Haviam duas vilas no reino de Aredamon, a dos plebeus, onde o povo vivia em meio a pobreza, muitas vezes sem nem ao menos ter o que comer, dando parte de seu dinheiro aos impostos, e a dos nobres. Oh, sim, que lugar belo era aquele. O rei não poupava um centavo sequer para que fosse um ambiente bom e agradável aos ricos, sendo eles aqueles que mais contribuíam nas coletas. Era comum de se ver pequenos castelos, muito belos por sinal, onde essa parte da população vivia, além dos comércios elegantes, vendendo os melhores produtos da região.
Por mais que as jovens moças fossem elegantes e formosas, uma entre elas vinha se destacando desde sua chegada. Seus cabelos eram vermelhos como o fogo, seus olhos azuis como o mar, muitas vezes sendo vista conversando com os animais, como se fosse de outro mundo. Era doce e gentil, muito educada por sinal, só que por mais que trouxesse uma boa energia, também atraía inveja de suas colegas que tinham idades aproximadas.
Era simples enquanto as outras faziam de tudo para estar uma acima da outra, disputando riquezas mundanas ao invés de valorizar as virtudes de seus corações. E por conta de sua humildade, acabou por ter seus passos vigiados, diariamente sendo criticada por sua boa conduta, sofrendo da pressão que criavam sobre ela.
Achavam estranho o fato de ela carregar um boneco de pano para onde ia, zombavam disso, pois diziam o quão infantil era tal comportamento, todavia, aquele pequeno brinquedo era as esperanças de Tifany materializadas em seus braços, lembrando-a que um dia a profecia se cumpriria e enfim a moça poderia se encontrar novamente com aquele a quem pertencia seu coração.
Era tão desconfortável a situação que criaram para ela, fazendo-a sentir que não tinha lugar daquele lado. Fazendo-a sentir-se mal por ser quem era. As chamas de seu coração apagavam lentamente, a fazendo duvidar da promessa de sua velha amiga, e quando já quase não tinha luz, repetia o poema em seus pensamentos, consolando sua alma.
Estava determinada a conhecer a outra vila naquele dia, respirando fundo antes que atravessasse os corredores que conectavam a nobreza à plebe. Vestia um longo vestido verde escuro com detalhes prateados, que possuía mangas bufantes com babados e uma corda negra amarrando o tecido superior com um laço, qual não era tão apertado, e longos babados na saia dando abertura a um tecido diferente, que também era verde só que mais claro e detalhado com ramos de flores contendo apenas folhas. Vestia luvas brancas, as quais eram delicadas e cobriam apenas as mãos e os pulsos.
Era pálida, facilmente tendo as bochechas rosadas, principalmente quando chorava, o que acontecia com muita facilidade. Queria tanto ser forte, mas era tão difícil... Lembrar-se do que houve quando mais jovem quebrava seu coração em diversos pedacinhos, tornando-se uma menina frágil e insegura, vulnerável ao o que os outros pensavam dela, até o dia em que conheceu aquele quem a fez enxergar seu bom lado, abrir os olhos para um novo mundo repleto por alegria e amor. Queria tanto encontrá-lo... Queria tanto poder olhar para aquele lindo rosto novamente...
Diferente do outro lado, a vila dos plebeus era bem movimentada. Se aterrorizou com os homens que a assediavam por causa de sua beleza, mas fora defendida pelo açougueiro, que mostrou seu facão aos lobos os calando de vez. Não era um homem de muitas palavras, apenas sorriu para ela quando a mesma o agradeceu, assim voltando ao seu comércio.
Sentou-se sobre a beirada do chafariz que ficava no centro da vila. Ouvia sussurros sobre seu cabelo, o quão estranho achavam. De fato era para eles, fios vermelhos com as pontas amareladas, perfeitamente semelhantes a chamas. Só que era tão comum ouvir coisas como aquilo que não chegava mais a feri-la, afinal, bastava para ela à opinião de seu amor, o qual uma vez a elogiou com tanto carinho sendo capaz de cicatrizar uma de suas profundas cicatrizes.
