Morena ficou aliviada quando entrou na cabana e percebeu que Ivan não estava lá. Queria ficar sozinha pelo menos alguns minutos, com tempo para organizar os seus pensamentos e sem precisar falar com ninguém sobre o dia que tivera. Ivan sempre a respeitava quando precisava de espaço, mas desde que se formaram, ela sempre se sentia culpada por não conseguir ceder a mesma atenção de antes. As obrigações na Corte ocupavam grande parte dos seus dias e Ivan sempre parecia tão deslocado, tão sem jeito com aquela vida, que quando sobrava tempo, tudo que podia fazer era dedicá-lo ao marido. Querer algum tempo para si sempre parecia uma traição ao compromisso que ele fizera para estar ao lado dela.
Preparou um banho e se afundou na banheira, suspirando pesadamente, sentindo cada centímetro das pernas e dos seios doloridos. Ir à caçada fora um erro do qual se arrependera no momento em que subiram nos cavalos e adentraram a mata, a cólica e a dor nas costas que sentia quase todo mês se misturando com a cabeça latejante, fruto de uma noite mal dormida.
Se não fossem os anéis que Ivan lhe dera, tinha certeza que não teria aguentado vinte minutos em cima de um cavalo. Ao menos usufruía de uma liberdade vinda do desprezo, podendo ficar ao final de todo o cortejo, depois de serviçais e cachorros e carroças, seguindo em seu próprio ritmo. A égua que forneceram também era dócil e tudo parecia tolerável a princípio. Não demorou muito para o Príncipe Poroshenko se juntar a ela ao fim do cortejo, informando em um tom um pouco contrariado:
— Eles não estão encontrando nada.
— Com essa papagaiada toda, é claro que não — comentou Morena. — Mas a culpa, obviamente, será nossa.
— Já é — disse Poroshenko, com os ombros encurvados. — A Baronesa Tsereteli fez questão de me mandar aqui para trás porque disse que minha má vibração espanta os animais.
— Talvez seja a cara feia dela que espante todo mundo — Morena retrucou, fazendo o homem gargalhar. — Ou então os animais pressentiram que vão virar troféus bregas na sala desse povo e saíram correndo desesperados para evitar tal triste destino.
Poroshenko riu mais uma vez e olhou para ela com um sorriso tão largo que acabava por estreitar seus olhos e marcar as pequenas rugas de expressão que possuía. Morena engoliu em seco, sabendo exatamente qual assunto ele traria à tona.
— Não conversamos muito, não é? — apontou ele. — Mesmo na viagem até aqui você dormiu durante quase todo o percurso. Aleksey fala muito de você, estava curioso em te conhecer.
— Bom, muito prazer. — Morena forçou um sorriso, tentando não deixar transparecer a forma como seu coração acelerara com a mera insinuação de que Aleksey ainda falava dela. — Ivan igualmente elogiou as conversas que tiveram. Também estava curiosa para te conhecer melhor.
Poroshenko se iluminou tanto com o comentário que Morena quase se sentiu envergonhada por mentir assim, descaradamente. Quase.
— Achei que ele tinha me achado chato, a maioria das pessoas fica entediada rápido quando eu entro… nos assuntos que eu gosto.
— Ivan ficaria entediado se você falasse de coisas banais, então não se preocupe. Ele pode ficar horas ouvindo alguém falar sobre os próprios interesses pessoais, por mais diferente que o tema seja.
Poroshenko sorriu novamente, mas com uma postura que ainda parecia pedir desculpas por ser estranho.
Ela conseguia ver exatamente por que Aleksey se sentira atraído por Vladislav Olgaevich. O príncipe de Khostovinist’ era um homem agradável, de conversa fácil e riso bonito, extremamente atencioso. Sempre tratava todo mundo com quem conversava como se aquela conversa fosse crucial, prestando atenção de forma genuína. Além disso, a posição relativamente poderosa que possuía na Corte também ajudava, assumindo um papel semelhante ao de Morena.
Juntos, Mièdz e Khostovinist’ reuniam a maior parte das indústrias têxteis de Argon, bem como as que produziam outros utensílios que facilitavam o dia a dia, de itens de couro a cerâmica boa e resistente. Junto a Seleni — o oblast de Aleksey, que fornecia a maior parte dos grãos e vegetais — controlavam grande parte das riquezas de Argon.
Era uma posição que supostamente traria prestígio, mas só gerava ressentimento, principalmente porque a Corte entendia que as lealdades de seus soberanos não estavam com a nobreza, e sim com as Alquimistas. Não era uma suposição tão distante da realidade — a lealdade de Morena era sempre, acima de tudo, ao seu povo e se grande parte deles se tornavam Alquimistas, não havia nada que ela pudesse fazer sobre o assunto.
Porém, viviam em um equilíbrio tênue, os três e o resto da Corte. Uma ofensa direta poderia ter consequências drásticas na política de Argon e daria as desculpas que precisariam para agirem de forma mais firme contra o Império, só que tratá-los bem parecia ser um esforço que a Corte não estava disposta a fazer. Havia apenas uma tolerância, fria e distante, com pequenas ações que todos sabiam que eram desrespeito e ofensa, mas que fingiam ser um equívoco ou um exagero quando confrontados em voz alta.
Para ela, parecia natural que Aleksey tivesse saído da amizade entre os dois — e da aliança inegável entre seus oblasts que a acompanhava — para alguém que fosse o acolher e, de quebra, ainda o resguardasse politicamente.
Morena e Poroshenko seguiram juntos, jogando conversa fora, até a hora do almoço, quando o grupo parou em uma clareira. Os dois ficaram mais para dentro da floresta, ainda afastados, em um pedaço com árvores carregadas de frutas dos mais diversos tipos. O almoço era uma carne que fora trazida e estava sendo grelhada na hora, o sangue ainda escorrendo enquanto assava, então Morena optou por comer uma seleção das frutas que encontrara, cortando mangas e goiabas com um canivete que levara só pela insistência de Ivan, que, ao final das contas, estava certo.
— Você só vai comer isso? — Laszlo questionou quando se juntou a ela novamente, carregando um prato de metal com comida empilhada. — Eu achei que os daliashin podiam comer carne.
— A gente não pode comer sangue — explicou ela e ele emitiu um som de compreensão. — A parte teológica é longa, mas na prática e na minha experiência, a gente sempre passa mal quando come, pelo menos nas primeiras dezenas de vezes. Eu acho que depois o corpo se acostuma. Mas nunca conheci alguém que tenha testado a teoria.
— Eu sinto muito — disse Poroshenko e Morena se empertigou. Aquilo raramente antecedia um comentário que não a ofendesse, porém o que prosseguiu foi: — É uma merda que eles esqueçam disso e você fique sem uma refeição de verdade. Quando você for para uma festa na minha casa, isso não vai acontecer.
Morena sorriu e agradeceu. Além de tudo, ele era gentil. Sentiu um aperto no peito ao pensar em como Aleksey precisava daquilo, de alguém que fosse um porto seguro na tempestade que era sua vida — e Poroshenko era o candidato perfeito. Ela podia dar uma ajudinha, não podia? Não era interferir muito. Depois de comer uma manga particularmente gostosa, concluiu que não havia problema.
— