[Continuação da Parte 1]
O cocheiro desceu do banco e fez uma reverência profunda para cumprimentá-los.
— Bom dia, vossas graças sereníssimas. Sou Vasily Kovalenko e serei o condutor de vocês nesta viagem.
— Quais de nós? — questionou Laszlo, deixando o cocheiro um pouco confuso. — As outras carruagens estão a caminho?
— Não me informaram nada a respeito de outras carruagens — explicou Kovalenko, tirando um papel do bolso. — Pela minha escala, estou aqui para buscar a Princesa de Miédz e seu marido, o Príncipe de Khostovinist', o de Seleni e a Condessa Zotov e sua esposa.
— Isso são seis pessoas — disse Aleksey, sentindo as palmas da mão ficarem molhadas, tentando controlar a respiração.
A mera ideia de passar horas espremido em um caixote ao lado de Morena e Ivan o fazia querer entrar em combustão espontânea, a simples ideia da proximidade descompassando seu coração.
— Sim, por isso trouxemos a nossa maior carruagem — explicou o cocheiro, apontando para o veículo com um floreio. — Infelizmente com o fluxo de visitantes não podemos disponibilizar outros transportes.
— Eu não acho que seja possível levar seis adultos nessa carruagem — falou Morena, cruzando os braços. — Você viu o tamanho do meu marido? Já olhou para a Condessa? Está vendo o tamanho dos meus quadris? Nós três não vamos caber no mesmo banco de jeito nenhum.
— Eu nem sou tão grande assim. — Aleksey ouviu Ivan resmungar e Morena o acotovelou para fazê-lo ficar quieto.
Ele desviou o olhar, sem conseguir nem entender o aperto no peito que sentia.
— E a viagem dura duas horas — acrescentou Laszlo.
— Isso só pode ser um engano — interveio a Condessa Zotov finalmente, como se só naquele momento compreendesse o que estava acontecendo. — Seria uma grande ofensa se a Condessa Medinikov fizesse algo assim comigo, imagine com princesas?
Aleksey conteve uma gargalhada e Laszlo também pareceu se divertir com a ideia. Como se algum deles tivesse qualquer respeito da corte, principalmente de uma família influente como os Medinikov, que possuíam todos os favores da família Imperial; como se a influência de três Alquimistas fizesse alguma diferença, como se os oblasts distantes e exóticos de Mièdz e Khostovinist' fossem dignos de atenção.
No entanto, a Condessa Milana Ekaterinevna Zotov era nova naquele jogo específico. Sendo uma Condessa do oblast de Argon, provavelmente vivera todos seus anos sem sequer pensar fora de sua vidinha, usufruindo do poder quase ilimitado que vinha em ser uma nobre próxima à família imperial, que a protegia do que acontecia com os outros. Só que agora ela havia se casado com uma Alquimista há alguns meses — Veronika Evaevna, vetora, poucos anos mais velha do que eles, alguém de quem Aleksey sempre gostara de graça — e estava aprendendo em primeira mão o tratamento que vinha com essa união. Não havia influência familiar que compensaria um casamento tão abaixo de sua posição social.
— Bem, nós temos muitas convidadas para levar, várias delas princesas e condessas como vossa graça. — Kovalenko deu de ombros. — Não há nada que possamos fazer. Uma opção que a Condessa ofereceu é que fiquem aqui até amanhã ou depois, quando poderemos mandar outras carruagens para buscá-los.
Aleksey cruzou o olhar com o de Morena pela primeira vez desde que haviam se aproximado da carruagem e ela cruzou os braços, com um meio sorriso amargo. Era um recado claro para todos: eles não eram bem-vindos. Não fazia diferença se estivessem lá ou não, e, para a Condessa Medinikov, era melhor ainda se não estivessem. Porém, com uma pequena questão logística como aquela, se reclamassem ou achassem ruim, eles estariam sendo os mal-educados, os malvistos. Se Aleksey escolhesse ficar esperando, se preferisse permanecer na cidade por um ou dois dias, provavelmente considerariam como mais um dos caprichos de um homem irresponsável.
Se Morena fizesse o mesmo, com certeza considerariam desprezo e soberba da parte dela.
