O local estava lotado. As cadeiras de madeira eram apertadas e desconfortáveis.
— Está mais do que na hora de criarem lugares confortáveis para todos os tipos de corpos e uma cadeira acolchoada para evitar tantas dores de coluna… — resmungou Gomes tentando ajeitar-se, seus quadris mais avantajados ficando apertados entre os braços de madeira.
Soquei o braço que me separava dela e o objeto cedeu, rompendo o parafuso e deixando-nos sem barreira. Gomes olhou-me assustada. Dei de ombros.
— São cadeiras desmontáveis, e não sou tão fraca quanto pareço.
— De toda forma, grata pelo espaço concedido.
Sorri e deixei-me encostar em sua lateral, ignorando a minha aceleração cardíaca. Fingi ser em decorrência do filme, afinal, era minha primeira experiência em um cinema. As luzes do recinto foram, aos poucos, apagando-se. O telão à frente começou a rodar as primeiras imagens, com pontos pretos no fundo branco piscando até a máquina de projeção aquecer.
Inspirei profundamente, ainda ciente do braço dela roçando o meu. Aquele parecia um ótimo momento para fazer as pazes.
— Eu diria até que o ambiente é român…
— Não diria que o filme servirá para casais apaixonados. — Gomes interrompeu-me enquanto mexia no próprio colete, afastando o contato recém-criado. Bufei.
— Acabaste de me contar sobre o filme… De novo?
— Hei de encontrar alguma palavra para essa atitude tão ignóbil.
Gomes finalmente retirou de dentro do casaco um aparelho retangular. Inclinei-me para ver do que se tratava. Era como uma pequena tela, com um ponteiro medidor, que avançava por um semiarco.
— O que é isso?
— Um aparelho de Identificação de Concentração Mágica — explicou-me.
Ela usou dois botões na lateral do objeto quase enferrujado. Resmungou e deu um tapa no aparelho, que fez o barulho típico de engrenagens girando. O ponteiro tremulou. Abaixo do semiarco havia uma palavra, “Metamorfos”. Gomes apertou em outros botões nas laterais, e as palavras foram mudando “Lobisomens”, “Vampiros”, “Semivivos”, “Duendes” e parou em “Fadas”.
— Agora vamos ver a concentração de vestígios de fadas aqui — disse.
Quando ligou, uma luz amarela preencheu o semiarco e o ponteiro começou a trabalhar. Gomes retirou outro aparelho do casaco, dessa vez um de menor proporção: uma tela esverdeada com traços de plantas arquitetônicas, emoldurado por uma borda metálica. Na descrição: Cine Olympia.
No mapa, estavam os recintos do cinema, desde a entrada, passando pelos corredores que davam acesso às salas de projeção, até chegar aos gabinetes dos funcionários. Havia, também, pontos vermelhos que piscavam, a maior quantidade deles localizada no que seria o lugar onde estávamos.
— Por isso vieste tantas vezes? — Indaguei sussurrando.
— Mas é lógico. — Ela pôs a língua para fora em concentração. — Soube dos desaparecimentos de fadas pelos jornais. Minha teoria envolvia vários prédios próximos da Praça da República, então, fui a todos eles investigar as plantas e coletar informações para formar este aparelho que denomino de “Identificador de Calor Vivo”.
— Calor vivo?
— Ora, nem tudo que emite calor está vivo, minha cara Louise!
Senti um solavanco no estômago. Ela riu da minha expressão, que provavelmente não disfarçava o quanto me sentia nauseada de medo.
— Esqueci-me de que és uma médica que morre de medo de assombrações.
— Apenas não quis especializar-me em medicina legista, Gomes!
— No entanto, também evitas ao máximo lidar com fantasmas.
— Prefiro seres vivos, Gomes!
Agatha sufocou o riso para não incomodar os demais espectadores com nossos sussurros provocativos. Vê-la se divertindo acabou fazendo com que eu também me embalasse em risinhos.
— Mas pelo menos em Sarreguemines não fiquei tão assustada. — Lembrei com um sorriso presunçoso.
— É óbvio, minha cara. Compartilhamos os mesmos aposentos. Seria impossível que te sentisses tão ameaçada quando eu estava ao teu lado o tempo todo…
Engoli em seco e minha confiança evaporou-se com a lembrança. Ela notou minha hesitação e fez um floreio com as mãos.
— Para fins investigativos, claro.
