Como de costume, acordavam ao nascer do sol. A senhora Clerence preparava o café da manhã, sendo assim, fervia o leite que ordenhou antes de acordar Ashley. Aquela na verdade era uma das tarefas da garota, uma de suas favoritas por sinal, afinal amava conversar com Margo, sua vaca. Mesmo assim, às vezes acabava não acordando na hora certa, todavia, sua senhora a perdoava e não chamava sua atenção, já que a moça era bem responsável e não deixava isso acontecer com frequência.
Sentada à mesa, Ashley se perdia em seus pensamentos lembrando-se do que houve na noite passada. Uma voz a chamando, as escadas na lareira, quais levavam para o subsolo, e os objetos do baú. Estava acostumada com os sussurros suaves pelas florestas, contudo, nenhum deles foi como o de poucas horas atrás.
Quando Clerence foi chamar a menina para o café da manhã, notou o livro estranho junto a ela, mas não se incomodou. Sabia sobre a paixão da pequena pela leitura e conhecia aqueles objetos. Por sorte, não vira o filhote de raposa, que dormia embaixo do cobertor de trapos coloridos. Quem sabe qual seria sua reação, afinal, não era comum que aquela espécie se afeiçoasse tão rápido por humanos ou fossem vistos pelas proximidades.
— Parece cansada. — Clerence comentou cortando um pão em fatias. Sua voz era severa. — Achei que havia dito para dormir após o jantar.
— Não estou cansada, senhora Clerence. — Olhou para a mais velha. Parecia desapontada, mas afinal, quem em seu lugar não estaria? Era do tipo de menina que preferia ficar sozinha, aproveitando seus momentos com a natureza e qualquer amigo da floresta que decidisse dar as caras, como o filhote de raposa por exemplo. Ainda sim, você não deve saber o motivo desse descontentamento, não? — Apenas não queria ter que ir para vila implorar para que alguém seja meu amigo.
— Já iremos completar três meses desde que nos mudamos para esse reino e você continua sozinha.
— Sabe que não sou boa em fazer amizades...
— Pois trate de se aperfeiçoar! — Colocou um pedaço do pão em um pequeno prato de madeira e entregou a menina, assim pegando um copo feito de argila e despejando o leite com cuidado para que não caísse sobre a mesa. — Não quero mais ouvir boatos sobre você como naquelas outras vilas que moramos. Já estou farta disso! — Zangada como esperado.
— Isso não foi culpa minha... — Olhava para o leite imaginando uma cachoeira de águas mornas. "Ah, como deve ser gostoso se banhar em um lago com esse.", pensava.
— Claro que foi. Sempre age estranho, como se não estivesse nesse mundo, olhando apenas para si própria! — Terminou e colocou o copo próximo ao prato da mais nova. — Se continuar assim, não sobreviverá quando eu partir.
—... A senhora é saudável. Não devo me preocupar quanto a isso.
— Criança estúpida, acha que vive em um mundo encantado? — Parecia, mas Ashley sabia bem onde morava, o que a fazia desejar realmente viver nesse outro lugar quando se deitava na cama em seu quarto antes de dormir. — Desgraças podem acontecer a qualquer momento. — Como devem ter notado, a mais velha não se importava em usar palavras com tamanho peso.
Deu um suspiro antes que dissesse algo, direcionando o olhar ao rosto de Clerence novamente. — Me desculpe.
A guardiã caminhou até o caldeirão para que pudesse pegar o resto do leite que deixou fervendo, assim voltando e despejando sobre o jarro com cuidado. Olhou para as fatias de pão que havia cortado, o último restante. Não queria que a moça sentisse sua preocupação, só que, ainda sim, se perguntava o que faria mais tarde no almoço e no jantar. Tentou plantar batatas em seu quintal, mas o solo não era tão bom naquele lugar, como se uma má energia pairasse sobre ele. No fundo, sabia o porquê daquela área ser tão... Sombria, digamos. Afinal, o que esperar de um reinado com sangue inocente em suas mãos. Era como se as terras fossem amaldiçoadas pelas maldades daqueles que governavam.
