempre tão forte e independente, desinteressada pela opinião alheia, fazia-me sentir fraca por não conseguir estar ao seu lado em suas missões. Eram raras as ocasiões nas quais ela solicitava minha ajuda, e, quando o fazia, era sempre assim: com um inabalável senso de urgência.
Mas eu não me importava, nunca me importei.
Minha calmaria parecia um conforto para sua tempestade. Essas oportunidades raras tornavam nossas investigações em conjunto ainda mais especiais.
— Dommage… — sussurrei para mim mesma. — …on semblait heureuses¹.
Encarei suas costas enquanto caminhava até seu próximo passo para concluir a investigação. Suspirei e balancei a cabeça. A missão era o principal motivo da nossa reunião ali. Precisava focar nisso.
Observando a estrutura da guarita, com seus cantos sinuosos e ornamentais pintados em azul com algumas partes desgastadas — influências da Belle Époque —, notei que em seu espaço diminuto parecia caber, no máximo, quatro pessoas. Gomes também parecia consciente da limitação no espaço.
— Eu, Louise e o Chefe de Vigilância, apenas — ela ordenou, e os policiais assentiram, obedientes.
Eu sempre admirava a maneira como os homens respeitavam Gomes. Ela podia ordenar a mais vexatória atitude que eles fariam sem titubear. Um poder que poucas mulheres tinham naquela cidade.
Com um aceno, um policial abriu a porta do casebre para nossa passagem. O lugar estava escuro e apenas a luz do sol iluminava o ambiente por entre as frestas de uma parede de ferro feita em forma de figuras florais. O cheiro de suor e alimento azedo impregnavam o ar misturados ao mofo. Contive um espirro, pegando um lenço da bolsinha que levava em um dos pulsos, e pus no nariz para evitar ser tão deselegante.
— ATCHIM! — espirrou Gomes.
Gotículas do espirro espalharam-se pela mesa do vigia, um magro senhor que nos observava com expressão paisagística. Diria até que, se não soubesse que estava vivo, parecia uma pintura barroca.
— Que elegante… — sussurrei, contrariada, para minha companheira, que pegou o lenço das minhas mãos e limpou as narinas. — Gomes, que anti-higiênico! Acabei de usar este!
— Se não tinha catarro, não foi usado!
— Esse raciocínio precisa ser revisto.
— Então vou considerar que tu usaste somente para ser uma dama elegante que não pode espirrar por ditames normativos...
Corei.
— Obviamente não foi por esse motivo! Eu jamais deixaria partículas virais espalhadas por aí…
— Lembre de sempre soltar. Conter o espirro pode ocasionar uma pressão latejante em tuas vias aéreas e se expandir para os ouvidos, e causar a destruição dos teus tímpanos.
— Eu sei disso.
— Lide como quiser com suas regras de etiqueta. — Dito isso, finalmente olhou para o homem, que nos fitava com a mesma expressão de antes. — Sr. Eurico Santos, certo?
— Isso mesmo. — Sua voz era rouca. — Sentem-se, por favor.
Olhamos ao redor. Não havia nenhum assento. Gomes suspirou, pegando a mesa do vigia com as duas mãos e a arrastando para perto de nós duas. Fitei-a em assombro enquanto ela se sentava na mesa, uma perna encurvada, a outra esticada.
— Senta-te, Louise!
— Agatha, estou de vestido! — indignei-me com a pretensão.
Ela deu de ombros e começou a questionar o senhor Eurico com perguntas básicas, como quem ele era, quantos anos tinha, o perfume de que gostava, se era casado, solteiro ou viúvo, havia quanto tempo trabalhava como chefe de vigilância da praça, se gostava dos pratos tradicionais como tacacá e açaí.
— Gomes, com licença — interrompi, e desisti de conter minha sobrancelha esquerda, que se movia para cima e para baixo de tanto estresse. — Se a cada entrevistado tu ficares dando tantos rodeios, chegarei atrasada ao meu compromisso.
— Ah, não te preocupes, cara Louise. — Ela sorriu, marota. — Chegaremos lá! — E olhou simpática para o vigia. O rosto dele já estava até corado de tão animado que ficara contando sobre a própria vida. — Então, o senhor gosta de açaí com farinha...
