Um silêncio perdurou entre nós três por alguns segundos. Ao contrário do que poderia ser para todos os nossos investigados, esse era um momento em que eu me sentia confortável como parceira de Gomes. O silêncio de quem vence, afinal.
— Como descobriu? — Ele suspirou.
— O dono do Cine Olympia, o senhor, caso tenha se esquecido, envolveu-se em um escândalo extraconjugal semanas antes de iniciarem os desaparecimentos de fadas, que ocorriam sempre na praça mais próxima ao cinema. Pouco tempo depois, ele, quer dizer, o senhor, mudou todo o quadro de funcionários. Todos à exceção dos seguranças, conhecidos de vigias da Praça da República... — começou Gomes, como se contasse a ordem numérica, mas nem por isso diminuindo a velocidade de sua fala. — Vejamos: aquisição de farinha cara, como a que usou para subornar os vigias da praça, é privilégio de poucos. Alguns bagos foram encontrados na praça e aqui no cinema, pela equipe de limpeza. Nesta madrugada, o senhor foi indiscreto e deixou rastros de pó, asas, farinha e pedaços de corda e rolhas de frascos para trás...
Gomes apontou para o armário que continha todas as provas do crime.
— Eu precisava apenas de uma confirmação para pegá-lo de surpresa... — Olhou-me, sugestiva. Não evitei um sorriso. Ela estava certa, para variar. — Era a única maneira de não dar tempo de esconder as evidências.
— Eu não tinha alternativa... — ele disse pesaroso, e Gomes ergueu a mão, fazendo uma careta.
— Não, sem chantagens emocionais. A única vez que cogitei perdoar alguém foi meu pombo-robô, por ter se escangalhado na frente da Louise. Ela me deu broncas durante dias.
Eu quase ri com a lembrança da situação. Aquele pombo explodiu no meu quarto! Se é que tenho o direito de justificar meu sermão.
Gomes continuou:
— Apenas responda esta minha curiosidade: o que te levou a um crime tão ignóbil?
Os dentes do empresário trincavam uns com os outros e os olhos azuis pareciam arder em chamas.
— Não conhecia essa fada imunda, mas... Tive o azar de me envolver com uma. O nome, sequer me lembro... — Olhei-o, enojada. Ele me encarou. — Não me julgues, doutora. Um homem não resiste aos encantos de uma fada, ainda mais quando ela o seduz...
— Oh, sim, sei — ironizei. — Uma fada certamente iria querer um homem humano.
— Meu caro senhor, nem eu que sou humana quero um homem humano — afirmou Gomes, revirando os olhos. — Fadas são seres que amam conforme são tratadas. Elas não seduzem e não avançam. O senhor possivelmente usou de palavras carinhosas para atraí-la... Ou... — Gomes olhou-o com ojeriza. — Usou da força.
Ele deu um sorriso torto e presunçoso. Meu estômago embrulhou de raiva.
— Independente de como tenha iniciado, era para ser só mais uma relação de uma noite, mas fomos descobertos por minha esposa, que não tolerou ver-nos no sofá de casa. Foi um escândalo desnecessário... — Ele suspirou passando a mão pelo rosto. — Os vizinhos escutaram e nossos nomes foram parar nos jornais mais famosos do país.
— E por isso prometeu pó de fada aos Traficantes de Magia Elementar?
— Em troca, eles me dariam uma substância de esquecimento e manipulação de mentes para que fosse ministrada nos jornalistas da cidade, para que então se retratassem em uma nova matéria comunicando o engano. Tive que agir rápido, pois minha esposa ameaçou levar nosso divórcio ao Judiciário.
— Realmente... — Gomes fingiu estar admirada. — Ambicioso e desprovido de cautela.
— Era uma alternativa, e minha esposa só aceitou perdoar meu desvio moral caso conseguisse fazer Belém se esquecer desse vexame. — Antônio passou as mãos pelo rosto cansado. — E pensar que eu estava quase conseguindo alcançar o número de pedidos.
— Sete fadas não foram o suficiente? — indignei-me.
— Seriam oito. — Ele deu de ombros. Sua naturalidade me assustou.
