Sorte era algo que Morena desconhecia há algum tempo, mas naquele dia, as coisas pareciam ter enveredado de vez para o campo do mais puro azar. Começara no momento em que pisara na estação de Kinchyk e a primeira pessoa que vira fora Aleksey com o namorado novo saindo de um vagão mais à frente, Aleksey exibindo um sorriso como se estivesse feliz da vida.
Até aí, tudo bem. Não foram muitas pessoas que desceram na estação, mas na confusão de tirar as malas do trem, era normal não perceber quem estava nos arredores. Ela mesma só vira Veronika e Milana depois que pegaram suas bagagens e as encaminharam para o balão que levaria tudo para a mansão dos Medinikov. A diferença é que ela e Ivan foram até elas e as cumprimentaram, separando-se apenas quando Ivan não conseguira encontrar seu caderninho e decidiram se afastar para comprar outro. Porém, Aleksey não havia feito esforço algum naquele sentido — não os cumprimentara quando se aproximaram da carruagem, muito menos quando se sentara ao lado dela no veículo, e como Morena havia jurado para si mesma que respeitaria as decisões dele ao máximo, não o cumprimentou de volta. No entanto, isso não significava que a indiferença não doía. E era pior ainda em uma carruagem que definitivamente não comportava todos eles, principalmente com Aleksey se encolhendo como se quisesse desaparecer, como se ela tivesse algum tipo de doença contagiosa, como se estar ao lado dela fosse o último lugar que ele queria estar.
E como se não bastasse o enjoo que sempre vinha quando ela andava em veículos que chacoalhavam muito, ainda precisara fazer a viagem ao lado de alguém que preferiria que ela sumisse. O composto que Ivan lhe dera funcionara mais do que o de costume, pelo menos — havia passado a maior parte da viagem adormecida — mas ainda estavam longe de acertar a dose certa e a última meia hora fora infernal. Morena direcionara todo seu foco para evitar vomitar em cima de Aleksey, algo que dificilmente melhoraria sua situação.
Depois disso, as coisas só pioraram. Ivan voltara de sua saída para fumar agindo de forma esquisita e respondendo em monossílabas, esquivando-se de todas as tentativas que ela fizera para tentar entender o que acontecera naqueles poucos minutos. Para piorar, a menstruação de Morena, que ela torcera para atrasar pelo menos em uma semana, talvez sequer descer como ela desejava que acontecesse todos os meses, começara a dar os seus sinais. Os seios estavam pesados e sensíveis, as pernas doloridas, o fantasma da cólica assombrando seu ventre. Se pudesse, ficaria ali aconchegada no marido e não daria as caras, mas não podiam deixar de aparecer no jantar de recepção, não se não quisessem ser olhados ainda mais torto do que de costume durante todo o ano seguinte.
Então, ela tomara um pouco do chá de camomila que trouxera consigo, escolhera o vestido de festa mais leve da bagagem e, com o incentivo de Ivan, arrastara-se pelo caminho até a casa principal.
O jantar seria servido no pátio do lado de fora da mansão, elevado no mesmo nível da residência e voltado para os jardins que existiam entre as cabanas em que estavam hospedados e o edifício. O local estava iluminado fortemente por correntes de lâmpadas amareladas alimentadas com magia, uma exibição ostensiva de dinheiro e poder, já que mesmo dentre os nobres presentes, poucos conseguiam pagar ao Conselho Alquimista dinheiro o suficiente para manter não só alguém com aptidão mágica de prontidão para supervisionar o funcionamento, como também pela tecnologia.
— Eu sempre me pergunto o que eles diriam se soubessem como é lá em casa — sussurrou Ivan com humor e ela riu. — Imagina o choque com a combinação de encanamento e luz em uma cidade inteira?
— Fala baixo que da última vez que perceberam as diferenças, eles nos invadiram — respondeu Morena e ele levantou as sobrancelhas. — E essa roupa bonita que você veste é paga com o dinheiro que eles nos dão por quererem comprar essas coisas de nós.
— Ah, então a abordagem nessa viagem é “vamos tirar o máximo de dinheiro desses arrombados”, e não “vamos assustá-los para eles não olharem nem na nossa direção”. Compreendido.
— Por que não os dois? — sugeriu ela e Ivan escondeu a boca com a mão para rir, como sempre fazia quando estavam em público.
Morena se aproximou e o beijou na bochecha, aceitando a mão do marido para ajudá-la a subir as escadas até a mansão. Lá em cima, foram recebidos pela Condessa Medinikov, a anfitriã, com uma troca de sorrisos falsos antes de serem direcionados para a mais vazia das mesas compridas e retangulares em que o jantar seria servido. Uma garota os acompanhou, acomodando Ivan numa ponta da mesa, e depois assentou Morena no extremo oposto, fazendo-a encarar o conjunto de pratos e a imensa quantidade de talheres à sua frente com um suspiro pesado, perguntando-se quantos deles ela utilizaria naquela noite. Duvidava que alguém se lembrasse das restrições alimentares que vinham com a religião dela, e, por experiência própria, era melhor ficar com fome do que passar mal.