— A senhora não se arrepende de ter se mudado para esse lugar? O reino é bonito, com um lindo castelo e uma vila nobre qual parece muito bela e interessante... Mas a parte em que vivemos fora tomada pela miséria...
— Olha as palavras, menina. — Levantou a mão para dar um tapa no rosto dela, no entanto, se recuou e sentou-se novamente. Mesmo que tivesse a língua afiada, tentava não deixar a mais nova agir como ela. Algo irônico, se pararmos para pensar, afinal, os mais velhos costumam ser o exemplo dos mais novos, e de que vale corrigir o erro do outro sem antes se corrigir? — Não imaginava que nos encontraríamos nessa situação.
— Perdoe-me, mas... O que quer dizer?
— O reino era próspero antigamente, até que começara a grande caça às bruxas.
— Caça às bruxas? — Se espantou. — Existiam bruxas aqui?
— Sim. E ainda existem, mas não foram todas verdadeiramente condenadas por tal feito. — Suspirou, seu semblante era triste. Levou alguns instantes para que pudesse voltar a falar, lembrando-se de alguém especial. — Haviam boas mulheres entre elas, puras e sábias... Todavia, confundida com essas escórias. — Por um instante, Ashley se perguntou o porquê de ela deixar de usar o plural de repente.
— Oh... — Voltou a olhar para o leite em seu copo. Sentia pena daquelas que morreram por causa das mentes confusas e malignas de seus superiores... Desejou por alguns segundos ser um forte cavaleiro, muito bem treinado por sinal, capaz de defendê-las e olhar por elas, todavia, era apenas uma garota... O mínimo que aconteceria com ela seria ter para si o mesmo destino das outras.
— Olhe para mim enquanto falo com você, menina. — A chamou ganhando sua atenção novamente, tendo o olhar conduzido aos olhos pratas de Clerence. — Evite parecer estranha nesse reino, por mais difícil que isso seja para você. Mulheres ainda são condenadas por tais atos, e se você se portar como fazia nas outras vilas, não será poupada desse fim cruel.
Sentiu um forte arrepio percorrer por sua espinha, temendo que as palavras da guardiã se tornassem reais. Contudo, como agiria diferente? Aquela era Ashley... Aquela era sua personalidade, seu jeitinho de ser. Era tão cruel ter de esconder a si própria por medo do julgamento de terceiros.
— Bem, agora coma. — Pegou seu copo e bebeu, formando um bigode de leite em seu buço, por pouco não tirando risadas da mais jovem. Sabia que se fizesse seria pior para ela, além de ainda estar em choque. — Quero que saia e faça amizades como moças normais da sua idade! E nada de conversar com homens, eles são muito perigosos. Evite até mesmo mulheres mais velhas, não podemos confiar em ninguém.
Era difícil de entender Clerence. Como faria amizades se não pudesse confiar em ninguém? De qualquer jeito, não via necessidade nisso, mas a melhor das alternativas era concordar. — Eu não irei, pode confiar em mim.
— Também não quero que fique se engraçando com os rapazes desse lugar, muito menos com os viajantes. Se voltar grávida, eu arranco o seu bebê e faço um ensopado para nós já que quase nos falta comida.
Se assustou mais uma vez, imaginando a mulher cometendo aquele ato tão cruel. Claro que não se engraçaria com rapaz algum, ela pensava. Nem ao menos conseguia se ver com algum deles, como se não tivesse nascido para ser amada. — Sim, claro. Eu nunca faria isso.
— Você é uma boa menina, Ashley. — A velha deu um sorriso, o que era difícil de acontecer. Teve um pouco de dificuldade, confesso. — Muito boa... — Então deu um longo suspiro.
Sim, não tinha jeito. Teria que sair e fazer amizades, além de arranjar algo para que pudessem comer naquela noite. Sendo assim, a garota dos olhos azuis organizou sua cesta colocando o diário; que encontrara no dia anterior; no fundo da mesma, com um pano macio por cima e deixando que sua nova amiga, a raposa, se escondesse entre os lenços. Era tão pequena e leve, a coisinha mais fofa que Ashley vira em toda sua vida.
