Ivan levou um susto e ergueu o olhar, notando Aleksey ao seu lado somente depois que ele falara. Viu primeiro o fogo, que Aleksey oferecia na ponta de um dedo, e então se inclinou para acender o cigarro sem pensar duas vezes, mantendo o olhar no homem à sua frente. Percebeu duas coisas ao mesmo tempo: o quanto Aleksey deixara a barba e o cabelo crescerem, o que lhe caia muito bem, e como encarava Ivan intensamente.
Ivan então percorreu os olhos pelo resto de Aleksey: ele estava sem camisa, a calça justa pendurada precariamente nos seus quadris, a trilha de pelos que sempre chamava sua atenção traçando um caminho para o cós da calça, o cabelo longo despenteado. Tentou não pensar muito nos botões desfeitos e nem no sentimento que vinha quando pensava nos dedos de Poroshenko desabotoando-os, e olhou para o horizonte, onde o mar se estendia, dando uma tragada profunda no cigarro. Sempre soubera objetivamente como Aleksey era bonito, com os olhos cor de mel e um sorriso sempre ameaçando surgir no rosto, mas nunca havia se sentido tão atordoado quanto naquele momento. Era como se a distância acentuasse tudo, principalmente o quanto sentia sua falta. Não só das piadas e das conversas, do sorriso e da risada de Aleksey, mas da presença dele, ali, fisicamente, ao seu lado. A sensação ficava ainda pior sob o escrutínio do outro homem, que o observava abertamente, fazendo Ivan sentir um calor que não tinha nada a ver com o clima.
— Eu não sabia que você tinha uma tatuagem, muito menos uma grande assim — disse Aleksey, o olhar descendo pelo tronco nu de Ivan até parar no desenho que marcava a pele do lado esquerdo.
Ivan levou uma mão para onde ele olhava, o calor subindo para o rosto, a sensação de constrangimento se misturando ao sentimento de burrice por ter esquecido que também estava sem camisa, em um lugar em que gente que não era sua esposa podia vê-lo e fazer perguntas sobre o desenho que marcava sua pele. Pior ainda: em que Aleksey podia ver e fazer perguntas. Ele não engoliria nenhuma das desculpas esfarrapadas que tinham prontas para justificar o símbolo da união da magia de Morena e Ivan.
O olhar deles se cruzou novamente.
— São jasmins? — continuou Aleksey, e Ivan não soube se o pior foi perceber que ele estava tão acostumado com os silêncios de Ivan que conseguia preenchê-los com facilidade, ou se foi o que falou a seguir: — Como o perfume da sua esposa?
— É uma flor bonita — disse Ivan, defendendo-se e se arrependendo em seguida ao ver Aleksey tentando segurar uma risada.
— Sim, de fato — concordou Aleksey, passando uma mão para tirar o cabelo do rosto enquanto descia o olhar novamente, como se fosse um feitiço, aquecendo cada centímetro de Ivan conforme avançava. — E fica bem em você.
Ivan deu outra tragada, desviando o olhar e apoiando uma mão no cós da calça, mas incapaz de se conter. Precisava olhar para Aleksey direito, entender o que os últimos meses haviam feito com ele, além de deixá-lo ainda mais bonito. Aleksey decidiu imitar Ivan, tirando um cigarro próprio do bolso e o acendendo com a mesma naturalidade que fizera segundos antes para Ivan.
— Minha mãe sentiu sua falta no dia de Reis — Ivan falou de súbito, incomodado com o peso do silêncio entre eles.
— Eu sei — respondeu Aleksey, tragando seu cigarro. — Ela me mandou uma carta e um lenço que ela pintou de presente esse ano.