Ela se recostou contra a cadeira, suspirando, relaxando um pouco. Demorou alguns instantes para perceber que a pessoa que sentava à sua esquerda estava tão tensa que parecia deixar o ar um pouco mais pesado e levantou o olhar, confusa.
Era Aleksey.
Bem ao lado dela.
E ficaria ali por todo o jantar, se seguissem as regras de etiqueta à risco.
Procurou Ivan e o viu na outra ponta, sentado ao lado de Poroshenko e de outro homem que parecia ser algum emissário estrangeiro. Aparentemente, seu marido mantinha a mesma conversa polida que começara na carruagem e estava longe demais para salvá-la. À sua frente, a mulher mais exasperante do universo, a Baronesa Sokolov, respondeu com monossílabos a todas as tentativas de Morena de fazê-la travar uma conversa. Embaixo da mesa, a perna de Aleksey encostou na dela por um instante e ele a puxou na velocidade da luz, murmurando um pedido de desculpas e tensionando ainda mais.
Excelente. Seria um jantar eterno, sem ter com quem conversar, tentando adivinhar os ingredientes dos pratos que serviam para não comer nada indevido, agonizando segundo após segundo com a proximidade de Aleksey e a repulsa que ele exibia tão abertamente.
Era difícil estar ao lado dele, sentindo o cheiro fresco e salgado que se misturava tão bem com a brisa que vinha do mar, sem lembrar da última vez que estiveram juntos de verdade. A prova de titulação de Alquimista Extraordinária era para ser o melhor dia da vida deles, o momento pelo qual os dois batalharam, como um time, um ajudando o outro e levando-os para frente. Não fora diferente durante a prova — mas nenhum dos dois suspeitava que acabasse sendo só mais uma das artimanhas de Yakov Yulievich, o único tio de Aleksey, e acabaram se esquecendo de que nada de bom vinha de quem não tinha mais o que fazer. Havia sido ruim o suficiente perceber que ela não fora nada além de um peão nas mãos de Yakov, e que caíra no jogo sem sequer reparar, mas a cereja do bolo fora Aleksey decidindo que ficaria melhor sozinho.
A princípio, achou que não seria uma mudança radical — principalmente nos seis meses que Morena passara entre a Corte e Mièdz, sozinha, conseguindo ir para a Azote para ver Ivan só duas vezes naquele período inteiro, quando a distância era inevitável. Também enviou algumas cartas para Aleksey, que nunca foram respondidas. O seu tempo de visita era tão curto que ela o vira apenas uma vez, e ele a cumprimentara rapidamente antes de seguir seu caminho. Ela tentou se convencer de que aquilo era natural. Estavam apressados, os dois, e não havia tempo. Porém, quando ele e Ivan finalmente se graduaram e foram para a Corte, era inevitável cruzar com Aleksey. Ele se sentava ao lado dela nas reuniões da Duma, no conselho expandido de Alquimistas, em todos os jantares e eventos em que eram convocados. Eram convidados para reuniões, para negociações e outras questões burocráticas sempre em conjunto. Eles dividiam um gabinete, pelo amor da Deusa!
O máximo de comunicação que tinham agora eram os bilhetes que trocavam combinando os horários que cada um usaria a sala.
Morena suspirou, voltando o olhar para o próprio prato, os olhos ardendo. Ela precisava de uma distração urgentemente ou correria o risco de virar assunto de todos os fofoqueiros daquele lugar. No único lampejo de sorte do dia, Veronika Evaevna se acomodou na cadeira à direita de Morena, sua expressão mostrando tanto alívio quanto Morena sentia.
Veronika era uma mulher de estatura mediana e um pouco mais gorda do que Morena, com cabelo e olhos castanhos, com a pele marrom-clara, vários tons mais escura do que a de Aleksey. Seu rosto redondo, com o nariz reto e fino tão comum entre os daliashin, e os lábios bem-marcados transformavam-na em uma mulher bonita que passava confiança. Veronika dava a impressão de que qualquer segredo estaria seguro com ela. Na Azote, elas nunca conversaram muito nos jantares de sabá que participava toda semana — uma das tradições da religião que compartilhavam que Morena mais apreciava — mas depois que fora para a Corte, o Sovet as colocara para trabalhar juntas quase imediatamente.
As duas sabiam exatamente o motivo: Veronika podia não ser de Mièdz, onde a maioria dos adeptos à religião delas morava, mas ainda eram do mesmo grupo étnico e entre elas não haveria o empecilho da mistura de medo e desprezo que os outros normalmente sentiam por eles, mesmo entre alquimistas. Principalmente entre alquimistas.