— Oito... — Gomes sussurrou, apreensiva, o olhar distante focado em um ponto da parede. Alguma informação despertou algo nela. Demorou alguns segundos para que retomasse à realidade e, então, indagou: — Os Traficantes de Magia Elementar possuem bruxos em sua equipe?
— Eu não sei das informações específicas da composição daquela equipe. Só sei que cobram caro demais por um serviço simples...
— Não é simples, Sr. Antônio. — Gomes pôs a mão no queixo, apertando-o entre o indicador e o polegar. — São poucos os bruxos especializados que são conhecedores da magia de extração dos elementos mágicos para confecção de poções tão poderosas como as de manipulação mental.
— Onde queres chegar com isso? — Antônio bufou. — Eu não sou um bruxo!
— De fato, não és.
Gomes olhou-me séria.
Dessa vez, minha primeira reação não foi contradizê-la sobre sua desconfiança palpável.
Lady Morgana era uma das poucas bruxas conhecidas especializadas em confecção de poções, uma das mais poderosas e perigosas áreas da magia, muitas vezes confundida com os banhos-de-cheiro de erveiras, que possuíam conhecimentos tradicionais dos poderes das ervas da natureza.
Mas as poções de bruxos também detinham naturezas sombrias em nome do conhecimento, por vezes à margem da ética científica, como o uso de qualquer elemento considerado mágico, ainda que resultasse na morte de seus proprietários, tais como os chifres de unicórnio forçosamente retirados ou o pó mágico extraído em excesso de uma fada após arrancar-lhes as asas. Por esta especialização questionável, pelo histórico de experimentos realizados em seres mágicos e humanos, além da sua linhagem oriunda de seres sedutores como os vampiros, Lady Morgana havia sido proibida pelo seu país de origem, o Reino Unido, de exercer a bruxaria de poções. Tal proibição se estendeu como um acordo a todos os países em que ela morou, incluindo o atual: o Brasil.
Mas toda a segurança, burocracia e leis aqui neste país nunca foram o suficiente para evitar a criação de grupos como os Traficantes de Magia Elementar, por exemplo. O raciocínio de Gomes era claro: Lady Morgana poderia facilmente criar uma poção de desmemorização e manipulação de mentes, mas era uma conclusão precipitada. Existiam outros bruxos com essa especialidade.
— Certo... — Gomes puxou do colete um relógio de bolso. — Vamos, os policiais aguardam-no lá fora. Receio que deva pensar em como conseguirá o perdão de sua esposa após os jornais estamparem seu rosto como um sequestrador e assassino de fadas.
Antônio, sem qualquer alternativa, levantou-se, encarando-nos com deboche.
— Façam como quiserem, senhoras. Eu poderei pagar minha fiança sem maiores intercorrências.
Gomes o ignorou e pegou dois quilos de farinha que estavam amontoados.
— Informarei aos policiais sobre os materiais só para atestar as evidências e informar a motivação do crime. — Ela olhou-me pesarosa.
Tentei recompor-me. Eu provavelmente estava com uma expressão igualmente abatida. Um pensamento triste alcançou-me ao saber que todas aquelas fadas foram traficadas ou já estavam mortas. Para extrair o pó em maior quantidade para a produção de poções naquela complexidade, era necessário arrancar-lhes as asas completamente e, em pouco tempo, as fadas definhavam.
— Vamos, Antônio. Esta senhorita aqui tem um encontro com o noivo na próxima sessão — Gomes adicionou.
Conduzimos o criminoso até os policiais, que ouviram toda a explicação de Gomes. Antônio foi levado para uma viatura que soltava fumaça pelo motor. Ele nos fitou uma última vez, a frieza e a crueldade dos olhos disfarçadas de neutralidade, e sumiu das nossas vistas com o restante da equipe policial.
Gomes espalmou as mãos, mandando que eu aguardasse enquanto corria até seu carro pequeno, de placas enferrujadas. Contive um riso, perguntando-me o porquê de ela não trocar aquele automóvel depois de tantos anos.