No entanto, a cada segundo que passava, a ideia de ser visto como irresponsável e se recusar a entrar naquela carruagem parecia mais atraente. Como que imaginando os seus pensamentos, Laszlo se aproximou e o segurou pelo braço, sem desfazer seu sorriso, olhando-o de canto de olho.
— Isso é um absurdo! Nós perderíamos quase todo o evento assim! — exclamou Milana, colocando as mãos na cintura e se aproximando mais do cocheiro. A Condessa Zotov era uma mulher de quase dois metros de altura, com músculos que cultivara com muito orgulho, e o cocheiro deu um passo para trás, repentinamente assustado. — Não é possível, você está mal-informado. Eu exijo uma carruagem só para nós.
— Mila — Veronika se aproximou da esposa, apoiando uma mão em seu braço, parecendo completamente sem graça. — Está tudo bem.
— Não está tudo bem — retrucou Milana, virando-se para a esposa. — Isso é um desrespeito.
— Não há escolha — Veronika falou mais baixo, olhando na direção dos outros. — É isso ou não participar.
— Eu não estou entendendo.
Era óbvio que ela não entendia. Poucos eram os nobres de Argon que reconheceriam uma Alquimista fora dos uniformes, mesmo um que fosse da nobreza — era como se fosse uma vírgula, uma nota de rodapé, algo completamente irrelevante, um mundo paralelo ao que viviam. A indiferença era a melhor dentre as opções, porque ao menos passavam despercebidos. Ao menos não precisavam lidar com mesquinharias como aquelas.
Morena deu um passo em frente, parando com uma mão no ombro de Veronika, encarando a esposa da Alquimista.
— Milana, eu e Aleksey estamos apoiando a candidatura de Veronika para o Sovet — falou em um tom casual, trocando um olhar com Veronika, que agradeceu silenciosamente. Veronika olhou para Ivan, que também havia se aproximado, e ele fez um gesto pequeno com a cabeça, em apoio.
Aleksey olhou para os próprios pés, tentando conter perguntas que não tinha direito de fazer: por que parecia haver algum tipo de cumplicidade entre eles, como se fossem amigos? Quando Veronika e Morena tinham deixado de ser meras conhecidas e se tornaram pessoas que conseguem conversar sem sequer trocar palavras?
Milana pareceu tão confusa quanto Aleksey estava se sentindo por alguns instantes, antes de, finalmente, prestar atenção em sua companhia. Ivan também cruzou os braços, as mangas justas da camisa comprovando involuntariamente que Morena estava correta quanto ao seu tamanho. Bem, pelo menos quanto ao tamanho dos braços. O que ele estivera fazendo no ano desde que eles deixaram a Azote para os músculos crescerem tanto?
Se fosse outro tempo, Aleksey certamente não teria mordido os lábios para segurar o comentário que estava na ponta de sua língua, só para controlar os outros pensamentos que inevitavelmente apareciam todas as vezes que ele se demorava na aparência de Ivan.
— Ah, meu Deus. Vocês são Alquimistas — Milana falou lentamente e olhou para a própria esposa. — Como você.
— Como eu — a esposa afirmou, apertando mais o braço de Milana. — Eu sei que você nunca vê Morena e Ivan fora da nossa casa ou da casa deles, mas não achei que iria esquecer assim. E Morena também está cotada como futura membra do conselho, assim como eu.
Milana ficou quieta, franzindo a testa, pensativa, um ar de constrangimento se apossando dela. Veronika aproveitou a deixa para tomar a dianteira, pedindo desculpas para o cocheiro antes de ajudar a esposa a entrar na carruagem, entrando em seguida. Ivan foi o próximo, em uma tentativa de organizar o espaço da melhor maneira possível, seguido por Morena e Laszlo. Aleksey foi último, aceitando de bom grado a mão que Laszlo lhe oferecera como apoio, e só quando estava encurvado abaixo do teto de madeira que percebeu a cilada em que se encontrava. Laszlo era o mais magro de todos eles e ocupara o pequeno espaço que sobrara do lado das Zotov, deixando para Aleksey o espaço mais amplo no banco logo a frente.
Exatamente ao lado de Morena e Ivan.
