[Continuação da Parte 1]
— Que educação a minha! — exclamou Aleksey, olhando para Morena com o canto de olho. — Morena, esta é a Baronesa Medinikov, esposa de meu tio Yakov. Tia, esta é a Princesa Górski, do oblast de Mièdz.
Com a confirmação, o primeiro reflexo de Morena foi esticar a mão para tocar o joelho de Aleksey embaixo da mesa, os dois trocando olhares rápidos. Ela até poderia estar com a raiva, poderiam ficar naquela situação completamente esquisita a vida inteira, mas nada mudaria o fato de que ela faria qualquer coisa para protegê-lo. Ele pressionou a perna contra a mão dela, em um lembrete quase doloroso de como as coisas eram antes, da forma como estavam sempre juntos, em todo lugar, se apoiando e se protegendo em todas as situações. Em um lembrete claro do que ele escolhera acabar.
Morena sentiu seu coração se acelerar e mordeu a parte interna da bochecha para voltar a si, a ansiedade de ser pega desprevenida por uma ameaça desconhecida fazendo as mãos suarem.
— Muito prazer em conhecê-la — disse Morena com uma animação que não sentia. — Ouvi falar muito de você, como é bom finalmente ter um rosto para ilustrar as histórias!
Nadezhda riu, arrumando um cacho atrás da orelha e se inclinando na direção de Morena. Aleksey pressionou mais a perna contra a mão dela embaixo da mesa e, por um instante, ela ficou completamente atordoada com aquela proximidade, o cheiro de Nadezhda quase sufocando-a, o calor da pele de Aleksey parecendo queimar a sua mão. A outra mulher umedeceu os lábios antes de responder:
— Eu também ouvi falar muito de você, mas parece que todo mundo esqueceu de mencionar sua esplêndida beleza. É até um desrespeito com ela, Aleksey. Como você pôde deixar esse detalhe de fora?
A tia de Aleksey a encarava com tanta intensidade que Morena sentiu um rubor subir pelo pescoço, ficando completamente desconcertada com toda a atenção. Embaixo da mesa, Aleksey puxou a perna, livrando-se do toque e se afastando o máximo que podia. Morena engoliu em seco, recuperando-se.
— A essa altura achei que você soubesse que só ando com gente bonita — retrucou Aleksey, cruzando os braços, vacilando por uma fração de segundo na máscara de leveza que sempre usava naquelas situações.
— Eu tenho algumas objeções à sua definição de beleza — disse a Baronesa sem desviar os olhos de Morena —, mas parece que você guarda os melhores tesouros para si.
Aleksey deu uma gargalhada forçada antes de limpar a garganta e tentar mudar de assunto:
— A festa deste ano parece estar excelente. Mande meus cumprimentos à sua irmã pela ótima organização. As cabanas em que estamos são uma coisinha primorosa, acomodação de primeira.
— Pode ter certeza que passarei os elogios adiante, e tomo-os para mim também, já que a auxiliei com quase tudo. O menu do jantar foi especialmente planejado por mim e pedi para que caprichassem nos seus pratos. — Nadezhda deu uma piscadela para Aleksey, inclinando-se na direção dele. — Bom apetite.
Em seguida, se virou para Morena, apoiando a mão delicadamente em seu ombro e se inclinando mais para perto antes de dizer:
— E você, meu anjo, se ficar entediada dos seus meninos, é muito fácil me encontrar.
Só quando a tia de Aleksey estava longe que Morena sentiu que conseguia voltar a pensar direito, embora ainda estivesse atordoada pela confusão de sentimentos dos últimos instantes. Ela olhou para Aleksey de canto de olho, mas ele havia se voltado para o seu prato e chamado um dos garçons para encher a taça de vinho, ignorando-a por completo. Morena sentiu um aperto no peito e a garganta seca, com a impressão de que acabara de fazer algo errado que afastara Aleksey de vez. Ao seu lado, Veronika, que ficara calada apenas observando toda a conversa, soltou o ar com um som alto e as duas trocaram olhares.