— Daquelas bagudas!
— E as bagudas o senhor encontra com facilidade em qualquer feirinha? Acredito que são especiarias de luxo hoje em dia, não?
— Err… mais ou menos. — A voz rouca vacilou. — Em Bragança tem as melhores, e são caras demais.
Gomes assentiu, pesarosa.
— Sim, eu mesma mal consigo comprar um quilo por mês... Só os mais ricos desta cidade conseguem pagar por uma dessas. Uma verdadeira mina de ouro.
— Gomes — grunhi.
— Perdão. — Agatha deu um meio sorriso e encarou o vigia. — Vocês da vigilância costumam receber presentes de moradores deste bairro nobre?
— Às vezes, sim. Depende muito… — Eurico desviou os olhos.
— Percebi que é um homem atencioso, Sr. Eurico — disse Gomes.
— Minha profissão exige!
— O senhor então, por um acaso, não viu nenhuma atividade suspeita aqui na praça? Talvez envolvendo fadas sendo sequestradas? — Seu tom era inocente.
O vigia abriu a boca para responder de imediato, então fechou-a, pensativo. Pôs as mãos no queixo por alguns segundos.
— Eu ouvi algumas vozes alteradas, mas preciso confessar que, de vez em quando, eu durmo no meu posto. Não quero insinuar nada com isso não, senhoritas, mas… — falou com um sorriso malicioso. — Vocês devem saber como é… Existem fadas que se relacionam com homens. E homem não se mete em relação do outro.
Senti o maxilar endurecer com aquela suposição absurda. Sua atitude não me surpreendia, aquele tipo de pensamento se alastrava como doença contagiosa, ainda assim, não conseguia deixar de me indignar. Abri a boca para julgar sua postura pouco profissional quando Gomes interrompeu o fluxo dos meus pensamentos:
— Mesmo ouvindo pedidos de socorro? Sr. Eurico, com que frequência escutou esses pedidos de socorro ontem?
— Ontem, nenhum. Eu dormi.
— Não cogitou prestar mais atenção ao redor depois que soube dos desaparecimentos de fadas por aqui?
— Eu não, nem os outros vigias. Sabe como é… Fadas são especiais. Alguns de nós não damos conta…
— Então o senhor confirma que pode ter escutado gritos de fadas raptadas por um homem nas proximidades, e em nenhum momento anunciou às autoridades? — Gomes ergueu uma sobrancelha. Eurico estava pálido.
— Não posso chamar a polícia se não vi nada.
— Como sabe que era um homem, então?
O silêncio dele começou a nos irritar. Ele tinha o semblante tranquilo demais.
— Talvez eu tenha visto alguém do Cine Olympia levando a fada, mas também sei que tinham um caso. Qualquer homem que encarasse uma fada sozinha à noite ia querer tomá-la pra si. Quem mandou elas ficarem flutuando por aí de madrugada… — O tom de voz era indiferente.
Remexi incomodada, pronta para disparar algumas palavras àquele monstro com vestes humanas, entretanto, Gomes interrompeu-me mais uma vez ao proclamar à testemunha que aquilo seria tudo antes de inclinar a cabeça para sugerir sairmos dali imediatamente. O teor lamentável das palavras repercutiam em mim com um gosto amargo. Gomes, cujos ossos do ofício obrigavam fingir-se inabalável, não parecia diferente, dada a velocidade com que me acompanhou para fora da guarita.
— Vamos prosseguir com o próximo vigia? — sugeri, enojada daquela conversa, e Gomes negou com a cabeça.
— Não… Não há necessidade de interrogarmos os vigias. Eles vão se defender como lobos em uma matilha e, no máximo, tratarão as fadas como carniça!
— Mas…?
Gomes sorriu, tranquilizadora.
— Confie em mim! Vamos ao filme.
— Gomes! Não é hora de diversão!
— Estar comigo é divertido, portanto… — Ela enlaçou o braço no meu. — É sempre hora de diversão!
Continua…
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¹ "Pena… que parecíamos felizes" (tradução livre)
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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