Ivan encarou Aleksey, franzindo a testa. A mãe dele tinha feito o quê? Uma parte dele sabia que se Morena descobrisse, ficaria furiosa. Ela estava bem decidida de que nenhum deles deveria incomodar Aleksey, e enviar uma carta e um presente definitivamente se enquadraria na definição dela de perturbação. Porém, a outra parte de Ivan desejou que a ideia tivesse sido dele, que fosse sua a coragem de escrever para Aleksey apesar do que a esposa dizia. Queria poder dizer que pensara nele todos os dias desde a prova em que Morena se graduara, que todos os preparativos para o dia de Reis o lembravam dele, das coroas de flores que fizeram juntos em uma noite dois anos antes, do sorriso que exibira enquanto recebia presentes e o afeto que ele nunca tivera em sua família. Queria dizer o quanto Aleksey fazia falta, o quanto a ausência dele parecia preencher cada canto da casa deles em Miédz, ao ponto de Morena não querer nem morar mais lá e passar a maior parte do ano na casa que tinham na Capital Vermelha.
No entanto, aquele era o preço que pagava por ser obediente, ele supunha, mesmo sabendo que Morena não tinha cumprido o que ela mesma exigia dos outros. Mesmo ciente de que ela escrevera tudo aquilo, apenas para nunca receber uma resposta. Talvez não fizesse diferença e a esposa estivesse certa e o problema fossem eles.
— Professor Górski? — Uma voz grave interrompeu seus pensamentos e ele e Aleksey se viraram na direção do som.
Pelo caminho de terra que levava para as outras cabanas, aproximava-se um homem de altura mediana, com o cabelo escuro e olhos azuis, as orelhas e os dentes igualmente proeminentes, com um rosto comprido, feições que não eram comuns em nenhum dos quatro países do continente. Ivan o reconhecera quase imediatamente e sentiu o estômago gelar: era um tal de Frederick Ashbury, um mago de Irídio que trabalhava junto a embaixada do país em Argon e estava envolvido no projeto de pesquisa que Ivan estava trabalhando agora. Um projeto do imperador. Do tio de Aleksey. A prova de que Ivan se deixara seduzir por um óbvio canto de sereia, bem ali: em carne, osso e cara de cavalo.
— Professor Górski? — perguntou Aleksey baixinho, num tom de zombaria que Ivan sentira tanta falta.
— Eu sei tanto quanto você. — Ivan deu de ombros e acenou de volta para o homem que o cumprimentara a distância.
Obviamente, o mago de Irídio tomou aquilo como um convite e caminhou até onde os dois estavam, com seu andar convencido. Ivan não tinha paciência para o homem no laboratório e duvidava que seria diferente fora dele. O estrangeiro parou por um momento, franziu a testa, provavelmente tentando entender o motivo porque os dois estavam ali sem camisa, mas continuou se aproximando mesmo assim. O coração de Ivan parecia prestes a explodir e ele engoliu em seco, xingando mentalmente Ashbury até a décima quinta geração. Qual a parte de sigiloso ele não compreendia? Em que parte da tradução de vocês devem fingir que não se conhecem para o iridiano a mensagem fora perdida?
Ivan olhou para Aleksey de canto do olho, esperando que ele não notasse seu nervosismo. Se aquele homenzinho tagarela decidisse falar com ele, não teria como explicar como o conhecia sem precisar de algumas mentiras, e Ivan era um péssimo mentiroso.
Porém, é claro que o mago falaria com ele, era incapaz de ficar de boca fechada.
— Muito feliz de encontrá-lo aqui! Quando recebi o convite achei que não conheceria ninguém, porém seria uma desfeita recusar. No fim, conclui que é uma excelente oportunidade de estudar os costumes locais — disse o homem, estendendo uma mão na direção de Aleksey. — Muito prazer, Duque de Ashbury.
— Aleksey Aleksandrov — respondeu Aleksey com diversão na voz e estendeu a mão, sem dúvida se fazendo mil perguntas.
— Ah, vocês e seus nomes — comentou Ashbury, revirando os olhos. — Esse aqui quando se apresentou era o terceiro Ivan que eu conhecia no mesmo dia, como é que vocês sabem quem é quem? Aleksey eu conheço uns cinco! Parece que só existem meia dúzia de nomes! Do Professor Górski mesmo, precisei descobrir o nome da esposa para saber o sobrenome!
