Diana sentia o peito arder de ansiedade.
Dois meses haviam se passado desde que a bruxa havia começado a procurar pelos manuscritos. Ao mesmo tempo que sua reputação era suficiente para intimidar a grande população e manter boatos entre pessoas simples, sua magia não era forte o bastante para ser reconhecida pela alta hierarquia.
Até agora.
Descendo uma escadaria de pedra, usava um encantamento de luz em uma das mãos para iluminar o caminho, enquanto apoiava a outra na parede, tendo cuidado para não perder o equilíbrio em um lugar tão escuro e úmido.
A Caverna de Vitalis era um dos maiores segredos das Terras Mágicas. Diana havia usado todos os seus poderes e recursos para achar o lugar, se informado com quem podia, sacrificado muita coisa no processo. Mesmo com peso na consciência, julgava ter feito o necessário. Afinal, dentro da caverna estavam os pergaminhos de Merlin. A maioria das pessoas pouco sabia sobre eles, mas não era o seu caso.
Sua motivação, porém, não vinha de uma ganância simplista por poder, mas de uma vontade avassaladora de se tornar mais forte, o suficiente para começar a mudar o sistema. Para tornar as coisas mais justas.
Para ser reconhecida por ela.
Balançou a cabeça, espantando os pensamentos. Precisava de foco naquele momento. Pensar sobre o futuro só depois de cumpri-lo.
Depois de buscar informações e passar por algumas fontes, a jovem bruxa havia conseguido um livro bastante informativo, que falava sobre a história da família Vitalis, a única especialista em encantamentos espirituais no país. Foi assim que ficou sabendo sobre Áki Vitalis, um dos magos fundadores das Terras Mágicas, parte do primeiro Conselho Mágico.
O livro, entretanto, não mencionava o lado macabro da história do feiticeiro.
Os degraus agora haviam terminado e a jovem seguia em frente num amplo e ainda escuro corredor. Seus olhos dançavam de um lado para o outro, esperando por qualquer sinal de perigo que pudesse aparecer. A caverna era traiçoeira, diziam as lendas, assim como o primeiro Vitalis.
Pesquisando a história mais a fundo, Diana descobrira que, na verdade, Áki havia traído e assassinado Merlin, em uma tentativa de absorver seu poder para tornar-se imortal. Lugar do terrível acontecimento, a gruta levava seu nome como um lembrete: podia parecer tranquila e confiável, mas mostraria suas garras assim que o visitante baixasse a guarda.
Apesar da ausência desses detalhes, o livro trazia uma outra informação que havia chamado a atenção da bruxa. Em uma das seções sobre o desenvolvimento da magia espiritual, havia a menção a “conglomerados mágicos”. Diana se lembrava de ter estudado sobre eles nos tempos da escola de magia, pergaminhos nos quais os antigos feiticeiros depositavam uma parte concentrada de seu poder, de forma que ele pudesse ser armazenado. Segundo o livro, a ideia vinha do desejo dos magos de prolongarem a própria vida, e eles acreditavam que, fazendo isso, poderiam usá-los para retornar após a morte.
O que a havia movido até ali era a lenda de que o próprio Merlin tinha escondido pergaminhos com seu poder no local de sua morte, no fundo da caverna.
Justamente por isso, precisava de atenção redobrada. Não havia muitos relatos de pessoas que estiveram na caverna, tampouco de sobreviventes, e algo tão valioso quanto o conglomerado mágico do maior feiticeiro que já existira com certeza estaria fortemente protegido.
Depois de mais alguns minutos andando, deparou-se com uma imensa parede de pedra lisa. Encantamentos rúnicos antigos apareciam entalhados e, diferentemente da maioria dos outros magos de sua idade, Diana sabia lê-los perfeitamente.
— “A magia é o fluido cósmico mais poderoso do universo. Perde apenas, talvez, para o amor.” — declarou, concentrando poder enquanto fitava as letras. Diana se perguntou por que uma frase tão brega estava entalhada em pedra tão antiga, ainda mais em velhos rúnicos. Estava quase questionando se era o lugar certo, quando os escritos brilharam e a parede começou a se mover.
A teoria dela era que talvez fosse possível absorver a magia armazenada do conglomerado. Sendo possível, seria a oportunidade de ouro para que se tornasse ainda mais poderosa.
A pedra se arrastou para o lado e o primeiro espaço iluminado da caverna surgiu.
Uma imensa câmara com tochas suspensas nos cantos apareceu diante de seus olhos. Um caminho estreito levava até o centro, onde havia pergaminhos enrolados sobre um pequeno pedestal de pedra. Abaixo, um fosso de água cristalina refletia a luz do fogo. Acima, somente escuridão.
Avistar os manuscritos que tanto procurava fez a ansiedade voltar com toda força. Respirou fundo, desativou a luz e revisou os encantamentos mentalmente enquanto adentrava no lugar. Com magia, sabia como respirar debaixo d’água, se mover com agilidade, levitar, formar fortes escudos... tinha até mesmo preparado um círculo de invocação na entrada da caverna. Tinha aprendido havia não muito tempo um truque para se teletransportar em pequenas distâncias, usando uma espécie de “auto invocação”. Era só para último caso, mas usaria se precisasse fugir rapidamente dali.
Porém, se aproximava cada vez mais do pedestal e nenhum sinal de perigo surgia. “Não pode ser tão fácil assim”, pensou, descrente.
