Ivan segurou o cabelo da esposa, afastando-o na hora certa. Chegaram há pouco na residência de verão dos Medinikov e foram levados até um conjunto de cabanas que ficava a certa distância da mansão principal — que parecia uma réplica do Palácio Cobalto, estendendo-se pela orla com no mínimo uns cem cômodos — com a desculpa de que a residência estava muito cheia e aquilo era para valorizar sua privacidade. A jornada foi o tempo que Morena conseguira controlar o enjoo e, instantes depois de Aleksey e aquele homem que agora andava com ele para todo canto entrarem na porta da cabana ao lado de onde ficariam hospedados, ela se virou para o lado e despejou na terra avermelhada quase todo o conteúdo de seu estômago. Ivan passou uma mão pelas costas dela, tentando afrouxar o espartilho e Morena respirou fundo, se apoiando nele com uma mão.
— O remédio devia ter sido mais forte. — Aquilo foi a única coisa que ela conseguiu dizer antes de fazer uma careta e virar o rosto para o lado novamente.
— Na volta eu faço uma mistura melhor — sussurrou Ivan, enrolando a trança de Morena em um coque. — Não achei que iríamos demorar tanto.
— Foi aquela porcaria de carruagem velha — Morena falou com desgosto, enterrando os dedos no braço dele com mais força. — Mais lenta que um jegue e sacudindo mais do que um navio.
Ivan segurou a gargalhada e ela deu um breve sorriso, olhando para a cabana que os abrigaria. Era pequenininha e lembrava muito as casas das bruxas que habitavam as histórias infantis, com uma porta e uma janelinha na frente, o telhado de palha escura contrastando com as paredes avermelhadas. Faltava só criar pernas de galinha e sair andando. Era claramente uma mensagem da Condessa Medinikov sobre onde achava que era melhor que eles ficassem — na imaginação, fora do campo do real, uma mera história de ninar, o mais longe possível dela. Morena suspirou, apoiando o peso em Ivan.
— É pedir demais que eles tenham encanamento aqui, não é?
— Eu duvido que tenham encanamento na mansão, pela cara dela — Ivan respondeu, olhando por cima do ombro para o lugar onde o casarão se erguia, os detalhes cada vez mais difusos com o sol que se punha. — Não que seja um problema para a gente.
— Não mesmo. — Ela sorriu, fazendo um gesto para que ele fosse primeiro, e Ivan abriu a porta, adentrando o cômodo e auxiliando Morena a entrar em seguida. — Mas é até ajeitadinha, né?
Enquanto tiravam os sapatos na entrada, Ivan analisou o lugar que os abrigaria pelos próximos sete dias. Apesar de pequeno, era aconchegante: a cama era larga, macia, cheia de almofadas e travesseiros e, à esquerda, havia uma pequena área de descanso sob uma janela ampla, com duas poltronas e uma mesinha de centro em cima de um tapete. Um pouco mais ao lado ficava o portal que levava a um pequeno quarto de se vestir, onde suas malas já os esperavam. Morena não deu atenção, desabotoando a saia no caminho para a porta à direita. Ela se dirigiu ao pequeno móvel de madeira escura que continha tinha uma bacia e uma jarra de água de porcelana, decorada finamente com um padrão de pássaros e flores em azul, claramente importada de Xenon.
Ivan a seguiu, observando o pequeno quarto de banho. Havia uma banheira de porcelana relativamente pequena, com a mesma decoração da jarra, além do móvel em que Morena estava apoiada, que tinha um espelho de prata pendurado na parede e um recipiente de porcelana bem mais fundo abaixo.
— Você está melhor? Tem um penico aí embaixo se precisar vomitar de novo — disse, e Morena grunhiu algo incompreensível enquanto limpava a boca. — Eu posso pedir para alguém vir preparar um banho para você, se preferir.
— Ainda estou um pouco enjoada, mas o pior já passou — respondeu ela enquanto encarava a tinta azul dos padrões da jarra a sua frente, concentrada. — Quantos litros você acha que tem a banheira?
— Morena, você passou os últimos quarenta minutos nauseada por causa da carruagem e acabou de vomitar, não acho que seria bom você fazer qualquer feitiço nesse momento. — Ele se aproximou da esposa, encostando a mão em um dos ombros, e ela relaxou contra ele, encarando-o no espelho.
— Bem, você pode fazer então, se insiste — ofereceu Morena e ele a beijou no topo da cabeça. — Eu te explico, não é tão difícil assim.
— Eu acho que você pode descansar um pouquinho antes, porque eu ou você fazendo não vai ter diferença — disse Ivan, descendo a mão pela lateral direita do corpo dela até parar na cintura por cima do tecido, traçando o local onde a tatuagem que conectava a magia dos dois ficava localizada. — Que tal sentar um pouquinho, esperar o estômago se assentar, comer alguma coisa? Eu tenho certeza que trouxemos alguns damascos secos na bagagem para ajudar com seu enjoo.
Ivan sempre se sentia triunfante quando Morena concordava com ele sem retrucar e permitia que cuidasse dela. Com uma mão, ele a guiou até uma das poltronas antes de se ajoelhar aos pés dela e a ajudá-la com as meias, beijando a coxa um pouco acima dos laços que as prendiam antes de abaixá-las. Sentou-se em seus calcanhares depois, observando com deleite como os dedos hábeis de sua esposa desabotoavam a blusa e depois afrouxavam o espartilho, em movimentos precisos e elegantes que ele nunca cansaria de acompanhar.