Aleksey olhou para Ivan com as sobrancelhas levantadas e Ivan fez um gesto com a cabeça, pedindo silenciosamente que não levasse nada do que estava sendo dito a sério.
— Eu acho que faz sentido — Ashbury continuou tagarelando, Ivan completamente incapaz de seguir o raciocínio da conversa. — Aqui é quente demais, faz sentido ser um costume fumar sem camisa do lado de fora da casa.
— Eu não acho… — Ivan começou, sem nem saber o que dizer.
— Sim, é uma tradição milenar — concordou Aleksey, com o tom de troça que só ele conseguia produzir. — Quando a temperatura está acima de vinte e cinco graus no verão... acho que isso se traduz para uns duzentos graus na temperatura que vocês usam? A tradição diz que é preciso se encontrar com seu vizinho quando faltam quinze minutos para o pôr do sol para compartilhar o momento da morte da luz e de alívio do calor.
Ivan levou uma mão ao rosto, tampando a boca e fingindo se engasgar para que o iridiano não percebesse que estava segurando uma gargalhada.
— Essa aqui é a saudação de despedida do sol — disse Aleksey, apontando na direção de Ivan, que começou a tossir mais intensamente. Aleksey mesmo aproveitou para tossir de forma forçada duas vezes antes de continuar: — Nós forçamos o ar dos nossos pulmões para fora para honrar o sacrifício que o sol faz ao fim de cada dia.
— Ah, nossa, que exótico — Ashbury falou, franzindo a testa e olhou para Ivan, como quem busca uma confirmação, deparando-se apenas com outro aspecto exótico. — Eu também não sabia que vocês tinham costume de marcar o próprio corpo.
— É um segredo — explicou Aleksey, continuando sua fantasia elaborada, salvando Ivan de ter que explicar qualquer coisa. Os olhos dele brilhavam com a travessura, como se ainda fossem adolescentes aterrorizando os professores da escola com as peças que pregavam. — A cada quinze invenções que um alquimista registra com o conselho, ganhamos uma diferente. Eu mesmo tenho uma aqui. — Aleksey puxou um pouco a calça, fazendo Ivan apenas encará-lo, boquiaberto, incapaz de qualquer pensamento coerente ao mostrar uma pequena tatuagem de uma rosa bem no osso do seu quadril, quase revelando pele demais para o mago que acabara de conhecer. — Como Ivan é um inventor sem igual, ele recebeu uma grande.
Ivan tinha certeza absoluta que Aleksey não tinha aquilo antes, em todas as dezenas de vezes que o auxiliara no banho durante sua recuperação. Tinha certeza de que se lembraria daquele detalhe.
— Minha nossa. — Ashbury enrubesceu, procurando qualquer outro lugar para olhar que não fossem os dois homens. — Eu não fazia ideia…
— Não vá contar para todo mundo em Irídio, viu — disse Aleksey, dando uma piscadela. — É um dos segredos mais bem guardados dos Alquimistas.
— Ah, claro que nunca faria isso — respondeu o Duque, em um tom que indicava que ele claramente faria aquilo assim que tivesse a primeira oportunidade. Ivan desviou o rosto e levou uma mão à testa, completamente incapaz de se segurar com a galhofa de Aleksey. — Eu respeito muito bem os costumes pouco civilizados de vocês, compreendo que existe todo um contexto cultural e celebratório por trás deles. Acho fascinante, na verdade, que gostem tanto de celebrar. São um povo muito... ah... como posso dizer... livre.
— Eu posso te mostrar a outra tatuagem que eu tenho — disse Aleksey alegremente, levando as mãos aos botões da calça que restavam fechados. — Mas ela fica num lugar um pouco menos acessível, se você não se incomoda…
— Não, não — disse o Duque com veemência, balançando as mãos, visivelmente nervoso. — Eu estou com pressa, a Baronesa Lupokhin me aguarda para tomar um chá na casa principal. Continuem com o ritual de vocês, já os atrapalhei o suficiente.
