Contrariada, porém só externamente, deixei-me ser conduzida até o Cine Olympia enquanto Gomes se despedia dos policiais que, hesitantes, nos deixaram partir provavelmente sem entender o porquê da detetive fazer uma pausa na investigação para assistir a um filme.
À medida que caminhávamos, fiquei escutando sobre suas novas engenhocas. Gomes estava construindo uma máquina à base de tecnologia a vapor que, segundo ela, dobraria o tempo e permitiria deslocamentos entre o passado e o futuro. Apesar de descrente quanto à possibilidade surreal, não pude deixar de incentivá-la enquanto observava a bela entrada do cinema.
As cores pastéis combinavam perfeitamente com o formato do arco que enfeitava uma estátua feminina, presa a uma plataforma sustentada por dois pilares brancos. Quando passamos pelo setor de ingresso, vi, de relance, algumas damas observarem minha vestimenta ou, talvez, a excentricidade de Gomes. Ignorei-as com todo o poder que adquiria quando estava ao lado da detetive. Com Gomes, eu possuía um espírito indiferente com as pessoas que sequer conhecia.
A sala de entrada do Cine Olympia era de fazer qualquer um arquejar. A tapeçaria vermelha explodia aos olhos logo que pisávamos no espaço, conferindo ao mármore de Carrara um toque elegante. Os lustres de cristais cintilavam logo acima, discretos e belos em suas formas de gota.
— Se soubesse que meus olhos veriam tanta beleza, teria vindo antes, para a inauguração… — Não pude evitar um muxoxo de arrependimento.
— Não foram poucas as vezes que te chamei… — Gomes sussurrou quase inaudível, uma pontada de mágoa na voz. Senti-me diminuta diante daquela rara demonstração de rancor. Abri a boca para me desculpar. — Então, tive que vir com a Dra. Misato. Fazer o quê…
Ao som do nome de minha rival da Faculdade de Medicina, estagnei. Inúmeras imagens inconvenientes de Gomes e Misato vindo ao Cine Olympia, divertindo-se às custas da minha ignorância e falta de tempo, engolfaram-me como se eu tivesse tomado uma garrafa inteira de cachaça de jambu de uma vez. Tremi da cabeça aos pés e estava prestes a fazer um escândalo, virando as costas sem sequer dar adeus e partir — pois sou a fineza em pessoa, apesar de tudo —, quando notei Gomes, à minha frente, sacudindo os ombros. Eu sabia que ela estava rindo. A raiva subiu à garganta.
— Que seja, detetive Gomes. Se Misato é assim tão importante, por qual motivo chamaste a minha pessoa para acompanhá-la nesta missão, hein? Podes passear com ela, assistir a inúmeros filmes insossos com ela, levá-la a restaurantes de comidas envenenadas… — Senti minha voz fraquejar diante da minha ameaça velada.
Ai de Agatha Gomes se eu sonhasse que ela e minha rival estavam em diversões tão íntimas assim!
Pigarreei antes de continuar:
— Podes até te consultar com ela a partir de agora, mas sempre vais recorrer a mim, pois sou um milhão de vezes mais competente.
Ela continuou caminhando até a cabine de ingressos como se estivesse me ignorando, ainda perdida em suas próprias piadas internas que, tenho certeza, atribuíam-se aos meus incômodos. Rangi os dentes e, inconscientemente, bati meus pés no assoalho com mais força do que o pretendido, o som dos meus saltos de madeira reverberando pelo espaço.
— Quando precisar de uma parceira para investigações, espero estar muito bem casada e bem longe daqui!
As poucas pessoas que passaram pelo local fitaram-me confusas. Corei. Gomes retornou ao meu lado dando acenos para os transeuntes enquanto passava o braço pela minha cintura e trazia-me junto dela até a cabine de ingressos.
— Ora, solte-me!
— Louise, não pensei que ficarias tão atordoada por uma simples vinda ao cinema com uma amiga em comum nossa.
— Tua amiga. Ela é minha rival!
— Quando vais superar o fato de ela ter ganhado o prêmio de pesquisa no ano da formatura de vocês? — Gomes tirou a carteira de um dos bolsos do casaco enquanto a atendente, uma jovem de cabelos castanhos curtos e olhos brilhantes demais, nos encarava com uma expressão feliz demais.
Por que todos pareciam de repente tão felizes ao meu redor?
— Como ousa? Era o meu ano de formatura.
— O ano de vocês, Louise. De vocês! E tu ganhaste em todos os cinco anos que cursaram a parte teórica do curso. Laissez aller, mon cœur!¹ Desapegue desses sentimentos, minha cara.