Abraçava o boneco, relembrando do dia em que Agatha a consolou. Perguntava-se se enfim havia chegado onde ela a instruiu há anos atrás. Seria tudo tão mais fácil se soubesse para onde ir desde o começo, não? Só que... Como a outra se atentaria a tal detalhe sendo perturbada com tal destino cruel? Sem ao menos saber se um dia poderia reencontrar sua própria irmã...
Deu um longo suspiro, tendo seus pensamentos tomados pela euforia das crianças que gritavam comemorando a chegada dos contadores de histórias. Virou-se para trás e logo se deparou com outra menina. Nem ao menos a ouviu se aproximar. Mesmo que de costas, por algum motivo, era interessante para Tifany, que abraçou seu boneco ainda mais forte e se levantou para que pudesse se aproximar.
Ouvia os irmãos contarem sua história, permanecendo onde estava, ainda hesitante em chamar pela garota dos cabelos negros. Admirava-se com o conto, perguntando-se o porquê de não haver nenhum homem como aqueles dois no seu lado do reino. Mas isso não era um problema já que podia ir para lá quando quisesse, desde que sua tia não descobrisse.
Quando terminaram, despediram-se ganhando a fúria dos pequeninos, que resmungavam por odiar o fato dos mais velhos serem tão ocupados, logo sendo consolados como de costume com a promessa de voltarem mais tarde. E após eles, Ashley se levantava para que também fosse embora.
Sendo assim, Tifany se apressou dirigindo-se até a moça, e quando viu seu rosto, as chamas de seu coração se acenderam novamente formando lágrimas de alegria em seus olhos, afinal, via toda a descrição de Agatha na face daquela menina. Levou a mão em frente à boca ainda a encarando, quase deixou seu boneco cair. Mas não demorou muito para que sentisse o desconforto de Ashley. De qualquer jeito, a dos cabelos negros também a encarava com admiração. Não era de seu costume encontrar jovens moças com idade próxima a dela por lá. Não que não existissem, mas costumavam trabalhar do outro lado para os nobres, cuidando das crianças ou da casa. Também tinham aquelas que já haviam se casado, olhando por sua própria família. Era uma exceção já que Clerence nunca a deixaria sair para trabalhar para qualquer um, pois além de saber dos perigos a que a garota estaria exposta, também guardava em seu coração uma das promessas que fizera ao ter a moça sobre os seus cuidados.
— Oh, perdoe-me. — Tifany falou gentilmente. De fato era estranho encarar alguém daquele jeito, todavia, estava feliz por tê-la encontrado. Ainda restavam dúvidas em seu coração, mas não teria respostas caso permanecesse em silêncio. — Achei que fosse a única a se interessar por contos de fadas... Seria interessante se pudéssemos compartilhar algum deles. — Tentou puxar assunto amigavelmente, olhando para ela mais uma vez com um sorriso meigo, só que Ashley permaneceu em silêncio como de costume. "Oh, céus... Como sou tola...", pensou colocando-se no lugar da outra, imaginava o quão estranha deveria parecer.
Frustrada, deu um suspiro e se sentou ao lado dela, deitando o boneco sobre a fonte e apoiando os cotovelos próximo aos joelhos escondendo o rosto com as mãos. Que situação... Sentia tanta vontade de chorar, queria tanto fugir de lá...
— Também achei que fosse a única... — E então Ashley quebrou o silêncio. Conseguia sentir o tamanho desconforto dela, ganhando empatia. Abraçava sua cesta como se a mesma a fizesse se sentir mais segura. — Na verdade, conheço outras jovens donzelas que também gostam, só que há dias que não as vejo.