Aquele era o dia em que ele pagaria por todos os pecados que já cometera e pelos que ainda iria cometer, se ele não morresse de vergonha antes de cometê-los.
Ele se acomodou com cuidado ao lado de Morena, completamente ciente de que todos os seus movimentos eram observados pelo casal ao lado, sem desviar o olhar do homem sentado à sua frente. Ivan estava na outra janela. Aleksey tentou não pensar muito em como Morena parecia tensa, as pernas juntas e coladas nas de Ivan, e se encolheu no próprio canto. Duas horas não era tanto tempo assim, era? Se puxasse uma conversa besta com Laszlo, provavelmente sequer sentiria o tempo passar.
Aleksey olhou pela janela, observando enquanto a cidade corria por eles, até ficar para trás, dando lugar à vegetação verde-escura da floresta tropical que cobria grande parte daquela região. Era um lugar bonito, o oblast pelo qual Laszlo era responsável, abençoado pelo sol, pelo clima agradável e pelas terras férteis, o cheiro doce das flores e da brisa do mar sempre presente no ar. Talvez se conseguisse se concentrar no lado de fora, no caminho, tudo ficaria bem.
Só que então sentiu uma movimentação ao lado e olhou de soslaio. Ivan havia passado um braço pelo ombro da esposa e repousado os dedos sobre a pele nua da nuca de Morena em um toque suave, movendo-os lentamente e de forma descuidada. Aleksey olhou para janela novamente, encarando as árvores. Conseguia praticamente sentir o toque de Ivan na própria nuca, o cheiro dos jasmins do perfume de Morena trazendo a lembrança das noites em que passaram na casa dela em Miédz, os três sentados lado a lado, Ivan no meio. No início, achara que os toques de Ivan eram involuntários — ele só podia estar imaginando coisas, certo? Porém tudo com Ivan era daquele jeito, receoso, lento, e ele às vezes suspeitava que tudo não passava de um experimento de Ivan, um teste que Aleksey deixava continuar só para ver onde iria parar, prendendo a respiração e ficando imóvel para não assustá-lo.
Ele precisava parar de pensar. Pensar nunca trazia nada de bom e quando envolvia o casal sentado ao seu lado, era pior ainda. Já era difícil evitar as coisas que o faziam lembrar de Morena, da melodia das suas gargalhadas e de seus olhos escuros como mel de rosas. Só que, na Corte, tudo parecia conspirar contra ele — desde as flores do palácio vermelho, em Cinnabar, aos recitais que comparecia com Laszlo, sempre havia um detalhezinho que fazia Aleksey pensar nela. Sempre havia algo que ele sabia que ela amaria ver, que ele gostaria de contar ou mostrar para ela. Ela parecia estar em todo canto, mesmo com ele fugindo de todas as situações sociais em que poderia encontrá-la como um Santo fugia da tentação.
E Ivan... Os seis meses que passaram juntos na Azote sem ela, e sem a companhia um do outro, se Aleksey fosse completamente honesto, foram horrorosos e Aleksey preferia esquecer a sensação terrível de fingir que não se importava, que não o conhecia, enquanto observava o outro homem passar tanto tempo enfiado na biblioteca que se esquecia das refeições, fingindo não notar nas mãos cobertas de tinta ou enfaixadas dele, nem em como sorrisos ficavam cada vez mais escassos sem a presença da esposa, quase uma assombração nos corredores da academia de magia. Na Corte, era um pouco mais simples. Ivan pertencia àquele lugar tanto quanto uma águia pertencia ao fundo do mar, mas a baixa chance de vê-lo pelos corredores não não tornava nada mais fácil, porque era impossível lembrar de Morena sem lembrar de Ivan, e era impossível lembrar de Ivan sem lembrar dela.
No entanto, havia sido decisão dele se afastar, e a cada dia que passava tinha mais convicção de que estava certo. Aquele fora o único período desde que tinha doze anos em que Yakov não fizera nada contra ele ou contra alguém que ele amava, não havia dúvida alguma. Era, como Ivan diria, um fato facilmente observável. Tirar Morena e Ivan de sua vida havia restringido as opções de ação de seu tio, e não havia muito o que se fazer contra quem não tinha mais nada a perder.
[Continua na Parte 3]
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