Era como poesia, vê-la se despindo, não só porque sua esposa era uma mulher linda e extremamente atraente. Havia algo que acontecia no caminho entre o primeiro botão e ela ficar só de camisola que a fazia ser mais... sua, como se, naquele momento, ele não precisasse mais dividi-la com o mundo e ela se tornasse por completo a mulher que amava. Só percebera o quanto sentia falta daquela pequena intimidade nos meses em que ficaram separados — Morena em Cinnabar, Alquimista Extraordinária, dando andamento na carreira e assumindo seu papel como nobre; ele, na Azote, terminando sua tese, a cada dia mais desesperado porque parecia que nunca acabaria, que nunca sairia dali, que nunca voltaria a ver Morena. Ela ia visitá-lo quando podia, é claro, mas duas noites a cada três meses só tornavam as saudades piores quando ela partia.
Se Aleksey ao menos estivesse ao seu lado, poderia ter se sentido menos solitário, mas nunca se permitia pensar demais naquilo.
Ivan ofereceu um copo de água para Morena e o saquinho de papel com damascos secos, que ela aceitou de bom grado, a cor voltando para suas bochechas instantes depois de comer.
— Vou ficar mal-acostumada assim — brincou ela e ele beijou a ponta de seu nariz.
— Estou apenas lhe dando o tratamento que a Princesa Górski merece, meu amor.
Morena gargalhou e apoiou as pernas na mesinha de centro, mexendo os dedinhos e se alongando. Ivan abriu a janela, que dava para um conjunto de árvores floridas em rosa e vermelho, e se sentou na poltrona ao lado da dela, tirando primeiro o colete, depois as meias e, por fim, a camisa. Só agora que havia se acalmado percebeu o quanto aquela cabana era quente e como estava suando, mesmo com as duas janelas abertas. Não parecia correr um vento que fosse e olhou na direção do quarto de banho com um suspiro, considerando que talvez valesse a pena já fazer o feitiço para que pudessem logo tomar banho. Não faria tanto mal assim, afinal, não fora aquele o motivo pelo qual haviam unido suas magias? Para que pudessem compartilhar o poder e usá-lo mesmo quando um deles não estava se sentindo bem? Se tivesse trazido um dos seus leques, não precisaria passar por aquilo, mas estavam se esforçando para parecerem parte daquele lugar que não os queria.
Eles ficaram em um silêncio confortável por alguns instantes, Morena com as pernas apoiadas no joelho de Ivan enquanto ele massageava a sola dos pés dela. Ela recostou a cabeça na poltrona, soltando um gemido delicioso e fechando os olhos.
— Eu até que fui com a cara do Príncipe Poroshenko — Ivan quebrou o silêncio depois de um tempo, subindo a mão para envolver o tornozelo dela. Morena o olhou de soslaio, franzindo a testa. — Vocês iam se dar bem, ele também é muito passional quando se trata de saneamento básico.
— Olha só, em Tantalum existe encanamento há quase mil anos. Todas as cidades de Miédz foram construídas levando isso em conta, desde a primeira, há mais de quatrocentos anos! É absurdo demais que por aqui eles sequer cogitem isso como uma possibilidade e a gente precise usar um buraco no chão no meio do mato ou, pior, um penico — discursou Morena, e ele gargalhou.
— Sim, exatamente por isso. Ele ficou quase todo o tempo que você estava dormindo falando sobre como contratou não sei quem de Astatine e sei lá quem de Tantalum para ajudar a redesenhar as principais cidades de Khostovinist’ e mais alguma coisa sobre armazéns e comida. — Foi a vez de Ivan fazer a esposa rir. — Eu não sei os detalhes, mas você vai gostar de conversar com ele.
— Ah, eu duvido que tenhamos tempo para isso — disse ela, desviando o olhar. — Além disso…
— A gente não pode deixar de falar com as pessoas só porque Aleksey está por perto ou porque tem alguma ligação com ele.
— Mas eu posso evitar. — Morena desencostou a cabeça da poltrona.
— Morena…
— Ele é bem atencioso, não é? — Ela deu um sorriso que poderia até enganar outra pessoa, mas nunca Ivan. — Poroshenko. Ajudou Aleksey a entrar e a sair da carruagem, sem chamar muita atenção, do jeito que Aleksey prefere.
— O que é o mínimo, sinceramente — comentou Ivan, cruzando os braços, reparando como os olhos da esposa se desviaram por um instante para observar o movimento.
Ivan começara a seguir os treinos físicos que o pai lhe enviava por vários motivos — em primeiro lugar, porque se sentia inútil na corte, incapaz de ajudar Morena com nada que importasse, e a rotina de exercícios lhe dava algo para fazer. Em segundo, porque depois que começara, percebera que se sentia bem e que talvez houvesse alguma razão na máxima de Xenon de que mente e corpo deveriam ser igualmente exercitadas para realizar magia apropriadamente. Porém, o melhor de todos era a forma como Morena o olhava, como se ela estivesse prestes a se ajoelhar e lambê-lo todinho independente se estivessem em público ou não.
— Mas é mais do que Aleksey está acostumado. — Morena desviou o olhar, suspirando, voltando os pensamentos de Ivan para a conversa. — Você não acha esquisito ver ele com alguém? Assim? Ele sempre chegava nos cantos sozinho e escolhia a companhia no evento em questão.
— Ele sempre chegava nos cantos com a gente — lembrou Ivan, olhando para a janela, na direção em que era possível para ver a cabana de Aleksey. — E sempre saia com a gente também, quando não encontrava ninguém.
— Não é a mesma coisa — falou Morena a contragosto.
— Não é a mesma coisa o quê? — questionou, umedecendo os lábios antes de prosseguir: — Ele inclusive acabava dormindo na nossa cama algumas vezes.
— Ivan.
O nome foi dito em tom de aviso.
— Mas é a verdade!
— Não do mesmo jeito. Não é a mesma coisa.
[Continua na Parte 2]
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