— Você estava chorando? — questionou, se inclinando para a frente, usando um tom muito mais gentil do que esperava.
Em todos os meses que cuidara de Aleksey, em todos os momentos, Ivan nunca, nunca o vira chorando, nem uma vez sequer, nem quando ele estava com tanta dor e febre que mal registrava o que acontecia ao redor. Imaginar que suas palavras causaram aquela reação em Aleksey fez com que a culpa voltasse toda a força, e ele sentiu nojo de si mesmo. Como ele ousava aparecer ali, daquele jeito, depois do que falara? Havia diminuído tudo o que Aleksey passara durante a vida inteira e dito que era besteira.
— Não importa — disse Aleksey, apoiando uma mão na coxa e passando a outra no rosto como reflexo. Desceu os dedos pela barba bem aparada, coçando o queixo e umedeceu os lábios suavemente antes de voltar a falar: — Eu pedi para você entrar porque percebi que conversei com Morena a respeito da minha decisão, mas não com você. É justíssimo que você ache que é bobagem. Eu só queria explicar…
— Não precisa, Aleksey — Ivan o interrompeu, levantando a mão. — Eu sei que você fez o que achou melhor e não acho que foi a troco de nada. Bebi um pouco e estava preocupado com outras coisas e acabei falando o que eu não devia. Morena já me explicou e eu entendi. — Ele passou uma mão pelo cabelo, sentindo a frustração voltar à tona. — Você não deve nada para mim e basta que você tenha falado com ela. Você já era amigo dela bem antes de ser meu amigo e nunca teríamos nem nos falado se não fosse por Morena. Eu sei que ela é mais importante para você do que eu sou.
Aleksey o encarou e franziu a testa, fazendo um biquinho de concentração que faria Ivan sorrir se não estivesse tão preocupado em ter falado algo errado mais uma vez. Repetiu o gesto frustrado pelo cabelo, o coração subitamente acelerado, como se antecipasse algo importante que estava prestes a acontecer.
— Eu acho que nunca tinha reparado até agora que talvez eu fosse importante para você — Aleksey falou devagar, desviando o olhar de Ivan. — Que talvez você fosse meu amigo. Eu só achei que você não se importaria o suficiente e…
— Talvez? — Ivan perguntou com descrença, interrompendo-o, em um tom ofendido. Piscou algumas vezes, observando o rubor subir pelo pescoço de Aleksey e ele esconder o rosto nas mãos. — Aleksey, eu carreguei você para dormir na cama comigo e com a minha esposa, mais de uma vez. A gente cuidou de você enquanto estava se recuperando por mais de um ano. Eu te ajudei com tudo o que podia para passar naquela maldita prova e fui consolar você assim que acabou, e mesmo depois disso tudo, você não tinha certeza?
— Eu só achei que… — Aleksey começou a falar com a voz abafada pelas mãos, as orelhas ficando avermelhadas. — Sei lá, eu fosse um projeto de caridade. Que você estivesse fazendo isso só porque ia fazer Morena feliz. Eu não sei. Eu nunca pensei…
Ivan se recostou na poltrona. Não deveria gostar tanto de ver Aleksey envergonhado daquela forma, nem estar ligeiramente entretido com a completa falta de percepção de Aleksey. Também não deveria estar sentindo tanta raiva, e precisou respirar fundo para não agir por impulso e vencer a distância entre eles, tomando os lábios de Aleksey para si enquanto afundava os dedos no cabelo dele, beijando-o e mordendo-o e tocando-o até não deixar dúvida alguma de como Ivan se sentia. Respirou fundo e fechou a mão em punho, tentando organizar uma resposta coerente. Parecia surreal que fosse tão mal compreendido, que todos aqueles anos e todos aqueles gestos levaram Aleksey a acreditar que todo o relacionamento dos dois só existisse em função de Morena.
— Eu vou ser completamente sincero com você — disse Ivan por fim depois que o silêncio se prolongara e nenhum dos dois falara sequer uma palavra. Ele se inclinou para frente, na direção de Aleksey. — Você promete ser sincero comigo? Só durante essa conversa, não peço mais do que isso. A gente pode sair daqui e você pode fazer o que quiser da sua vida, pode nunca mais olhar na minha cara ou na de Morena. — Ele se levantou e se aproximou da poltrona de Aleksey, ajoelhando-se aos pés dele e procurando as mãos de Aleksey, puxando-as com gentileza até revelar o rosto do outro homem. — Eu só preciso…
— Conversar — Aleksey falou, com certo humor. — Exatamente como eu previ.
Ivan encostou a testa no braço da poltrona com uma risada, respirando fundo até encher os pulmões, considerando se valia a pena continuar. Entre ele e Aleksey, não havia nada a perder. Quando teriam uma oportunidade daquelas para uma conversa novamente, na Corte? Poderia levar meses, poderia levar anos. Nada que ele dissesse pioraria a situação. Por outro lado, Morena iria matá-lo se soubesse que ele estava ali, metendo-se na vida de Aleksey, se descobrisse tudo o que Ivan dissera e estava prestes a dizer. Morena dissera várias e várias vezes que os dois deveriam respeitá-lo e dar espaço para ele, e aprender a se virar com os sentimentos que tinham sozinhos, sem envolver Aleksey. E todas as vezes, ela entoava o que Aleksey dissera na última vez que conversaram: Morena tinha Ivan, Ivan tinha Morena, eles iriam ficar bem.
