[Continuação da Parte 1]
Ivan olhou para a esposa em silêncio, levantando uma sobrancelha, um lembrete das inúmeras conversas que tiveram nos últimos meses. Desde a noite em que Morena se graduara como Alquimista Extraordinária, ela estava diferente. O que deveria ter sido o ápice dos estudos, o dia em que finalmente ela atingira um dos seus principais objetivos, havia acabado em lágrimas e frustração e com Aleksey se afastando — o que, na visão de Ivan, era motivado principalmente por um sentimento de culpa que não fazia sentido nenhum. No entanto, Aleksey e Morena eram próximos há muito tempo, mas ainda mais nos meses que antecederam a prova, em que haviam cuidado dele e o ajudado a se recuperar do ferimento da perna, levando-o até a residência deles em Mièdz. Aleksey se encaixou bem até demais na vida que tinham lá, como se pertencesse ali, e a sua ausência era difícil, nítida, algo que Ivan lutava para não pensar a todo momento. Aleksey sempre sabia o que dizer, o que fazer, e Ivan tinha ciência de que havia coisas que Morena só falava para ele.
Afinal, ele fazia o mesmo.
Porém, enquanto ele tomara o afastamento de Aleksey como algo temporário, uma fase que passaria rapidamente quando percebesse que estava sendo irracional, Morena fizera o máximo de esforço possível para fingir que nada acontecera. Não só o dia da prova, mas tudo que acontecera antes. Se ele deixasse, ela reescreveria a história deles para fingir que Aleksey nunca fora tão importante, que estava tudo bem, que não havia nada faltando na vida dela.
— Eu não estou a fim de ter essa conversa agora, Junjun — disse Morena, recolhendo as pernas e se levantando. — Vou tomar banho que é o melhor que faço. Não acredito que saí da umidade de Mièdz só para vir para esse abafado insuportável!
Ivan não queria admitir que talvez aquele fosse um esforço perdido: quando se tratava de teimosia, a competição entre sua esposa e Aleksey era acirrada, e se os dois se convencessem de que aquela situação em que estavam era definitiva, não haveria o que fazer para modificá-la. Porém, não insistiu naquele momento — ele nunca insistia por tempo demais, ciente de que a melhor estratégia quando se tratava de Morena era convencê-la com calma, devagar mas com perseverança.
Ivan ficou observando enquanto ela se movimentava dentro do outro cômodo. O vidrinho de tinta que ele sempre carregava estava na ponta do móvel de madeira enquanto ela enfiava o dedo dentro e desenhava o círculo alquímico em cima do azul da jarra. Ivan sentiu sua pele se repuxar, a tatuagem reagindo ao uso de magia de Morena. Quando terminou, ela foi até a banheira e o barulho de água corrente dominou o cômodo.
Ivan fechou os olhos, respirando profundamente. Ele não comentaria, mas o cheiro de Aleksey estava em todo lugar, nas roupas deles, no cabelo dela, o perfume que ele nem sabia como descrever — Morena sempre falava que tinha cheiro de tempestade, mas tirando as flores que cheiravam como o cabelo da esposa, ele não tinha um olfato muito bom — fazendo-o desejar que o que pudessem esquecer fosse os últimos meses. Desejando que tudo pudesse ser como antes, que pudessem sair dali, encontrar Aleksey e passar o resto da noite juntos, aturando o escrutínio da corte lado a lado.
Ele precisava desesperadamente de um cigarro.
Ivan se levantou de supetão, pegando a cigarreira do bolso do colete que jogara no chão, antes de avisar:
— Eu vou fumar lá fora rapidinho.
— Então você está me deixando tomar banho primeiro? — perguntou ela de onde segurava a jarra acima da banheira, enchendo-a com a água que parecia nunca acabar.
— Só se você deixar a água morna para quando eu voltar — provocou ele e ela riu.
— Não se preocupe. Se não estiver, a gente dá um jeito de esquentar — disse Morena, o tom cheio de duplo sentido e ele precisou voltar da porta para beijá-la antes de sair, murmurando um “te amo” logo antes de ser distraído pelo toque das mãos quentes em suas costas e a mordida leve em seu lábio inferior.
Quando desceu a mão de onde a segurava pela nuca para tocá-la em outras partes, ela o impediu estralando a língua em repreensão logo antes de rir.
— Depois do jantar — murmurou ela contra os lábios dele, que formaram em um biquinho frustrado. — A gente não pode se atrasar.
— Se a gente nem for para o jantar, nunca estaremos atrasados — disse ele, propondo uma negociação, mas ela só riu e o empurrou suavemente, fazendo um gesto para ele ir embora.
Ivan segurou o sorriso involuntário, traçando inconscientemente o desenho das flores da tatuagem em seu peito nu. Ele se permitiu imaginar por um segundo como estariam naquele instante se, em vez de gastar a única semana de férias do Conselho Alquimista que Morena tinha em uma festa besta como aquelas, tivessem escolhido ir para a estação termal da família de seu pai, o mesmo lugar onde passaram a lua de mel, quase uma década antes. Como seria se pudessem levar Aleksey com eles, como sempre prometeram que fariam.
Respirou fundo, tentando fazer os pensamentos tomarem algum rumo minimamente decente enquanto saia para o calor do fim da tarde, afastando-se do lugar onde a esposa havia vomitado e dando a volta na cabana, parando no caminho de terra que passava entre onde estavam hospedados e a cabana de Aleksey. As cabanas eram as primeiras daquele pequeno aglomerado de hospedagens, com mais algumas mais na frente, todas com alguma distância entre si e uma imensa seleção de arbustos tropicais separando-as. Ivan abriu sua cigarreira e escolheu cuidadosamente um cigarro, tentando se concentrar naquele pequeno ritual que sempre o acalmava. Só quando o colocou na boca que percebeu que havia esquecido isqueiro que Morena lhe dera no dia de Reis lá dentro e, sem a mulher por perto, não havia como acender.
— Precisa de fogo?
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais Edição: Laura Pohl e Val Alves Preparação: Laura Pohl Revisão: Bárbara Morais e Val Alves Diagramação: Val Alves Título tipografado: Vitor Castrillo
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