— É ela que é a amante da esposa do Imperador, não é? — Veronika sussurrou para Morena, que só conseguiu concordar com um gesto de cabeça. — Que sorte da esposa do Imperador!
Morena soltou uma risada, acalmando-se um pouco com o gracejo da amiga, aliviada de que não fora só ela que achara Nadezhda atraente. Aleksey cheirou a taça de vinho com sofisticação antes de virá-la de uma vez e resmungar qualquer coisa.
— O que foi? — Morena não conseguiu resistir.
— Seu marido está ali na outra ponta da mesa. — Ele apontou na direção de Ivan com o queixo, parecendo um menino contrariado. Ela conteve um sorriso, achando fofa a expressão no rosto dele.
— Ah, tenho certeza que ele concordaria com a gente. — Morena deu de ombros, olhando na direção de Ivan, que desviara a atenção para um ponto além da mesa onde estavam. — Olha lá.
Ela mostrou para Aleksey o que Ivan observava exatamente no momento em que Nadezhda se inclinou para cumprimentar uma outra mulher numa mesa mais além. Aleksey pareceu ficar ainda mais emburrado, com um biquinho que era uma gracinha.
— Você nunca tinha contado que ela era tão bonita — Morena o provocou, ciente de que ecoava as palavras que a tia dele falara há pouco tempo.
— Dizem mesmo que o diabo é bonito, mas não saberia opinar.
— Ah, francamente, Aleksey, dá para avaliar objetivamente e achar que ela é bonita e também que é o diabo ao mesmo tempo. Não é a sua religião que diz que o diabo um dia foi o mais bonito dos Santos?
Aleksey soltou o ar devagar, recuperando o controle e a sua persona pública, mas Morena conseguia ver como ele estava tremendo. Ela se arrependeu quase imediatamente de ter feito a zombaria, e quase apoiou a mão novamente no joelho dele para acalmá-lo, contendo-se no último instante. Em vez disso, se aproximou dele, encostando levemente em seu braço, e falou:
— Não se preocupa, você não está sozinho. Não vou deixar ela fazer nada com você.
Aleksey olhou para ela com uma expressão indecifrável, mas não conseguiu dizer nada porque a confusão para servir o jantar se iniciara. Um batalhão de criados saiu da mansão carregando os pratos servidos e os colocando na frente dos convidados, em uma sincronia impressionante, no primeiro de muitos movimentos daquela noite. Morena sempre detestava aquele tipo de serviço, porque o desperdício era inevitável. Ninguém conseguia comer mais de uma dezena de pratos, por menores que fossem, e grande parte deles voltava para a cozinha intocados, como o primeiro prato — uma sopa fria de beterraba que Morena comeu sem pensar duas vezes, mas que grande parte dos seus vizinhos sequer tocou. Não havia garantias de que os próximos seriam tão inofensivos. Veronika a imitou, com uma expressão de desagrado, mas sem reclamar.
Em vez de comer, Aleksey tomou metade da taça de vinho, o prato diante dele indo embora do mesmo jeito que chegou, e sendo substituído pelo próximo. Morena subitamente sentiu a vergonha subir em uma onda de calor pelo pescoço, mas por um motivo completamente diferente da que sentira mais cedo: ela prometera que não faria o que acabara de fazer. Prometera que iria respeitar Aleksey e o espaço dele, as escolhas que fizera, o que ele queria; que não iria forçá-lo a nada, que não iria insinuar nada. Só o deixaria em paz, como ele queria, mantendo-se o mais distante possível dos assuntos dele e de seus problemas de família. E bastou um instante e uma mulher ridiculamente bonita para ela se esquecer completamente das promessas que fizera.
Ivan riria tanto da cara dela quando voltassem para o quarto.