— Se ousares chamar-me assim novamente, arranco-te de ti!
— Já arrancaste. — Ela encenou uma careta de dor caricatural enquanto tocava no peito esquerdo, onde fica o coração. Entre a vermelhidão da vergonha e a raiva que ainda sentia, resolvi virar-me para a atendente, que ainda mantinha a mesma expressão feliz no rosto.
— Poderias nos fornecer dois ingressos para o filme em cartaz, por gentileza?
— Claro! — A voz era aguda e notavam-se os dentes brancos brilhantes quando sorria. — Qual o filme?
— O único filme em cartaz. — Franzi o cenho em confusão. Ela parecia surpresa.
— Aaaah… Só há um filme em cartaz?
Olhei para Gomes indagadora, mas ela sorria simpática para a jovem atendente, e então, abaixou-se, os fios soltos dos cabelos encaracolados encostando no vidro da cabine.
— Moça, qual teu nome?
— Maria.
— Só Maria?
— Maria Bernadete Silva da Costa e Silva-Silva.
— Hm, e este é teu primeiro dia, correto?
— Gomes. — Rangi os dentes, impaciente. Mais uma conversa infundada para a coleção do dia.
— É, sim, senhora! A senhora é a detetive, não é? A detetive Agatha Gomes!
Agatha assentiu sorridente. A moça gritou. Não! Berrou estridentemente! Fiquei com medo do vidro da cabine quebrar tamanho era o alcance do agudo. Seria uma ótima soprano, talvez?
— ÉGUAAAA, eu AMO as tuas histórias! Todo mundo fala de ti pelos jornais quando tem um caso resolvido! Eu amava acompanhar as investigações! Soube do último caso em que uma erveira foi sequestrada por um padeiro porque o banho-de-cheiro dela falhou! — A velocidade com que falou era de invejar o melhor corcel de corrida.
— Ah, sim, era o tal “Chega-te a mim”.
Fiquei surpresa com a facilidade de Gomes em lembrar dos próprios casos. Ela, por sua vez, encarou-me com aquele sorriso presunçoso de que sabia o quanto havia despertado uma admiração repentina em mim.
Mas eu ainda estava furiosa sobre a vinda dela com Misato. Fiz minha melhor expressão neutra e ignorei a temperatura elevada que se deu no meu rosto, indicando que infelizmente eu estava ruborizada.
— Esse mesmo! Eu amei aquele caso! — Ela apontou para Gomes em cumplicidade. — Mas o homem quem usou errado, né? Não seguiu as instruções da erveira. Podre quando esses tubérculos em forma de ser vivo acham que tudo vai funcionar pela força da vontade deles.
— Concordo.
Eu queria corrigi-la para informar que tubérculos eram seres vivos, mas considerei grosseiro demais. Em vez disso, cutuquei Gomes, impaciente.
— Então, Maria, começaste ho…
— E eu amava quando tu e a Dra. Louise Doyle apareciam juntinhas nas capas dos jornais. — A jovem fez um gesto que lembrava um arco com as duas mãos. — Chovia arco-íris dos meus olhos. Vocês eram tão lindas.
— Ainda somos! — Gomes sorriu e apontou para mim. — Ao menos, certamente Louise permanece tão bela quanto quando tínhamos a tua idade.
Grunhi para Gomes enquanto sentia meu coração acelerar entre o elogio e o incômodo, tudo o que eu não queria era expor minha identidade para aquela garota. A atendente encarou-me com os olhos ainda brilhantes e a boca tão aberta que poderia ter caído o maxilar inferior. Então, veio um grito ainda mais estrondoso do que antes.
— EU. NÃO. ACREDITO! Agatha Gomes e Louise Doyle comprando ingressos comigo. As duas! Juntas! Vindo ao cinema! — Lágrimas desceram dos seus olhos castanhos em uma abundância preocupante. — Estão casadas? Já compraram uma casa? É verdade que são mães de um lindo pônei chamado Zuzu?
A primeira pergunta ecoou em minha cabeça por tantos segundos que não notei Gomes se aproximando do vidro novamente.
— Essas indagações, para minha desventura, minha cara Maria Bernadete, não passam de suposições. Mas aprecio vossa sábia torcida em desejar a maior de todas as felicidades para Louise, que é estar comigo.
Repassei a fala dela em minha mente e olhei-a, severa. Gomes ria tanto que sacudia os ombros sem parar.
— Estou brincando. Certamente me referi aos rumores sobre o pônei Zuzu. Seria adorável que adotássemos um pequeno equino. O que dizes, Louise?
— Não desgostei do nome Zuzu. — Cruzei os braços em presunção.
A moça, porém, parecia decepcionada.