A ruiva juntou o dedo indicador ao médio e o anelar ao mindinho olhando para a dos cabelos negros entre eles. Ainda sim permaneceram quietas por mais alguns instantes. Ashley observava as pessoas caminharem, evitava contato visual com a mais velha. Mesmo assim, tinha curiosidades sobre Tifany, feliz por enfim alguém vir até ela como tanto queria em seus primeiros dias na vila. Sonhava acordada, imaginando uma amizade florescer desde então, não se vendo mais sozinha. Talvez enfim Clerence deixaria de aborrecê-la com a ideia de ir à vila fazer amigos, pois agora teria uma.
Quanto à nobre, continuava olhando para Ashley. Direcionou seus olhos para a cesta com esperanças de estar certa em sua teoria. Corrigia a postura para que pudesse ver com mais clareza, então se deparou com a capa de um livro. Sabia que os plebeus não podiam ler, assim, arregalou os olhos em surpresa:
— Oh! Isso em sua cesta... — Mal conseguia fechar a boca ou deixar de olhar para aquele diário. — Não é possível... É você mesmo!
Ashley se levantou assustada, perguntava-se como havia deixado aquilo acontecer novamente. E se... E se ela a entregasse? Tinha que sair de lá o mais rápido possível, fugir enquanto tinha tempo. Deu suas desculpas, virando-se para correr, só que antes que pudesse se afastar de fato, a ruiva falou algo que a fez congelar onde estava:
— Eu conheço Agatha! Por favor... Não vá... — Também estava em pé, estendendo uma de suas mãos em direção a dos cabelos negros. — Já quase não me restam mais esperanças...
Era como se o mundo tivesse parado desde então, virando-se lentamente para a dos cabelos de fogo e a encarando por segundos que pareceram uma eternidade. Assim como ela, era tomada por dúvidas e incertezas, nem ao menos se recordava de seu próprio passado, além de se sentir próxima a dona do diário sempre que o lia. Pegou no pulso de Tifany, a qual ainda tinha a mão estendida, e a puxou para longe de lá. Mesmo sem saber para onde iam, confiou em Ashley. Nem ao menos perguntara para onde a levava, sentindo tamanho conforto em seu coração.
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Até mesmo os filhos do rei deviam avisar quando queriam conversar com o pai, que sempre se encontrava na sala do trono tomando cada única decisão. Bem, todos eles, menos o mais velho, primogênito e herdeiro ao trono.
Se encontrava atrás das grandes portas, que permaneciam fechadas até que ele ordenasse para que os guardas as abrissem. Respirou fundo recordando-se de seu último sonho, o qual lhe trouxe tamanho tormento por lembrar-se de alguém que por anos deixou para trás, só que, por mais que tentasse a esquecer, ela nunca deixava seu coração.
Era um belo homem, robusto com um semblante sério, derretendo o coração de diversas moças. Só que, diferente de seus irmãos, prezava por sua honra, não deixando com que nada nem ninguém apagasse suas virtudes. E por mais que tentasse preservar sua postura, deixou com que aquela inquietação tomasse conta de si naquela manhã, trancado em seu quarto chorando por longas horas. Sentia-se péssimo por ter deixado a menina para trás, por ter tentado esquecer aquela que um dia o amou como ninguém.
E claro, tinha que dar satisfações a seu pai já que não compareceu ao café da manhã. Sabia o quanto o velho se importava com ele e o quanto isso o preocuparia. Mesmo podendo desabar novamente a qualquer momento, manteve-se forte e então pediu para que os guardas abrissem as portas, logo sendo anunciado e se dirigindo até o trono.
— Oh, Drake! Aproxime-se, meu filho. — Caminhou para ainda mais próximo do pai assim sendo abraçado por ele. — Senti sua falta mais cedo. O que houve?
— Nada, meu pai. Apenas não me sentia disposto de manhã, mas já estou melhor. Não se preocupe quanto a isso.