— Sim. — Respondi mais rápido do que pretendia. — Fins meramente investigativos…
— De toda forma, meu aparelho de detecção de calor serve para locais em que tive acesso às plantas. — Ela retomou com entusiasmo. — Para tanto, preciso passar algum tempo nos lugares, desenhando a arquitetura interna e implantando pequenos dispositivos de identificação do calor vivo.
Gomes franziu o cenho da maneira como sempre fazia quando chegava a uma conclusão diferente do esperado.
— Será necessário uma adaptação de nome. Eu agora chamarei o aparelho de “Identificador de Calor Vivo em Prédios Antigos”.
— Por que tão específico assim?
— Nunca houve a oportunidade de investigações em prédios mais novos. — Gomes professorou. — Preciso arranjar tempo para instalar os apetrechos de identificação de calor nas construções mais modernas da cidade.
Usei uma habilidade única que desenvolvi para conviver com Gomes: minha expressão de neutralidade. Nem sempre funciona, apesar das minhas melhores intenções, mas, como já mencionado, evito questionar suas decisões e excentricidades. Eram até adoráveis. Às vezes.
— Esses pontos são pessoas, então? — Resolvi mudar de assunto antes que ela divagasse sobre a arquitetura de construções novas.
— Elementar, minha cara Louise! Fiz um sistema de localização com base na emissão de calor…
— E com o outro aparelho pretendes localizar fadas?
— Não creio que existam fadas por aqui, apenas seus vestígios… — A expressão de Gomes, de repente, ficou séria. — Poucas esperanças para fadas vivas aqui.
Apesar de acostumada com derradeiras mortes devido à profissão, ainda considerava-me sensível a essas questões. Tive de conformar meu coração de que não havia esperanças para as fadas sequestradas. Ainda que não houvesse sangue o suficiente em nenhuma das cenas dos crimes para afirmar que as feridas fossem fatais, os cenários pintados eram deveras brutais. E fada alguma, com ou sem pulso, jamais fora encontrada…
— Estás procurando uma sala específica? Não é mais simples perguntar onde…
— Mais uma vez, Louise… — Ela encarou-me ainda seriamente. — Nunca dê tempo aos teus investigados… Agora, vejamos…
Gomes voltou os olhos para os dois aparelhos. O de identificação de criaturas mágicas estava passando pela metade do medidos. Ela olhou para o mapa. A maioria das salas ou estava vazia ou possuía mais de um pontinho vermelho. Apenas uma sala aparentava ter apenas uma pessoa dentro.
— Hm, estimo que seja aqui, mas antes, só para termos certeza… — falou para si mesma.
Com o indicador na tela, bateu no que seria a saleta dos funcionários de limpeza. Ergueu-se para acompanhar o próprio mapa, e movi-me para alcançá-la. Saímos por uma porta lateral de emergência, que levou-nos a um corredor de paredes em concreto e pouco iluminado. O ponteiro de identificação de vestígios mágicos estava baixo. Quando chegamos em frente a uma porta com uma tintura cinza desgastada, uma senhora minúscula a abriu, os cabelos grisalhos levemente arrepiados. Atrás dela, um rapaz vestido com um macacão amarelado nos fitou surpreso.
— Olá, senhora e senhorito. Sou Agatha Gomes, detetive, e esta é minha parceira, Louise Doyle…
Sem delongas, Gomes pediu licença para adentrar o recinto e eu a acompanhei pedindo desculpas para a senhora que ainda segurava a porta, boquiaberta.
— Seja mais educada, Gomes! — ralhei, ao passo que a senhorinha se adiantou à nossa frente.
— Boa tarde, meninas. Sou Maria das Graças, podem me chamar de Gracinha. Em que posso ajudar? Aceitam um cafezinho?
— Ah, eu aceito… — Belisquei o braço de Agatha, que gemeu, interrompendo-se.
— Ficamos muito gratas, dona Gracinha, mas precisaremos apenas fazer algumas perguntinhas. Não se preocupe — falei dando meu melhor sorriso.
Dona Gracinha assentiu e pediu ao rapaz para arrumar a cadeira.
— Tu paras, hein? — Olhei séria para Gomes. — Da última vez, teu quadro de gastrite, ansiedade e aceleração cardíaca estavam alterados.
— Está bem, está bem… — Ela conteve o riso.
Quando nós quatro nos reunimos ao redor de uma mesa de plástico, dona Gracinha e o rapaz começaram a lanchar o seu cafezinho da tarde. Eu e Agatha ouvíamos algumas histórias voluntárias da senhora.