— Que tristeza. Pensei que fossem almas gêmeas. Acompanhar cada investigação de vocês e vê-las juntas era como um sonho.
Novamente o brilho nos olhos. Estava tornando-se um padrão. Pigarreei.
— Poderia, por obséquio, vender-nos ingressos?
— Oh, é um encontro?
— Estou noiva, querida…
Ela puxou o ar para mais um grito. Ergui a mão sem perder a compostura.
— Do Almirante Norberto García. Agora, por gentileza, os ingressos, caso contrário, perderemos a oportunidade do filme.
— Ah, mesmo não estando juntas, sabe como é… — Ela pegou o dinheiro de Gomes, abriu a caixinha e contou as notas e moedas. — Saber que estou atendendo a detetive Gomes e sua formidável parceira Louise é uma sensação inenarrável. Estou honradíssima e agora espalharei a trágica notícia de que a detetive Gomes está solteira.
Não pense sobre as implicações dessa informação como se abalasse teu mundo, Louise Doyle.
— Inenarrável mesmo. Tu vens sempre aqui?
Gomes pegou os ingressos que lhe foram estendidos e deu um meio sorriso.
— Venho sim, minha cara, quase toda semana, por isso espantou-me essa mudança repentina de funcionários.
— Não sei o porquê também, mas trocaram muitos funcionários esse mês. Eu estou com um pouco de medo de ser demitida logo. Parece que o pessoal não está ficando nem duas semanas.
— Não te preocupes. Não serás!
A convicção dela confundiu-me. Gomes tinha um sorriso vitorioso no rosto. Ergui uma sobrancelha e ela me olhou por mais de quatro segundos, o que significava que depois diria o que se passava por aquela cabeça cheia de engrenagens. Com um aceno, despediu-se da atendente, que ficou nos encarando por todo o trajeto da nossa caminhada até a sala de cinema.
Minha infantilidade envergonhou-me, mas não consegui deixar de indagar:
— Gomes, vens tanto assim com Misato?
Seus passos tornaram-se mais lentos.
— É hilário como ficas braba. Pareces um búfalo descontrolado!
— Não estou com raiva!
— Estás sim…
— Gomes… — Virei-me para ela antes de adentrarmos o anfiteatro e apontei-lhe o indicador. — Eu não tolero mais tuas brincadeirinhas sobre a minha rival, e seria de bom tamanho que tu não ficasses vindo tanto com ela, quando…
— Quando? — Ela ergueu as sobrancelhas, inquisidora.
Corei.
— Q-Quando poderias convidar-me, ora!
— Eu disse há quase cinco minutos que te chamei inúmeras vezes para conhecer o cinema! — O seu tom de voz se ampliou, ainda que continuasse contido por já estarmos próximas da sala de cinema.
— Eu aceitaria em algum momento, se insistisses um pouco mais…
— Não parece injusto você falar em insistência comigo, Louise? — sussurrou.
Seus olhos, sempre tão perdidos no mundo, encararam-me com uma intensidade que havia tempos não fazia. Senti-me tonta. Aquilo não estava certo. Tínhamos um caso para desvendar. Não era tempo para rememorar nada, em absoluto, a começar que era minha inteira responsabilidade aquela discussão. Meus sentimentos pouco saudáveis de posse, inveja, ciúmes e, principalmente, culpa tornaram-me incapaz de controlar minhas atitudes. Esses vexatórios sentimentos eram impossíveis de lidar… Como feridas incicatrizáveis.
— Gomes… — tentei manter meu tom firme.
— Eu e Misato encontramo-nos aqui uma única vez, ao acaso. — Ela forneceu-me um dos seus pequenos sorrisos tranquilizadores com uma carga de tristeza incomum. — Não te preocupes. Recebemos convite do dono para prestigiarmos a inauguração, o mesmo convite que Norberto recebeu, mas, pelo que soube de ti, vocês viriam juntos depois… Hoje, no caso.
Abri a boca para pedir perdão. Ela não precisava ter justificado suas ações, mas eu novamente falhei em lhe dar algum apoio. Senti meus olhos marejarem. Não! Agora, não. Resolvi respirar fundo e focar no que tínhamos que fazer antes que eu desmoronasse.
— Gomes, precisamos resol…
— Resolver o mistério, sim! Ao filme, minha cara Louise. — Ela afastou-me com certa rudeza da entrada do anfiteatro e entrou. Fiquei alguns segundos do lado de fora, acalmando minha respiração de repente acelerada. Limpei a pequena poça de lágrimas que se formaram em meus olhos e me recompus antes de entrar no local.
Continua...
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¹ "Deixa disso, meu coração!" (tradução livre)
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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