— Que bom. — Sorriu, logo o soltando e batendo palma duas vezes. — Quanto a vocês, vão! Fora! — Chamava a atenção dos outros que estavam presentes, deixando que ficassem apenas os servos que lhe serviam vinho. — Deixem-me só com meu filho.
Como amava aquele rapaz, não escondendo sua preferência nem de seus outros filhos. Era seu orgulho, o mais obediente e virtuoso. E Drake também tinha tamanha afeição pelo pai, no entanto, não desejava ser como ele já que enxergava que o mesmo andava entre as trevas.
— Eu tenho uma missão para você, meu querido herdeiro. — Voltou a se sentar ao mesmo tempo em que o rapaz dava poucos passos para trás até que chegasse ao lugar em que os outros costumavam se apresentar. — Preciso que vá ao reino de Davies e os acompanhe ao nosso palácio para o grande baile que acontecerá em breve.
— Claro, meu pai.
— Também quero que converse com Davies amigavelmente para que, quando chegar, consiga fazer novos acordos com ele.
— Está bem.
O velho pegou sua taça e tomou o resto do vinho que tinha nela. Apreciou o sabor e logo voltou o olhar para o mais novo, colocando o cálice sobre a bandeja novamente, assim ouvindo o som de seu criado a enchendo como lhe era ordenado.
Adorava missões como aquela, já que era um homem aventureiro. Não que fosse sozinho. Como herdeiro, tinha que ser acompanhado pelos guardas mais poderosos, ainda que fosse o mais forte entre todos os outros. Também se alegrou ao recordar-se de seu sonho, talvez poderia vê-la caso a mesma ainda vivesse naquele mesmo reino.
— Além disso, não preciso dizer que já chegou a uma boa idade para que encontre uma esposa, sendo assim, aproxime-se de uma das filhas de Davies. Talvez se interesse por alguma daquelas belas donzelas.
— Oh... Quanto a isso, meu pai...
— Basta! — Sua expressão mudou. Dificilmente se zangava com seu filho, entretanto, já estava farto daquela loucura. — Deve-se casar com uma nobre rica, de preferência, uma princesa de um reino próspero como o de Davies!
— Com todo o respeito, senhor...
— Eu disse basta! — Não o deixava nem ao menos começar. — Não quero que volte a proferir loucuras como aquela. Esqueça essa mulher e passe a pensar grande.
E então se recordou do porquê de tê-la deixado para trás. Era um romance impossível, nunca poderia a ter como sua esposa caso o seu pai não permitisse, machucando mais e mais seu coração. Manteve sua postura mesmo que sua vontade fosse de abaixar a cabeça e chorar, só que caso o fizesse, seria repreendido violentamente já que seu pai odiava aquilo. Tinha o ensinado a ser forte dado que seria o próximo soberano daquele reino, nunca se prostrando a ninguém.
— O senhor está certo... — Hesitou em suspirar, fechando os olhos, engolindo em seco e logo os abrindo, assim encarando o mais velho. — Perdoe-me.
O homem se jogou para trás com a mão na cabeça como se estivesse com dor. Estava largado em seu trono. — Ai, minha cabeça. Os jovens de hoje em dia tem cada ideia estúpida.
— Posso ir, meu pai?
— Vá, filho. Vá. — O dispensou sem ao menos olhar para ele, balançando a mão. — E faça de acordo com o que eu disse, está bem?
— Sim. Até breve. — Iria se virar, contudo, foi impedido pela voz de seu pai o pedindo para esperar. Tinha algo a mais para dizer.
— Abençoo-lhe e abençoo seu futuro reinado. Desde que siga minhas palavras, será ainda mais próspero que eu.
— Obrigado, meu pai.
— Agora vá! Mal posso esperar para conversar com aquele velho pançudo. — Se referia a Davies. Costumava ofendê-lo pelas costas, tinha um pouco de inveja de sua prosperidade.
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