— Tanta gente, tanta coisa pra limpar!
— Deve ser um trabalho cansativo mesmo — sussurrei.
— Este é Hugo, meu sobrinho — ela disse finalmente, apontando para o rapaz que estava a mastigando o pão com manteiga. Ele parecia ter no máximo dezoito anos, com os cabelos lisos grudados na testa. — Viemos trabalhar aqui no final do mês passado.
— Vocês começaram a trabalhar recentemente, então — disse Gomes simpaticamente. — Foi depois ou antes daquele escândalo sobre o dono do cinema ter traído a esposa dele?
A senhora e o sobrinho se entreolharam.
— Olhe, dona detetive, não sabemos muito sobre o que aconteceu. Como a gente disse, fomos contratados no mês passado, não faz nem uma semana e meia. — Hugo quem tomou a palavra. — A gente evitou falar com outros funcionários sobre o assunto pra evitar problemas. Só cuidamos de limpar as coisas.
— Eu entendo… Esses funcionários também foram contratados recentemente?
— Sei que a moça dos ingressos sim, acho que hoje é o primeiro dia dela. Semana passada era outra, parece… E os seguranças, tia?
— Acho que eles são os mesmos de antes!
Gomes ignorou o diálogo dos dois e, finalmente, perguntou:
— Durante esses dias, vocês por um acaso tiveram que limpar algo incomum por aqui?
— Além de pipoca e banheiro sujo, não. — Dona Gracinha pôs a mão no queixo, pensativa. — Bom, hoje de manhã a gente encontrou uns baguinhos, né, Hugo?
— Ah, sim. — Hugo fez um gesto com o polegar e o indicador, que parecia querer reproduzir algo minúsculo. — Mas não sei se era farinha mesmo. Parecia muito com aquelas fotos de farinha que aparecem nas revistas de gente rica, como “A Garça da Saia Rodada” e “Égua da Madame”. Mas não sei. Podia ser uma pedrinha com cor estranha.
— Comida simples vinda da terra como farinha, açaí, pupunha… — Dona Gracinha falou em tom nostálgico. — Virou tudo comida de gente rica desde o incentivo às exportações. Égua, que ódio que dá desses zepelins.
— Tudo culpa da tecnologia a vapor — concordou Hugo pesaroso.
Gomes suspirou, cabisbaixa. Devido à sua genialidade, em diversos momentos opinou, por meio de pareceres técnicos aos órgãos públicos, acerca da tecnologia a vapor, cujo conhecimento havia sido importado e implementado com os recursos escassos do nosso Governo. Ainda que tivéssemos tido inúmeros avanços comerciais, os impactos do que foi facilitado com a tecnologia a vapor, como as exportações mais céleres dos produtos feitos daqui, custaram a alegria de muitas pessoas.
— Vocês só encontraram ontem esses grãos? — indagou Gomes.
— Acho que só ontem, né, tia? — Dona Gracinha assentiu à pergunta do sobrinho.
— Entendo… — Gomes olhou-me daquele jeito que deixava explícito o quanto queria compartilhar os próprios raciocínios.
Infelizmente, apesar de conviver havia anos com ela, eu ainda não era capaz de ouvir seus pensamentos, tão acelerados que eram quando estava formando uma teoria ou percorrendo o labirinto de sua mente para alguma conclusão lógica.
— Vocês ouviram falar sobre o desaparecimento de fadas, certo? — continuou.
— Sim, que dó! — Dona Gracinha fez um muxoxo. — Aquelas pobres criaturinhas, coitadas, são muito boas de coração.
— Verdade, e vocês não viram nenhuma delas por aqui, certo?
— Não, dona detetive. — Hugo disse confuso. — Por que estariam aqui?
Eu também tive a mesma dúvida, e fiquei encarando Gomes de soslaio.
Fadas costumavam vagar por ambientes naturais. Elas pertenciam a uma espécie mágica que evitava locais modernizados, não porque a tecnologia lhes fizesse algum mal imediato, mas sim pela posição política. O Sindicato das Fadas em Belém havia assumido a posição antitecnológica junto a outras várias criaturas mágicas, mas o voto popular acabou tendendo à permissão da implementação do vapor e da tecnomagia para o que chamavam de “modernização da cidade”. Ainda assim, as fadas continuavam seu afastamento de ambientes mais modernos como manifesto de sua indignação.
[Continua na Parte 2]
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