A segunda entrada foi uma porção pequena de shashilik, com um pequeno trio de espetinhos de legumes assados variados, que Morena e Veronika também comeram. Aleksey tomou o resto da taça de vinho, o segundo prato indo embora intocado. No terceiro prato, uma porção de caviar com blinis, nenhum dos três sequer olhou duas vezes para a comida, o primeiro em que praticamente todos os seus vizinhos se refastelavam. Na altura do quinto prato que Aleksey sequer mexera o dedo para pegar um talher — o frango com manteiga de ervas que ela sabia que era um dos seus pratos favoritos —, Morena percebeu que o problema era outro.
— Quer? — ela perguntou baixinho, empurrando o prato na direção dele suavemente. — Come do meu.
— Você não vai comer? — Ele se inclinou na direção dela, a quantidade de vinho que tomara de barriga vazia parecendo ser o que bastava para que ele se esquecesse completamente do que acontecera entre eles. — Já tem pouca opção para você e…
— Eu não sei como mataram o frango e estou para menstruar, não quero arriscar ficar pior do que já estou — sussurrou ela de volta, empurrando mais o prato. — Troca o prato com o meu, ninguém vai reparar.
Aleksey olhou para um lado e para o outro antes de fazer a troca com rapidez, precisando se controlar para seguir as regras de etiqueta e não devorar a comida de uma vez. O próximo prato foi um porco assado com legumes, que Morena também trocou com Aleksey, ficando satisfeita em vê-lo comer com entusiasmo. Olhou para os pedaços de carne à sua frente, repassando a conversa que tiveram com Nadezhda instantes antes do jantar começar. O que foi que ela dissera? O menu do jantar foi especialmente planejado por mim e pedi para que caprichassem nos seus pratos. Ela ficara tão perturbada com a aparição da mulher, seu próprio corpo cansado e o toque de Aleksey que deixara aquela ameaça velada passar batido.
— Você acha que ela está tentando te envenenar? — perguntou para Aleksey baixinho, e ele retornou o garfo para o prato, olhando para ela.
— Eu que não vou testar para saber se estou certo ou não — respondeu ele. — Mas seja o que for, não deve ser letal. Ela não estragaria a festinha dela com uma coisa tão inconveniente quanto um cadáver. Não deve ser muito diferente da última vez.
— Já aconteceu antes? Aleksey... — Morena falou suavemente e ele balançou a cabeça, voltando a atenção ao prato.
Era sempre assim com Aleksey. Tudo o que sabiam sobre ele e a família eram fragmentos, coisas que ele deixava passar quando estava distraído, comentários pontuais feitos com irreverência que davam indícios de barbaridades. Sabiam da relação difícil que os Barabash tinham entre si, mas nunca a profundidade. Em momento algum ela acreditara que o tiro que Yakov dera em Aleksey era um acidente, e aquilo parecia ser só a ponta de um iceberg muito mais profundo, com muito mais nuances do que Morena jamais imaginou. Só de pensar em Aleksey, isolado por achar que assim era mais seguro, ela sentia vontade de chorar.
— Eu não devia ter comentado isso — murmurou ele, tirando o guardanapo do colo e o colocando em cima da mesa. — Sinto muito por envolver você nesse assunto, ele não é do seu interesse. Com licença.
E Morena observou atônita enquanto ele cometia o maior pecado em uma festa como aquela: ele se levantou no meio do jantar, atraindo os olhares de toda a mesa. Ele deu as costas e foi embora sem olhar para trás. Poroshenko se levantou segundos depois, seguindo-o, e Morena sentiu o coração apertar, sem conseguir discernir um sentimento único entre o turbilhão que a tomara. Sentia como se a comida estivesse prestes a voltar, um gosto amargo dominando sua boca.
Foi o toque de gentil de Veronika em seu braço que a trouxe de volta, fazendo-a respirar fundo e Morena olhou para a mulher ao seu lado com constrangimento, sem fazer ideia do que falar ou como dar explicações. Conseguia sentir os olhares do resto da mesa em cima dela como um questionamento pesado, como se todos soubessem que a saída de Aleksey da mesa era culpa dela, como se exigissem uma justificativa para as ações do homem. Morena não tinha sequer coragem de levantar os olhos para o outro lado da mesa, para encontrar Ivan, com medo de que ele também a olhasse com censura pelo que ela acabara de fazer, de que a culpasse por afastar Aleksey ainda mais.