Só que não era suficiente.
— Você nunca levou a sério nada do que eu fiz ou disse. Nenhuma vez, em nenhum momento — explicou Ivan, sem levantar o rosto. — Mas acho que o auge foi a última vez que nos falamos. Você não deve nem se lembrar, porque aconteceu tanta coisa mais importante naquele dia, naquela prova maldita.
— Eu me lembro — murmurou Aleksey. — Você foi atrás de mim e ofereceu seu casaco para eu não morrer de frio.
— É só isso que você lembra? — Ivan levantou o olhar, com um meio sorriso. — Eu estava tão preocupado com você depois que Morena venceu, tão em pânico que seu tio iria se aproveitar da sua situação, que a única coisa que pensava era em ir atrás de você. E quando eu te encontrei, tive a certeza de que não suportaria qualquer coisa ruim que acontecesse com você, e então…
Ivan parou por um instante, engolindo em seco, e Aleksey mordeu o lábio inferior com uma expressão indecifrável, um pequeno vinco se formando entre as sobrancelhas.
— Você recusou absolutamente tudo que eu ofereci, Aleksey — disse Ivan, em um sussurro, tentando manter a voz uniforme. — Você se levantou e foi embora. Você sequer considerou que eu pudesse estar falando sério. Não pensou que talvez eu estivesse ensaiando te chamar de Lyosha por anos, de imitar a facilidade com a qual Morena se referia a você, com medo do que aconteceria se eu fizesse isso. E eu estava certo em ter medo, não estava? Porque olha só o desastre que eu desencadeei só por ousar te chamar por um apelido.
— Eu… — Aleksey começou, mas logo de calou novamente, incapaz de articular qualquer resposta.
Ivan tomou aquilo como indício para continuar, pegando mais fôlego.
— Agora tudo fez sentido, porque entendi que você não me vê como nada além de uma extensão da minha esposa.
Naquele instante, ele percebeu que ainda estava segurando a mão de Aleksey e a soltou, aturdido. Ivan se calou de súbito, surpreso com as próprias palavras.
E com o pensamento que seguiu: exatamente como todas as outras pessoas.
— Isso não é verdade! — Aleksey disse, impedindo-o de continuar naquele caminho perigoso de pensamento. — Eu só… nunca achei que eu… não sei, você é tão… — Ele gesticulou, vago, para o nada. — E eu sou tão…
— Ah, então o problema é que você não acha que merece minha amizade — Ivan disse com suavidade. A mão dele voltou a cobrir a de Aleksey na poltrona, como se fosse um vácuo que estivesse desesperadamente tentando aliviar. Aleksey desviou o olhar. — Minha mãe me disse que você não sabia reconhecer quando era amado e eu achei que ela estava exagerando, mas aparentemente ela não chegou nem na superfície.
— Sua mãe disse o quê?
— Não vou dizer que não entendo, porque entendo — continuou Ivan, ignorando completamente a pergunta de Aleksey. — Você lembra do pânico que eu tive antes do casamento, mas você não viu nem um terço dele. Como é que Morena iria casar comigo, de todas as pessoas do universo? Eu estava certo de que ela ia descobrir algum problema, alguma falha grave em mim, e então ver que não sou a pessoa que ela achava que eu era. Que ia finalmente ver a verdade e perceber que eu não a merecia e ela era tão… — Ele fez um gesto idêntico ao de Aleksey. — Enquanto eu era tão…
— Ivan, isso nem faz sentido, vocês são perfeitos juntos — Aleksey o interrompeu, sem tirar a mão que estava embaixo da de Ivan. — Ela nunca acharia nada disso porque nada disso é verdade.
— Então me diga como é que não é verdade para mim, mas é verdade para você?
— Eu não vou me casar com você — disse Aleksey e Ivan levantou uma sobrancelha.
— E isso melhora seu argumento como exatamente…? — Ele deu um meio sorriso. — Considerando que, até onde me consta, a exigência é um pouco menor, já que não envolve casamento.
— E qual o seu argumento, Ivan?
Ligeiramente contrariado, Aleksey cruzou os braços. Ivan sentiu novamente aquele vazio voltar, o calor deixar o corpo como uma frente fria.
— Morena me disse uma vez, um pouco antes do casamento, e eu me agarro a isso todas as vezes que começo a ficar inseguro — revelou Ivan. — O que ela me disse foi que não sou eu que decido o que as outras pessoas sentem por mim. Não é direito meu querer determinar o que ela merece, porque quem escolhe é ela. Aleksey, não é direito seu achar que não merece o que eu tenho para te oferecer, porque eu acho que você merece. Se você não quer, a história é outra.
