O mundo tomado por escombros não era segredo para ninguém, muito menos para Soraya e Nicholas que viveram toda sua vida presa no bunker, isso porque além de ter câmeras de vigilância para fora da porta, para observar a movimentação e quiçá descobrir potenciais vítimas do desastre para socorrê-lo o quanto antes, também servia de alertas para os demais sobre como o mundo lá fora se tornou hostil e solitário.

Mas isso não podia impedir o entusiasmo da Soraya diante daquele cenário.

• Primeira vez que vejo um carro, o que diabos é isso que tá crescendo nele?

• São cogumelos e musgo. - Respondeu Nicholas.

• 
  

• Que vozinha é essa! - Ela começou a gargalhar. - Ai minha barriga, sua voz tá estranha.

• Olha quem fala!

• Isso deve ser o efeito do filtro, ele afina a voz por conta da passagem de ar. - Explicou Roger- Segura a Soraya, porque vocês já quebraram todas as regras que eu impus antes de sairmos do bunker.

• Relaxa Roger, você mesmo disse que não tem nenhuma aberração pois essa região é inabitável, apenas gente com máscara vai poder andar por aqui sossegado.

• Não é para tanto, a névoa acaba impregnando no macacão, e se não passar por uma esterilização em menos de 12 horas ele começa a corroer ele, e se tivermos em contato com o ar daqui fora será nosso fim.

• Porque você não disse isso antes? Estamos em um grande perigo! - Retrucou Nicholas.

• Até ontem você estava afirmando o modo que você gostaria de morrer.

• Só porque aceitei minha morte, não quer dizer que quero morrer agora, desgraça!!!

Depois que Nicholas se acalmou, os três foram em direção até o carro que Roger havia encontrado como drone, até que um barulho de passos rápidos o assustou.

• Roger, você ouviu isso?

Soraya e Roger se viraram para ele.

• Ouviu o que?

• Não sei, parecia passos

• Deve ser sua imaginação.

Os dois partiram para frente, enquanto Nicholas encarava a cidade atrás dele.

• Deve ser minha imaginação mesmo.

• Falou alguma coisa?

• Nada, vamos logo.

O barulho começou a aumentar intensamente, mas dessa vez não só o Nicholas, quanto os demais notaram algo errado, atrás dele, carros que tinha sido largados na rua começaram a se levantar um a um, como se algo gigantesco estivesse atropelando, até finalmente surgir um tipo de lacraia gigante, com uma deformação na cabeça que se assemelha a cogumelos, ou protuberância nauseantes, percorrendo furiosamente em direção aos três.

• Você não disse que não teria monstros nesta região?

• E por acaso isso importa agora? Todo mundo corre!

Os três percorriam em meio aos carros ziguezagueando, enquanto a lacraia mutante ia atropelando tudo que via pela frente, quando a lacraia estava prestes a abocanhar a Soraya, um outro monstro surgiu, um lagarto gigante, abocanhando o corpo da lacraia, que se enrolou no focinho, os dois começaram a lutar pela sobrevivência, Roger ajudou Soraya a se levantar por ter caído no chão atordoado pelo ataque repentino.

O resto do caminho, Roger teve que arrastar Soraya que ainda não havia se recuperado e finalmente eles chegaram no carro.

• Droga, me lembre de nunca mais sair de um bunker, isso foi tão traumatizante. - Disse Nicholas tentando recuperar o fôlego.

• Do que você está reclamando, você não foi perseguido por uma cobra gigante, minhas pernas cederam de vez. - Retrucou Soraya

• Era uma lacraia, e por enquanto tudo deu certo, aqueles dois monstros não vão vir atrás de nós. - Roger puxou a maçaneta da porta mas ele não abriu.

• O que foi?

• Sabe, eu pesquisei sobre o carro ideal para utilizarmos, mas não pensei na possibilidade de que ele estivesse trancado.

• E agora que você vê isso? Estamos condenados.

• Calma lá, em meus tempos de juventude, eu já trabalhei como mecânico, sou especialista em arrombamento de portas de carros.

• Isso é incrível Roger!

• Ele está mentindo, isso nem sequer é um cargo de emprego, só se ele for um criminoso.