Para piorar a situação, a cada segundo que passava parecia que os sentimentos que estavam acumulados no peito iriam transbordar, e ela sentiu os olhos arderem e se encherem de lágrimas. Respirou fundo mais uma vez. E mais outra. Se chorasse ali, na frente da Corte, na frente dessas pessoas que não hesitariam um segundo em atacá-la, em atacar seu povo caso soubessem que ela possuía qualquer fraqueza, seria o seu fim. Seria devorada viva, ainda mais desrespeitada, ainda mais descartada. As palavras que sua mãe sempre lhe dizia voltaram a ecoar em sua mente: poder demanda respeito. Mostrar qualquer brecha na imagem que ela construíra era destruir o poder que precisava, sendo quem era.
— Você quer ir embora? — Veronika perguntou baixinho, apoiando uma mão nas costas de Morena e se inclinando na direção dela, tampando um pouco a visão de quem estava à direita das duas na mesa.
— Eu não posso — respondeu Morena, abaixando o olhar, sua voz vacilando de uma forma que ela odiava. Ela limpou a garganta e tentou explicar: — Todo mundo vai falar e…
— Todo mundo já vai falar, de um jeito ou de outro — disse Veronika, como se fosse simples assim. — Não faz mais diferença agora.
— Mas…
— O que é melhor, você ficar aqui com essa cara e começar a chorar no meio desses abutres ou sair de cabeça erguida, como fosse sua intenção ir embora ao meio desse jantar desde o início, retomando o controle para si, como a princesa que você é? — Veronika insistiu, com uma intensidade inesperada.
Morena sentiu ainda mais vontade de chorar e soltou o ar que estava prendendo, assentindo com a cabeça. Sentiu uma gratidão imensa por aquela mulher que conhecia há tão pouco tempo, mas que parecia entender exatamente a posição em que Morena se encontrava. Em que as duas se encontravam. Talvez Veronika se saísse melhor ali do que Morena imaginava.
— Sim o quê? Ficar aqui? — Veronika questionou novamente, com um meio sorriso e Morena deu uma risada.
— Vamos embora.
Veronika se levantou graciosamente, como se não houvesse mais ninguém ali, e estendeu uma mão para Morena, que aceitou. As duas entrelaçaram os braços e se afastaram da mesa de queixo erguido, apesar de Morena estar tremendo tanto que não sabia se conseguiria andar direito até sua cabana.
— Ivan está vindo — Veronika disse depois de olhar para trás discretamente, inclinando-se na direção de Morena. — Milana também.
— Bom, é um cortejo maior do que eu esperava — Morena brincou, sua voz saindo um pouco aguda demais.
— Para que se casar se não for para ter o apoio incondicional do seu cônjuge? — Veronika comentou e Morena riu. — Você precisa de água? Quer que eu peça para alguém levar para a sua cabana?
— Eu tenho. Tenho comida também, se quiser. Tem chalá, pão de mel, tâmaras e damascos, acho — enumerou ela, tentando desesperadamente encontrar uma distração para tirá-la daquele vórtice de pensamentos turbulentos.
— Tem vodca?
— Isso é bem fácil de providenciar.
Veronika abriu um sorriso imenso e fez um gesto de aprovação.
— Então arrume o suficiente para tomarmos enquanto você me explica que porra de drama está acontecendo entre você, seu marido e Aleksey.
Continua…
--
CRÉDITOS
Autora: Isabelle Morais Edição: Laura Pohl e Val Alves Preparação: Laura Pohl Revisão: Bárbara Morais e Val Alves Diagramação: Val Alves Título tipografado: Vitor Castrillo
Comments (0)
See all