Aleksey se levantou da poltrona. Por um instante, Ivan acreditou que ele simplesmente se afastaria de vez, mas, em vez disso, ele se acomodou no chão na frente de Ivan, cruzando as pernas, como tinham feito inúmeras vezes enquanto estudavam juntos, quando conversavam por horas a fio, sem nem perceber que o tempo estava passando. Era tão ridiculamente familiar e lembrava Ivan da saudade que sentia daqueles momentos que provavelmente nunca voltariam agora que haviam se formado. Nada nunca seria o mesmo.
Ter Aleksey tão próximo foi tanto uma benção quanto uma maldição. Ivan era um homem de gostos simples e a visão das coxas grossas de Aleksey flexionadas sempre adicionava muito ao cenário geral do cômodo, e era melhor ainda quando estavam ressaltadas pela calça curta e apertada. Seria melhor se Morena estivesse com eles e o assunto fosse outro, mas não era possível ter tudo.
— Não é simples assim e você sabe disso — falou Aleksey num tom defensivo, com os ombros encurvados, como se carregasse um peso nas costas. — O que eu quero e o que eu preciso fazer são coisas completamente diferentes.
— Mas não precisa ser — disse Ivan e, incapaz de se conter, esticou uma mão para arrumar uma mecha do cabelo longo de Aleksey atrás da orelha, cruzando aquela distância ínfima entre os dois. — Pelo menos dessa vez, acredite em mim quando digo que você não precisa se isolar de todo mundo e sofrer sozinho. Não é assim que você protege as pessoas, muito menos é dessa maneira que você vai conseguir vencer seu tio. Eu e Morena podemos não ser muita coisa agora, mas há ainda mais gente para te apoiar, como Veronika e Milana. Eu tenho certeza que elas te ajudariam. Laszlo também. E se não for a gente, tenho certeza que existem dezenas de pessoas com as quais você poderia contar, você só não é capaz de enxergar isso agora. Você não pode viver sozinho, nem brigar essa briga só.
— Você sabia que Yakov faliu o oblast? — disse Aleksey, num tom amargo, desfazendo o trabalho de Ivan ao passar os dedos no cabelo. A mecha voltou para o meio da testa, exatamente como antes. — Ele só gastou todo o dinheiro. Não posso provar, é claro, mas o conde Kuzkin, que estava cuidando da administração, é amigo íntimo do Imperador e entregou a região nas minhas mãos devendo cada muda de arroz e cada cabeça de ovelha.
— Não acredito. — Ivan se inclinou para trás, apoiado nos braços, curioso para ver por onde aquele preâmbulo iria passar, deleitando-se com aqueles poucos momentos de confiança de Aleksey.
— Começou depois do período que minha mãe foi internada. Quem é que consegue fazer esse estrago em menos de quatro anos!? Ela deixou tudo perfeito, as finanças todas organizadinhas, tudo encaminhado para só seguir o que ela fazia e me entregar tudo quando chegasse a hora certa — continuou Aleksey, parecendo aliviado em poder conversar sobre o assunto. — Se ela soubesse disso, acho que morreria de desgosto na hora.
— Como ela está? — Ivan aproveitou a deixa para perguntar, genuinamente preocupado. Ele não convivera muito com Aleksandra Yulievna Barabash, não como Aleksey convivera com a mãe de Ivan, mas das vezes que se viram, percebeu que era uma mulher engraçada e espirituosa, não muito diferente do filho.
Ela também era uma das únicas barreiras que protegiam Aleksey do tio e, quando os sinais das consequências do uso excessivo de magia começaram a aparecer, ela pediu para que Aleksey a enviasse para uma das casas de repouso para Alquimistas espalhadas por Argon.
— Ah, daquele mesmo jeito — suspirou Aleksey, dando de ombros. — Tem dias bons e ruins. Nas últimas visitas ela tem me confundido com o meu avô e me chama de pai, o que é um pouquinho perturbador, mas ela está estável, num geral.
— Que bom. Morena vai gostar de saber. Ela está em…
— Volkov. Ela foi transferida para Volkov agora. Arrumou briga com metade das pessoas em Vodorod, dividiu a casa em áreas de influência, semeou discórdia e confusão e acabou sendo expulsa.
Ivan gargalhou e Aleksey sorriu. Depois umedeceu os lábios, desviando o olhar pela centésima vez desde o início da conversa. Era o sinal de que havia se aquecido o suficiente contando desgraças em um tom de piada para começar a falar o que estava sentindo de verdade.
— Eu te levo a sério — Aleksey falou por fim, baixinho e cuidadoso, como se as palavras que estava dizendo fossem surreais. — Talvez até demais. Talvez esse seja um dos problemas.
— Eu quero muito te proibir de falar "talvez" nesse momento — disse Ivan, se inclinando na direção dele, e Aleksey riu, suas bochechas corando de leve.
— Sem "talvez", então. Mas acho que você está certo.
[Continua na Parte 3]
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