— Aqui! — Gomes trouxe-me um amontoado do que parecia ser tecido, tão mal embrulhado que tive dificuldade para abrir. Quando finalmente consegui, meu queixo caiu.
— Égua! — exclamei. Gomes riu. Raramente eu usava gírias, o que significava dizer que aquele vestido rodado de estamparia florida me deixou emocionada. — O-Onde arranjaste isso?
— Em uma loja, ora. Garanto que é mais confortável do que... — Calou-se quando lhe dei um abraço repentino, que assustou até a mim mesma. Afastei-me tão rápido quanto avancei sobre ela. — Err, sem demonstrações de afeto em público, por gentileza! Tenho uma imagem solitária a zelar.
Rimos e segurei o pano com carinho.
— Ainda bem que o trouxeste. Vai dar tempo de trocar e assistir ao filme com Norberto sem parecer que vim da guerra.
— Ah, sim claro. Irás assistir ao filme com o teu noivo usando o vestido que eu dei.
Agatha estava contendo um sorriso presunçoso enquanto olhava para a fachada do Cine Olympia. Não consegui evitar o riso.
— Tu não prestas, Gomes! Não acredito que calculaste isso.
Ela deu de ombros.
— Pode ser que sim, pode ser que não.
Revirei os olhos.
— Espero que gostes do filme — ela disse, levantando o polegar. — Não sei se foi proposital do Antônio, mas o enredo condiz muito com o crime praticado.
— Por que dizes isso?
— Um filme que normaliza a traição de um homem que avança sobre uma mulher inocente e naturaliza a rivalidade feminina — falou, contemplativa. — Irônico que ele tenha deixado esse filme em cartaz por tanto tempo...
— Tu acabaste de me contar o filme inteiro!
— Sim, acabei de te dar um spoiler!
— Que isso?
— Acabei de inventar. É o ato de dizer o que acontecerá no fim, estragando a experiência.
— Nossa... Obrigada pelo spoiler, então!
Ela encarou o céu.
— O sol já está se pondo. Sugiro que vistas o novo vestido e aguardes teu noivo.
— Se quiseres ficar conosco. Tenho certeza de que Norberto ficará feliz em rever-te.
— É lógico que não, Louise! — Ofendeu-se. — De toda forma, cumprimente-o com minhas irreais felicidades.
— Gomes!
Ela virou-se em direção ao seu veículo erguendo a mão em uma despedida de costas.
— Até a próxima missão!
Aquelas palavras fizeram percorrer um frio sufocante em meu peito, a nostalgia misturando-se às abnegações às quais fui exposta nos últimos anos. Não pude evitar de questionar:
— Haverá outra comigo? Sinto-me cada vez menos útil aos teus anseios.
Gomes estagnou, virando-se para mim surpresa, antes de bufar e voltar a seguir seu caminho.
— Jamais serás inútil aos meus anseios. Até, Louise. Aguarde minha próxima carta. Ela virá mais cedo do que você pensa.
O tom provocante daquele pronome fez com que eu sentisse um formigamento familiar. Uma palavra tão simples, carregada de significados, que resultava em circunstâncias não solicitadas pelo meu corpo.
Dei um pequeno sorriso enquanto a via ligar o carro com dificuldade. O ronco familiar do motor a vapor derrapou a marcha inicial, fazendo com que o veículo avançasse pela rua com velocidade acima do que se esperaria da velharia. Contive uma gargalhada depois de repassar mentalmente todo aquele dia, mas logo fiquei séria ao notar que a luz do dia se esvaía rápido nos céus.
Aguardar a próxima carta... Um sentimento desolado afetou-me de imediato. Haverá outra? Mas, mais importante do que essa possibilidade: o que eu direi se houver outra?
— Je ne voyais pas tout ça finir¹— sussurrei.
Inspirei e empertiguei-me, recuperando a postura. Era noite de cinema com Norberto, precisava estar impecável. Com esse pensamento, adentrei o Cine Olympia, indo à toilette para vestir novamente minha roupa de dama.
Fim.
--
¹ "Eu não vi tudo terminando" (tradução livre).
--
CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Preparação: Bárbara Morais, Marina Orli e Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
Comments (1)
See all