Por fim, ficou diante dos pergaminhos. Estavam enrolados, envelhecidos, mas perfeitamente selados por um laço adornado com a letra “M”. Diana já havia visto aquele símbolo diversas vezes, mas apenas reproduções. E ali, diante dela, parecia... perfeito. Original. Sentiu poder emanar dos papéis, ressoando a expectativa que crescia em seu peito naquele momento.
Antes de fazer qualquer coisa, revisou suas magias mais uma vez. Era a Caverna de Vitalis, afinal, só parecia confiável. Tinha quase certeza de que alguma armadilha seria acionada assim que pusesse as mãos nos pergaminhos, e estava preparada. Não colocaria tudo a perder logo tão perto.
Quando enfim tocou nos papéis, um calafrio percorreu seu corpo e sentiu um leve choque passar por seus braços. Então, os manuscritos começaram a brilhar e as chamas das tochas se tornaram azuis.
Tudo que veio a seguir se tornou um borrão na memória da bruxa.
Ficou gravada apenas uma sensação de queimação em um dos lados do rosto, como se ele estivesse em chamas. Também a lembrança de ter caído de joelhos, e o lugar começar a tremer, ou talvez tivesse sido a própria imaginação florindo pelo pânico. Então, uma longa e forte luz azulada, uma dor aguda na mão direita e, enfim, a escuridão.
Quando acordou, a bruxa olhou em volta e percebeu que estava novamente na entrada da caverna, em cima do círculo que havia desenhado mais cedo. Havia usado seu último recurso?
Não lembrava de ter feito a invocação, mas decidiu que pensaria sobre isso mais tarde. Os acontecimentos voltaram aos poucos, e ela se levantou, afobada.
Onde estavam os pergaminhos? Tinha certeza de que os tivera em mãos, porém não estavam ali. Olhou dentro de seu manto, no círculo, no chão, mas nada encontrou. Não estavam com ela.
Com uma última esperança, decidiu checar seu nível de magia. Fechou os olhos, sentindo-a fluir pelo corpo como havia feito tantas vezes desde que era mais nova.
Porém, nada. Nenhuma mudança. Estava exatamente da mesma forma que antes de entrar na caverna.
Suspirou, exausta. O que havia acontecido? Fora tudo uma grande perda de tempo?
Decidiu que voltaria no dia seguinte, mais preparada. Naquele momento, só queria descansar e tentar se lembrar do que a havia afetado tanto.
Retornou à hospedaria que havia deixado paga por duas noites no dia anterior. Havia uma taverna no primeiro andar e, por ser fim de semana, era possível ouvir o som de música e bêbados cantando, mesmo antes de entrar. Sem paciência para festividades, a bruxa apenas abriu a porta e se dirigiu rapidamente às escadas que levariam ao seu quarto. Sentiu olhares repousarem sobre ela e ouviu a música silenciando aos poucos.
Estava acostumada a chamar atenção por seu manto e sua reputação, mas ainda assim era estranho bêbados interromperem a cantoria apenas para encará-la. Olhou para trás, irritada, e sibilou com a aura mais ameaçadora que conseguiu manifestar.
— Não ousem dirigir olhares a mim, ou vão lamentar por suas almas ainda não estarem no inferno. — Diana recebeu expressões ainda mais assustadas do que esperava como resposta. Sem querer pensar muito no assunto, apenas voltou seu olhar e subiu a escadaria. Somente depois de passar pelo corredor e entrar no quarto que voltou a ouvir a música, apesar das notas e vozes soarem muito mais relutantes agora.
Qual era o problema, afinal? Sabia que algumas pessoas a temiam por causa da imagem que criara, mas ainda estavam nas Terras Mágicas. Não havia motivos para tanto medo de uma bruxa, havia?
Jogou-se na cama, fechando os olhos. Não queria pensar muito naquele momento, o dia havia sido cheio e o seguinte provavelmente também seria. Foi questão de poucos minutos até que o cansaço tomasse conta de seu corpo e, enfim, relaxasse com o sono.
O descanso, porém, nunca veio.
Diana abriu os olhos e se viu no quarto da hospedaria, de pé. Não somente de pé, mas levitando no centro do cômodo. Ela via a si mesma, deitada na cama com os olhos fechados, como se dormisse. Já tinha ouvido falar de projeção astral, mas era a primeira vez que lhe ocorria algo do tipo. Porém, o que mais chamou sua atenção não foi isso, mas sim o próprio rosto que a encarava agora.
Enquanto um dos lados estava completamente normal, o outro havia sido alterado. Nele, seu cabelo castanho clareava até se tornar totalmente branco, assim como uma das sobrancelhas. Havia também uma pequena cicatriz deslizando por sua bochecha, porém a marca era azulada, como se seu sangue também o fosse, o que a tornava ainda mais chamativa.
O que havia acontecido com seu rosto?
Então, seu corpo abriu os olhos, dando-lhe um susto. Lembrava dos elogios que recebia sobre eles quando criança. Como os da mãe, eram de tom verde-água. Agora, só o olho esquerdo era digno do comentário. O direito estava completamente negro e apagado, sem que houvesse qualquer divisão entre íris e pupila.
O corpo de Diana se levantou e começou a encará-la. “Espero que isso seja só um sonho estranho”, pensou, mas sua intuição lhe dizia o contrário. Não só isso, tinha a impressão de que a pessoa que estava diante dela, mesmo que em seu corpo, era outra. Alguém que não reconhecia. Como se lendo seus pensamentos, a figura começou a falar.
— Muito prazer, feiticeira. A partir de hoje, partilharemos o mesmo corpo. Espero que não se incomode.
Comments (3)
See all