[Continuação da Parte 1]
Alheia à minha dúvida silenciosa, Gomes encarava as testemunhas, analítica.
— Apenas os seguranças são funcionários antigos, e imagino que sejam indicação dos vigilantes da praça, certo?
— Quase todos são… — concordou dona Gracinha. — Eles se indicam e tudo mais, por isso meu menino Hugo não consegue desses empregos de segurança.
— Compreendo. — Gomes sorriu. — Existe algum lugar que vocês não costumam limpar aqui?
— Hm, só a parte do projetor, que é cheio de fios e o homem que projeta tem medo de quebrar… — disse dona Gracinha fitando o teto, como se para ajudá-la a lembrar. — E o gabinete do dono, porque tem coisa preciosa e ninguém tem coragem de mexer lá. Vai que um dia some.
Gomes assentiu e levantou-se sorrindo. Retirou do bolso um papel amarrotado e entregou aos dois.
— Este é meu endereço. Caso Hugo queira uma indicação um dia, estarei à disposição. Por ora, estamos em uma missão, e desde já agradeço as respostas.
— Ah, de nada… — Hugo disse confuso. — As senhoras realmente não aceitam um cafezinho?
Gomes avançou com a mão ao copinho de vidro com café que o rapaz oferecia e tomou de uma vez. Olhei-a, inquisidora.
— Chega de café. — Puxei-a pelo braço enquanto as duas testemunhas trocavam olhares surpresos com a súbita mudança de postura da nossa parte. Fechei a porta atrás de nós com um pouco mais de força do que gostaria. — Francamente, Gomes! Não acredito que não diminuíste o consumo de café! Na última consulta, tive que receitar uma cadeia de alimentos que melhorassem o estímulo calmante por causa do teu exagero descomunal com a cafeína.
— A Misato indica sempre que eu equilibre com vinho pela manhã por conta da circulação!
Ela cantarolou com um sorriso presunçoso, seu humor melhorando devido à cafeína. Mas eu já estava preparada para uma eventual provocação. A cafeína estimulava uma repentina disposição nela, acompanhada do que variava ser uma aceleração em seu raciocínio, uma pitada de arrogância — não o suficiente para aborrecer-me —, e uma autoconfiança irritante que eu secretamente apreciava.
Empinei meu nariz inconscientemente.
— Independente da qualidade de minha… — pigarreei — nobre colega, Dra. Misato, eu sou tua médica de rotina, então, deves seguir o que eu recomendo!
— Adoro te irritar… — ela riu baixinho, a voz ressoando no corredor.
— Não vejo qualquer graça nesse intento!
— Não é óbvio, cara Louise? Quanto mais preciso dos teus serviços, mais visitas minhas receberás em teu consultório.
Um sorriso satisfeito acabou escapando dos meus lábios ao ouvir aquelas palavras, mas, ao perceber as implicações do que dissera, balancei a cabeça.
— Podes visitar-me sem desculpas graves como destruir tua saúde, sabes disso.
— As desculpas não são para ti, minha cara. São para mim mesma — sussurrou. Pelo tom, sabia que podíamos adentrar de novo em um terreno preocupante de discussões ininterruptas. Optei por não responder. — Acredito que não tenha ficado tão claro, mas minhas suspeitas estavam corretas.
Cruzei os braços, indagadora. Seus olhos brilhavam sob a fraca luz do corredor.
— Muito bem, quer que eu pergunte…
— Mas é claro!
— Pois bem… — Inspirei tentando conter minha própria agitação. — O que me dizes, detetive Gomes?
— Veja bem, cara Louise, os detalhes são os elementos mais importantes de qualquer investigação. As fadas foram vistas arrastadas pela Praça da República, sem muitos vestígios sólidos de que teriam sido levadas a qualquer lugar… Entretanto, quando um local somatiza pequenas mudanças internas e um escândalo digno de um bom vexame social, quem mais estaria interessado em obter uma magia como a das fadas?
Diante da sua pergunta retórica, fiquei calada. Era um momento em que Gomes costumava não gostar de ter os pensamentos interrompidos, ainda mais quando as teorias da sua mente ainda não estavam totalmente comprovadas.
Ela me conduziu pelos corredores enquanto ligava os aparelhos para identificar vestígios de fadas, com o “Identificador de Calor Vivo em Prédios Antigos” sempre verificando a quantidade de pó de fada no lugar. Observei os quadros pintados ao estilo art nouveau espalhados pelas paredes, Gomes murmurando sozinha enquanto analisava os apetrechos, até que parou em frente à uma porta de madeira envernizada em preto. O identificador de magia estava com o ponteiro preenchendo mais da metade do arco.
— Chegamos ao nosso destino. — E deu duas batidas fortes.
Demorou quase um minuto para que a porta se abrisse lentamente e, da fresta, um olho azul cansado nos encarou surpreso.
— Quem são vocês?
— Detetive Gomes e a senhorita doutora Louise Doyle — apresentou-nos. — O senhor deve ser Antônio Fernandez de Castro, o dono deste estabelecimento.
— Em que posso ajudá-las?