Respirou fundo quando a senhora terminou de fechar a porta. Sentir o ar fresco do lado de fora incentivava a menina a sua nova jornada, mesmo que receosa. Andou por alguns instantes, até que parou olhando para os dois lados. Um ia para a floresta na qual amava caminhar e, o outro, o centro da vila dos plebeus onde fora mandada ir. Estava em dúvida se seguia seus próprios caminhos ou se obedecia à guardiã, então optou pela decisão mais confortável.
Ashley era uma bela moça de quinze anos. Seus cabelos eram tão negros quanto pedras de obsidiana, compridos e tinha uma franja repicada suavemente seguindo um v. Também eram curtos os lados próximos a franja, enrolados para dentro cobrindo suas orelhas. Seus olhos eram azuis como o oceano. Parecia uma boneca de porcelana, tão branca como a neve e facilmente corada, quase sempre rosada. Costumava vestir um vestido simples, o único que tinha, que era longo e preto, com compridas mangas na cor mostarda e dobradas em suas pontas com a mesma cor da camisa que vestia por cima; marrom escuro pouco avermelhado. Na abertura para o pescoço havia babados, também em mostarda, e retalhos rosados costurados por sua veste já que não tinha condições de comprar uma nova. Costumava amarrar um pequeno saco de moedas na cintura, qual caia um pouco para o lado, mas não por completo já que as cordas se seguravam do outro lado da saia. Também calçava pequenas botas simples, seguindo a cor da camisa.
Chamava atenção por onde passava por sua graça e formosura, o que ela odiava por sinal, afinal, haviam diversos lobos perversos pelo mundo. Aredamon não era um reino muito grande, todos se conheciam naquela pequena vila. Haviam homens sentados nas mesas dos bares do lado de fora, bebendo suas cervejas e mexendo com as garotinhas que passavam por eles. Diziam coisas horríveis, nojentas... Alguns até mesmo tentavam se aproximar, mas ainda tinham pessoas boas, como por exemplo, o açougueiro, que segurava seu facão encarando aquelas escórias de seres humanos, esperando por um passo em falso. Dizem que ele já fatiou um bêbado que assediava jovens mulheres e deu sua carne para os porcos comerem, contudo, ninguém sabe ao certo se aquilo era verdade.
O cheiro em certas áreas daquele lugar era terrível. Tentavam amenizar com o perfume das flores, quais eram colocadas ao lado das portas e abaixo das janelas, entretanto, muitas vezes acabava por piorar. Quando sentiam o sopro do vento, se aliviavam por conta do frescor que ele trazia. Talvez fosse por isso que Ashley gostava tanto da floresta. O cheiro fresquinho da grama e das árvores, a canção dos passarinhos, ainda que fossem poucos, ou mesmo, os barulhinhos dos galhos sendo levados pelo vento suave.
Havia um chafariz no centro, no qual já não jorrava mais água por conta do excesso de musgo formado dentro dele. De qualquer forma, aquele seria o melhor lugar para que a garota se sentasse e esperasse por um milagre. Talvez alguém se aproximaria e tentaria conversar com ela, era o que mais desejava.
Por ainda ser nova por lá, ganhava inúmeros olhares, um expressando sentimentos diferentes do outro. Haviam sorrisos, receio, feições de predadores... Até mesmo a inveja podia ser sentida, todavia, não se deixou abater. Abraçava o cesto que carregava, como se fosse confortada por ele. Não era tão pequeno, já que couberam um livro e um filhote de raposa, que ainda estava bem escondido, dormindo no conforto do pano macio. Queria ler o diário, porém, se fizesse isso, chamaria atenção de uma forma negativa.
Levou o olhar para o céu. Ah... Aquele lindo céu... Vendo os pássaros voarem, imaginou a si própria fazendo o mesmo. Iria para longe de lá, em um lugar calmo e bonito, onde pudesse ser ela mesma sem se preocupar com ninguém. Talvez nas montanhas... Talvez em uma ilha deserta... Ou até mesmo, nos reinos encantados dos seus contos de fadas favoritos. Ainda sim, era nas florestas o lugar onde mais desejava viver.
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