— Boa noite — Veronika falou animada, se inclinando para frente para poder se dirigir a Aleksey também. Ela abaixou a voz um pouco antes de continuar: — Ainda bem que estou perto de vocês dois porque literalmente não tenho mais nenhum assunto para conversar com nenhum desses…
— Veronika... — alertou Morena, segurando um sorriso e a mulher bufou, levando uma mão ao penteado elaborado que usava e que certamente a estava incomodando. Ao lado de Morena, Aleksey riu, mas ela preferiu ignorá-lo. — Eu também estou feliz que você está aqui.
— Faz sentido, não acha? Fica mais fácil servir a nossa comida se estivermos juntas — ponderou Veronika, olhando para o próprio prato. — O que acha que vão servir? É sabá, é bom ser algo caprichado.
— Eu espero que você tenha trazido sua própria comida — disse Aleksey, se inclinando para a frente e abaixando a voz até só elas conseguirem escutar no burburinho das outras conversas. — Porque se depender de qualquer pessoa da Corte, vocês vão morrer de fome.
— Não é possível, eu não só tenho que me vestir assim… — Veronika fez um gesto para as próprias roupas: um vestido com um decote generoso e bem estruturado, em cetim rosa, com certeza algo que a esposa dela escolhera e completamente diferente do estilo prático que ela preferia. — E agora não vai ter comida? Mila me prometeu que ia ter comida.
— Não se preocupe, eu te ajudo a decidir. Sempre tem alguma coisa de dá para comer nos trinta pratos que eles servem na noite — disse Morena, apoiando uma mão no braço da amiga. — Talvez se Milana avisou, eles se lembrem dessa vez. Nunca dá para saber.
Morena sentiu o olhar de Aleksey sobre ela e precisou se conter muito para não se virar. Ela estava mentindo e ambos sabiam disso, mas o que ele queria que ela fizesse? Concordasse e dissesse que agora a vida da sua amiga seria assim para sempre? Estragaria a felicidade de recém-casada de Veronika revelando que aquela união a condenara a sofrer escárnio e agressão passiva enquanto estivesse casada, então era melhor se acostumar? Morena não era tão cruel assim. E, além disso, não tinha como ter certeza de que o mesmo aconteceria com Veronika e Milana. Era melhor não tirar esperanças.
No entanto, antes de organizar seus pensamentos para continuar a conversa, sentiu os pelos da sua nuca se arrepiarem e percebeu que alguém se aproximava deles. O perfume doce e pungente veio primeiro, como uma fruta que passou do ponto, quase sufocando Morena, fazendo-a ser incapaz de decidir se era um cheiro bom ou ruim. Depois, uma mão repousou pesadamente no encosto de sua cadeira. Ao seu lado, Aleksey ficou quase tão pálido quanto no dia em que ela o resgatara na casa de campo da família Barabash, depois que ele levara um tiro do tio, e ela se virou para olhar para a pessoa que estava ali parada entre os dois.
Era uma mulher alta, com um vestido azul-escuro que valorizava seu colo, o cabelo preto preso num penteado de tranças empilhadas, os cachinhos que escapavam emoldurando cuidadosamente o rosto. Morena piscou algumas vezes, confusa. Tinha certeza absoluta de que nunca a vira antes, porque ela se lembraria de uma mulher tão bonita assim. Havia algo naquelas feições quase felinas, nos olhos cor de safira, na sobrancelha arqueada, na forma como o vestido que usava acompanhava suas curvas generosas que fazia um lado menos racional de Morena querer se ajoelhar aos pés dela e implorar para ser pisada.
— Boa noite, meu sobrinho querido — disse a mulher, abrindo exibindo um sorriso emoldurado pelos lábios pintados de vermelho. — Como é bom ver você depois de tanto tempo. Estamos sentindo sua falta.
Sobrinho?
— O prazer é todo meu, tia Nadezhda — respondeu Aleksey em seu tom mais falso, exibindo um sorriso que pareceria genuíno para qualquer um que não o conhecesse. — Como está formosa esta noite. Meu tio não pode acompanhá-la dessa vez?
Morena piscou e olhou para a mulher mais uma vez, se esforçando ao máximo para continuar impassível, torcendo muito para que ninguém reparasse a mistura de espanto, descrença e medo que ela estava sentindo. Nunca vira a mulher antes — nenhuma vez sequer em todos os seus vinte e quatro anos de vida, na mais de uma década desde que ficara amiga de Aleksey — mas tanto Aleksey quanto a mãe dele falavam da esposa de Yakov como se ela fosse um monstro terrível, o próprio diabo personificado na terra.
As aparências eram mesmo enganosas.
— Você conhece seu tio. — Nadezhda revirou os olhos e deu de ombros, sem oferecer mais explicações. Ela se virou para Morena sem sequer abalar seu sorriso. — Agora, você não me apresentou sua coleguinha. Suponho que seja a Princesa Górski?
[Continua na Parte 2]
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