— Tomamos a liberdade de comprar ingressos para assistir ao “The Female of Species”. Por sinal, está há meses em cartaz, sugiro a troca… — Gomes, sem pedir permissão, empurrou a porta, forçando o diretor a dar-lhe espaço para entrar. — Contudo, esta senhorita aqui ainda não assistiu por conta da falta de sorte de ter um noivo almirante, que passa a maior parte do tempo no mar.
Olhei-a irritada, mas segurei o xingamento que formigava em minha língua como se eu tivesse ingerido folhas de jambu.
O gabinete estava bagunçado. A escrivaninha de mogno sustentava uma pilha de papéis amarelados, os armários de madeira encostados nas paredes estavam semiabertos, dando amostras dos conteúdos: casacos velhos, relógios sem aparente funcionamento, cartolas amassadas, papéis e algumas sacolas. Em um dos armários, havia um emaranhado de cordas de palha trançada ao lado de pequenos frascos de vidro tampados por rolhas.
O fedor de mofo e outro aroma familiar impregnou-me. Não sabia apontar que cheiro era aquele, apesar de sua familiaridade. Sozinho, ele certamente me era agradável, mas, amalgamado com aquele ranço repulsivo… Um arrepio percorreu meu corpo e contraí minhas narinas sem conseguir evitar uma expressão de desgosto. Agora, nem mesmo havia motivos humanos, a meu ver, para que os funcionários arriscassem suas integridades física e mental e efetivamente limpassem aquela parafernália de ambiente. Se existisse o inferno, aquele lugar teria servido de referência.
— Estamos aqui para interrogá-lo sobre o desaparecimento de uma fada registrada como Sybila Aphrodite… E outras tantas mais. — Gomes puxou uma das cadeiras de frente à escrivaninha e sentou-se, um sorriso simples brotando dos lábios. Sentei-me ao seu lado.
O empresário, um homem de maxilar fino que, naquele momento, estava cerrado, encarou-nos por alguns segundos. Após piscar várias vezes, acomodou-se na poltrona, passando as mãos pelos cabelos grisalhos.
— Com todo o respeito, senhoritas, reconheço o excelente trabalho que desempenham nesta cidade. Há sempre matérias em jornais… — ele disse, com um meio sorriso. — Mas o que eu, um empresário simples, tenho a ver com sua investigação?
— Sei que essa visita pode tê-lo surpreendido, mas preciso fazer alguns questionamentos. — Gomes retirou do casaco um frasquinho com pó dourado e sacudiu-o. — Reconhece?
— Pó de fada? — Ele deu de ombros.
— Perfeitamente… Um pó de fada que possui propriedades muito singulares. — Gomes esticou o objeto à minha frente. — O que se pode fazer com pó de fada? Sabes me dizer, doutora Doyle?
Pigarreei.
— Pó de fada possui propriedades locomotivas, como o uso para pequenas viagens áreas sem necessidade de zepelins… — Gomes assentiu, indicando com a cabeça que eu continuasse. — Além disso, há as propriedades medicinais. São ótimas alternativas para as pílulas farmacêuticas, servindo para curar anomalias internas, como problemas gastrointestinais, diminuir a pressão arterial, melhorar as atividades cognitivas e tem sido importante tratamento para problemas de memória.
O diretor nos olhava com uma expressão impassível. Os olhos castanhos de Gomes cintilavam sobre mim enquanto eu explicava.
— Perfeito, Louise. Viu, Sr. Antônio? Um produto raro que, se usado corretamente, pode gerar grandes resultados… — Gomes aproximou-se da escrivaninha, encarando o diretor mais de perto. — Inclusive com efeitos colaterais.
Antônio suspirou, assentindo. As olheiras pareciam mais proeminentes. Fitei os armários, inspirando o ar com mais atenção. Aquele cheiro agradável e reconhecível em meio ao ranço que permeava o gabinete quando entramos era de comida, o aroma leve e terroso de mandioca de minutos atrás. Gomes mexeu no casaco mais uma vez, retirando os objetos encontrados na cena do crime, e os jogou sobre a mesa: alguns bagos de farinha, pequenos pedaços das cordas e fragmentos das asas de Sybila Aphrodite.
Então levantou-se e caminhou até o armário. De relance, notei Antônio movimentar-se inquieto. Gomes também notou e deu um sorriso.
— Farinha, principalmente a baguda e crocante como a de Bragança, tem se tornado uma especiaria rara e valiosa para o comércio local, de forma que… — Ela pôs a mão na maçaneta do armário e o abriu sem hesitar. Dentro, havia várias sacas de farinha, frascos para experimentos químicos e rolos de corda.
— Deve ter sido caro comprar sacas e mais sacas de farinha de Bragança e trazer para a capital, não é mesmo? — Gomes olhou-me casualmente. — Ah, como gosto dessa farinha. Posso pegar um pouco?
Os lábios finos do diretor se crisparam. Dei um meio sorriso.
— Talvez o chefe de vigilância tenha… — comentei em tom esperançoso para Gomes, entrando no jogo irônico que ela criara. — Será que ele te daria um pouco?
— Não. — Gomes deu de ombros e fez um floreio antes de apontar com o indicador para o empresário com um sorriso presunçoso. — Vou solicitar aqui mesmo: a fonte da farinhada… Quantos quilos poderias oferecer-nos para ficarmos caladas como os vigias da praça?
[Continua na Parte 3]
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