Domingo. Acordando mais cansado do que nunca, como se um caminhão tivesse passado por cima de mim. Não sei que horas são e meu celular deixei em outro lugar. Bocejando e olhando ao redor com olhos quase fechados, tudo normal: sem bagunça e nem barulho. Olhei para a esquerda e o vaso de porcelana estava limpo e lindo como ontem. Olhando de novo ao quarto e não parecia que ontem um ladrão invadiu e outro ser apareceu me salvando do perigo.
Falando de ontem, acho que aconteceu algo que não consigo lembrar. Não sei se era um japonês que me salvou e se está aqui. Tanuki, né? Levantei da cama e fui olhar para dentro do vaso, mas via nada. Só poeira. Suspirei tentando limpar a mente desse problema ao mesmo tempo que gostaria de agradecer.
Só agradecer. Conhecer está longe.
Para o domingo, o máximo que posso fazer é meditar para deixar tudo fora do alcance e conhecer o parque da frente além de comprar uma comida e produtos para o apartamento. As aulas iniciam amanhã e o que posso aprender hoje é cozinhar. Assim se espera um dia de calmaria.
Seis e quarenta da manhã. Geralmente o tempo que acordo. Eu costumava desde que comecei a fazer os exercícios de ioga ou mesmo estudar, mas hoje era mais do que estudo ou ioga. É segunda-feira, o dia que irei para a minha sonhada universidade, conhecer a turma, professor, lugar e inúmeras coisas. Levanto rápido da cama e já arrumo. Estou muito excitado de conhecer o início da minha história, esquecendo tudo do passado.
Nada melhor do que iniciar o dia com um banho aconchegante e quente. Ligando o chuveiro, como é bom sentir aquela água doce a escorrer no meu corpo! O dia estava meio a meio: não estava quente e nem frio. Maravilhosamente fresco para vestir apenas bermuda e viver por ai. Nesse ponto, nem pensei no que vestir. Minha cabeça estava tão focada na universidade ao mesmo tempo que pensava nos meus pais. Sei que meu pai está orgulhoso de mim, um bravo guerreiro que cuidou de mim sem a mãe para me guiar quando necessário. Meu pai cumpria as duas funções como podia, o que impressiona. Já meu avô...
Quanta lembrança! Minha mão direita alisando devagar a cerâmica do banheiro, limpando a fumaça e imaginando o rosto do meu avô, os tempos que ele cuidou de mim. Ele era tão paciente, leve, brilhante como uma vela no escuro. A água no rosto lembra o tempo que nós banhávamos no rio perto do campo que ele tem. Ele amava muito a natureza. Daí eu tiro que o verde é a cor favorita dele e a minha também. Se posso mudar a cor do meu pelo eu deixaria verde, mas acho que seria estranho – para não dizer nojento. O que eu sei é que verde me traz paz de espírito. Agradeço ao avô por isso.
Talvez um dia eu faço um tributo a ele. Ele merece mais que meu respeito. O sorriso no meu rosto era notável com os olhos enchendo de bons sentimentos dos momentos que passei com ele.
Fico emocionado só de pensar nisso. Preciso pensar menos para não aparecer na universidade com lágrimas e o povo achar que aconteceu algo comigo.
Fim do banho. Saindo do boxe, secando o corpo com a toalha e limpando meus dentes depois de dar uma olhada no espelho. Motivações, emoções, coragem, poder e espírito. Estou aqui.
Antes de me vestir, eu ia direto para a cozinha e preparar o café da manhã. Afinal, eu estou sozinho, não estou? Com a toalha cobrindo as partes confidenciais, pensava em preparar um bom chá verde e comer o pão que comprei ontem. Para minha surpresa, estava tudo preparado na mesa, inclusive o chá. Consigo cheirar e sentir o bom gosto. Olho ao redor e via ninguém além de mim. Estava tudo quieto também.
Eu não sei. Tudo me é estranho. Eu ia devagar com ouvidos atentos, sentava à mesa e levantava a xícara com o chá bem aquecido a ponto que eu sentia o calor na asa. Dava um leve gole e só aquele calor aquecia o ânimo que eu teria para hoje. Suspiro num profundo prazer ao sentir aquele calor do dia iniciar com um bom gole e com determinação recuperada.
– Dormiu bem, Mestre?
Como que num choque, eu me levantei da cadeira ao ouvir aquela voz que vinha atrás de mim. Olhando para trás, lá estava ele: o tal gênio gordo com sua pança à mostra e com uma bandeja que carregava um copo de água. Eu tremia no susto ao vê-lo até a toalha cair e eu nem me tocar de início, mas por ser alguém que me salvou eu acredito – e espero – que ele não tenha más intenções.
– Você é mesmo real? – pego rapidamente a toalha do chão.
– Carne e osso – ele sorri. – Seu chá está pronto. Hoje é seu dia especial, não é?
Balanço a cabeça imaginando como ele sabia do dia e como estava feliz comigo que o conheci no meio da invasão. Se ele viver comigo durante os estudos, eu terei tantos problemas para lidar, se eu tiver. Um estranho cão japonês mágico me tratando no conforto de uma majestade. O chá talvez não me relaxa mais.