Demorou, mas Roger conseguiu abrir a porta, depois de puxar a fresta com um pé de cabra que ele pegou na mochila.

• Mas você arrebentando a porta desse jeito, não vai inutilizar o sistema de vácuo e logo a névoa invadiria o interior, impedindo que a gente não precise utilizar o filtro?

Roger ficou pensativo por um momento.

• Vou parar de arranjar livros pra você Nicholas, você tá ficando menos burro!

Dessa vez o que interrompeu os três, foi o barulho de esteiras esmagando carros no seu caminho, um tanque de guerra se aproximou perto deles, e manobrou o cano até o lugar que eles estavam.

• Meu Deus, que monstro é esse? Um elefante? Aquilo é uma tromba?

• É só um tanque de guerra, e se estiver sendo pilotado, deve ser humano.

• Aquela coisa não vai atirar na gente? Não me sinto confortável com aquela coisa mirando em nossas cabeças?

A portinhola acima do cano de tanque se abriu, de dentro saiu uma pessoa, utilizando máscara de gás, um capacete de soldado, e um macacão camuflado.

• Realmente são humanos Lara! - Disse a pessoa que saiu do tanque. - Estão perdidos? Se quiser pode nos acompanhar.

Sem alternativas, os três entraram no tanque, quando finalmente a escotilha fechou atrás deles, foram surpreendidos pelo mesmo lagarto gigante de antes, correndo em uma velocidade acima do normal, seu focinho e olhos completamente rasgados pela luta feroz contra a lacraia.

• Monstro vindo no noroeste - Afirmou Lara.

• Gire o cano para 180 graus e prepare um disparo imediatamente.

Ela respeitou as orientações de Lisandra, com um solavanco na parte de cima do tanque girou em direção a criatura, os estalos da lataria entregava uma premissa nada satisfatória para Roger e seus colegas de bunker.

O Lagarto alcançou o tanque, abocanhando o cano dele, Lara apertou o gatilho e o projétil percorreu por toda a estrutura até invadir a garganta do monstro, explodindo-o de dentro para fora, vísceras de réptil se espalharam por toda a cidade, uma chuva de sangue encobria aquele monstro mecânico e avassalador.

Roger respirou aliviado, aquele pesadelo tinha terminado de vez, Lara deu um soco de satisfação para o alto, mas as comemorações foram interrompidas por um ataque de tosse do Nicholas.

• Nicholas! Você está bem? - Soraya dava tapas leves nas costas dele, enquanto ele se contorcia de angústia.

• Ele tem a doença do fungo?

• Faz três dias que ele está tossindo sangue, não sabemos mais o que fazer. - Choramingou Soraya.

• Pois é seu dia de sorte, o doutor Geto pode diagnosticar seu amigo, aliás, antes de mais nada, eu sugiro que vocês joguem seus macacões no incinerador. Não queremos que este bunker móvel seja contaminado também.

Mesmo depois de tomarem banho e vestir roupas novas, Roger ainda não acreditava naquela estrutura, era como se o lado de dentro fosse muito maior que o lado de fora, um bunker móvel dentro de um tanque de guerra, as únicas imagens que ele tinha deste veículo internamente era um cenário claustrofóbico e desconfortante. Lisandra percebeu a inquietação de Roger e explicou o que estava havendo.

• Doutor Geto foi responsável por construir esse veículo, um bunker que pode se locomover por entre as cidades, em vez de esperar que o trem da alegria alcançasse onde você está instalado, é você que vai até os recursos, toda a estrutura de um tanque de guerra é justamente para se proteger de monstros do lado de fora.

Lisandra removeu a máscara de gás, uma mulher de cabelo castanho, raspado no lado direito, era possível ver uma cicatriz que percorria a nuca até alcançar a orelha.

• Meu nome é Lizandra, mas pode me chamar de Lis, é um prazer. - Ela cumprimentou Roger.

• Roger, eu cuido daquelas duas pestes.

• São seus filhos?

• Quase isso!

• Meu nome é Soraya, e ele o Nicholas. - Apresentou Soraya.

• Você parece ter a mesma idade que eu, a Lisandra tinha dito que não existia ninguém da minha idade neste mundo, fico contente de encontrar alguém da mesma faixa etária. - Comentou Lara alegremente.