Aleksey se despediu de forma polida, mordendo o canto da boca para segurar o riso enquanto o homem passava da trilha de terra das cabanas para o caminho pavimentado que atravessava os jardins até a casa principal. Ele finalmente soltou a gargalhada quando o Duque sumiu de vista.
— De onde você conhece aquela criatura? — perguntou Aleksey, e Ivan riu também, passando uma mão pelo cabelo e olhando para os próprios pés.
Ele podia falar uma pequena verdade, não podia? Só uma, bem pequena, só o suficiente para ver como Aleksey reagiria ao saber o que ele estava fazendo, só para saber se perguntaria mais, se ele se interessaria pelo menos um pouco.
— Ele está num projeto de pesquisa que eu faço parte — explicou Ivan devagar, observando a reação de Aleksey. — Age o tempo todo como se estivesse num jardim zoológico observando os espécimes de animais exóticos.
— O dia que você der um soco na cara dele, me chame para ver — brincou Aleksey, levantando as sobrancelhas.
Ivan o encarou, o silêncio pesando mais do que mil palavras. Sentiu um aperto na garganta e um vazio no peito, engolindo em seco. Era a familiaridade que era o pior de tudo, a forma de Aleksey agir como se jamais tivesse se afastado. Como se eles fossem voltar a se ver no próximo instante, como se não precisasse perguntar mais nada porque Ivan certamente lhe contaria em breve. Ele adoraria poder esquecer tudo o que aconteceu, mas sabia que no instante em que cada um seguisse seu caminho, seriam meses até terem uma outra oportunidade. Seria uma eternidade em que Ivan passaria tentando colher migalhas de informações a respeito de Aleksey, olhando-o de longe nos poucos salões de baile que frequentava. Eles não compartilhavam nada além daqueles momentos agora que estavam na Corte.
Aleksey pareceu não saber o que fazer com as mãos, que já haviam terminado o cigarro, e as enfiou nos bolsos, parecendo extremamente constrangido. Ivan ponderou por um instante se deixaria o momento se prolongar, se aquilo serviria para Aleksey se aproximar, e decidiu que não.
— Eu preciso voltar. — Ele fez um gesto na direção da cabana, sem saber ao certo se Morena seria um assunto seguro entre eles.
— Ah, sim, claro, claro. Volte para ela — disse Aleksey, nervoso, passando os dedos pelo cabelo mais uma vez. — Eu também preciso voltar porque…
— Bem — Ivan interrompeu antes que ele pudesse falar o nome de Poroshenko —, nos vemos no jantar?
— Acredito que sim, Laszlo odeia pular refeições.
Ivan deu as costas, apertando os lábios em desagrado, dando um passo em direção à cabana, mas lembrou-se de um pequeno detalhe. Ele se virou novamente, vendo Aleksey já um pouco distante, e o chamou:
— Aleksey?
— Sim? — Aleksey parou, virando-se para encará-lo, os olhos parecendo brilhar no crepúsculo.
— Não conte para Morena do projeto de pesquisa, certo? É um projeto secreto que não mencionei ainda e…
— Não precisa se preocupar, Ivan. Seu segredo está a salvo comigo, não há chance alguma de eu contar qualquer coisa já que não falo mais com ela.
E, simples assim, Ivan compreendeu um pouco melhor como Morena deveria ter se sentindo na última vez em que falara com Aleksey, porque cada passo que Aleksey dava para longe, na direção da própria cabana, era como se carregasse consigo uma parte do coração de Ivan.
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais Edição: Laura Pohl e Val Alves Preparação: Laura Pohl Revisão: Bárbara Morais e Val Alves Diagramação: Val Alves Título tipografado: Vitor Castrillo
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