Eu perguntei sobre o chá que ele preparou. Com um sorriso, me convidou para sentar e tomar o chá verde. Não sei se ele se incomoda comigo cobrindo o corpo com a toalha. Talvez possa ser um costume japonês. Ou ele é gay e eu não sei.
Tenho dois tipos de maneira de comer. Tenho uma mesa como todos têm e uma que tinha na casa do avô como esse povo tradicional costuma comer: ao redor de uma mesa de chão sobre o tapete preparado com almofadas, que vou usar no jantar ou a cada almoço para relaxar um pouco as pernas e respeitar a tradição. Sento o vendo colocar a água na mesa enquanto meu chá ainda cheira forte. Acredito que todos que bebem chá amam o chá verde. Hortelã é muito comum. É legal saber que aqui há inúmeros tipos de ervas para preparar um chá, xarope, tempero e por ai vai. A variedade no Brasil é inacreditável. Olhando para a mesa, o pão puro. Esqueci de comprar manteiga ou mesmo mel como acompanhamento. Pelo menos, o chá será uma ajuda para alma e corpo. Enquanto eu pegava o pão, Tanuki – lembro do nome dele – senta ao meu lado como se não bastasse só viver com ele. O que será que ele pensa? Tenho medo de descobrir, mesmo sabendo que não posso ficar calado para sempre. Preciso o conhecer melhor, se possível. Dou um gole no chá e viro a falar com ele:
– Bom, Tanuki. Você deve saber que hoje começa as aulas na universidade.
– Parece maravilhoso, Mestre, mas o que é univedade? – Ele pergunta dando um gole no seu copo com água. Ele não tem noção do mundo atual.
– Universidade – corrigindo. – É uma graduação de nível superior e crescer na vida. É assim que eu interpreto.
– Ah... Parece importante, Mestre. Para o que estuda? Guerreiro? Dinastia? Economia?
– Nenhum desses – esses cursos são estranhos para mim, menos economia que parece interessante. Ainda prefiro outro tipo de verde. Ele me olha curioso com os cotovelos na mesa. – Irei fazer zoologia. Estudar os animais.
– Animais? Como o que?
– Como o habitat, bioma, comportamento, genética e muito mais. Pretendo focar em descobrir e estudar sobre eles.
– Ah! Como ciências da natureza – ele pegou um pão e mordeu. Incrível que essa parte ele está entendendo.
– Sim. É o que gosto. Natureza, o verde, o vento, os animais... – dando mais um gole.
– Parece incrível, Mestre. Lembro que havia pessoas na minha terra que moravam no meio da floresta, cavernas, nos rios para aprender do poder da natureza e os benefícios.
– Sério? – abria os olhos surpreso que anos atrás isso existia, mas vindo de alguém com... Quantos anos mesmo? Dois mil?
– Eram uma espécie de peregrinos. Independentes, não trabalham e nem pagam tributos. Moravam por si sós. Alguns aprendiam poder, outros buscavam a paz espiritual.
Mexia a cabeça compreendendo o que ele estava dizendo enquanto eu comia o pão. Parecia que na sua era esse povo era mais saudável e bem sucedidas, me enchendo de curiosidade para saber mais sobre eles.
– Você também quer morar sozinho na floresta?
Me choquei com a pergunta, tossindo na mesa. Acho que engasguei com o pão.
Morar na floresta? Que tipo de ser humano – animal, perdão – viveria na floresta hoje? Só se for alguém louco ou decepcionado. Não consigo imaginar alguém vivendo como pode na floresta sem leis, normas a cumprir, contas a pagar ao governo e entre tantos pontos que aparentam ser positivos.
– Não, Tanuki! É uma ideia maluca. Só quero explorar e estudar a natureza no geral, não morar lá.
– Explorar e estudar já são escolhas malucas.
Ele tem razão, mas não é pior a morar. Pelo menos, ele me deseja sorte na área. Ainda me sinto desconfortável tendo um japonês gordo me servindo como se eu fosse seu mestre, ao mesmo tempo que estou começando a ter um companheiro para morar comigo. Para sempre? Não faço ideia. Só quero que vá rápido.
Estávamos conversando um pouco enquanto tomávamos o café da manhã mais simples de imaginar, mas o tempo voou que nem percebi. Terminado, me levantava da cadeira e disse que devo me vestir e ir para a universidade conhecer meu novo lugar. Ele queria ir comigo, mas imagino como as pessoas iriam olhar para ele com esse tipo de “short”, sem camisa e com um colar mais extravagante que os babalorixás. Não tenho roupas que cabem nele. O mais curioso é essa marca de folha na sua testa. Eu gosto de ver às vezes. Isso o dá um charme e a sensação de que ele é mais do que eu penso.
Guardião do Vento. Lembrei agora.
Eu disse para ele ficar no meu apartamento e cuidar se algum ladrão invadir e que ele deve bota-lo para fora. Ele recebeu meu pedido com um entusiasmo e, antes de eu partir para o quarto, me deu um forte abraço, fazendo a toalha cair de novo e me fazer ficar vermelho como uma ameixa. Resmunguei alto esquecendo completamente se meus vizinhos estavam dormindo não por causa do aperto, mas porque estou pelado de novo. Pulando e correndo fui para o quarto para me vestir depressa.
Meu Deus! O que mais vai acontecer?
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