• Não fique chateando os visitantes. - Lis percebeu que Nicholas ainda não havia removido a máscara. - Você pode remover a máscara aqui dentro Nicholas, está seguro.

• É porque não quero acabar contaminando vocês com minha doença.

Lis entregou uma cartela de comprimidos para Nicholas.

• Você tomou este remédio? Se sim, tenta tomar quatro vezes ao dia ao invés de duas, não vai te curar mas vai aliviar os sintomas até finalmente chegarmos até o doutor Geto.

• Obrigado moça!

• Não precisa agradecer. - Ela sorriu reconfortante.

• Não tem nem como agradecer-mos.

• Na verdade vocês têm muita sorte, estávamos apenas de passagem quando avistamos um movimento estranho.

O dia terminou, o tanque de guerra estacionou em um local mais tranquilo, o sistema de camuflagem do veículo acionou e assim ele pode se misturar com as rochas avermelhadas daquele ambiente, todos se puseram a descansar, Soraya e Nicholas dormiam de forma despreocupada, o que tirou sorrisos de Roger que os observava, ele foi em direção a uma salinha de recreação onde Lis fumava seu cigarro enquanto mexia em um tablet de comunicação.

Ela notou a presença de Roger e pensou em oferecer um cigarro, mas ele recusou.

• O que vocês estavam fazendo fora do bunker? Pretendiam ir em algum lugar?

• Os recursos de lá tinham acabado junto com os remédios,Nicholas estava piorando a cada dia, não podíamos ficar parados enquanto um de nós morria lentamente.

• Sério? Quanto tempo vocês estavam naquele bunker?

• Uns 10 anos de recurso, na verdade eram 7 sem o reabastecimento semestral do trem da alegria.

• Nossa, tudo isso de tempo, um bunker geralmente é ocupado por 60 pessoas, e os recursos em média não duram dois anos sem serem abastecidos. - Lisa apagou a bituca de cigarro no para-peito da sala. - Isso quer dizer que vocês conseguiram racionalizar por tanto tempo, onde foram parar os outros 57 integrantes?

• Ou dispersaram ou morreram, isso há 10 anos atrás.

• Sabe. - Ela puxou um outro cigarro e o levou a boca. - A equipe de expedição visa buscar recursos e materiais de estudos para tentar reverter  o cenário atual, e desde que o trem da alegria parou de abastecer os bunkers, era bem comum vermos esses lugares tomado por gente morta, ou pessoas que canibalizam umas às outras para sobreviverem, daí surgiu o grupo nômade conhecido como chacal, que levava à crença do corpo de cristo muito a sério- Ela expeliu a fumaça de cigarro pelo nariz, e levou a bituca a boca. - você deve saber o porque os bunkers ficavam posicionados estrategicamente aos trilhos dos trens, além de facilitar a logística de abastecimento, às linhas serviam de um caminho marcado para aqueles que não tinham condições de viverem nesses bunkers, de procurarem ajuda.

• Eu conheço este grupo, onde você quer chegar?

Lis apagou mais uma bituca de cigarro no parapeito, levou sua mão até o quadril, puxou um revólver e apontou na cabeça de Roger com uma agilidade assustadora.

• Eu detesto pessoas que abraçam os instintos e canibalizam uns aos outros quando temos uma estrutura que ajuda os necessitados a procurarem um lar, refeição e conforto.

• Você acha que somos integrantes do chacais ou que canibalizar nossos companheiros? - Perguntou Roger com um olhar frio. - Vai em frente, dá meia volta e retorne ao nosso bunker, você não vai encontrar nenhum indício que fizemos isso.

• Dar meia volta seria arriscado demais, iremos levar você ao nosso bunker, mas vocês permanecerão sob encarceramento até que vocês provem ao contrário.

• Estou de acordo.

 Ela empurrou o cano do revólver na cabeça de Roger, que pendeu para trás.

• Não me leve a mal, você parece ser gente fina, mas o seguro morreu de velho.

• Está tudo bem Lis, eu compreendo, agora pode abaixar o revólver que hoje foi um dia de muitas emoções.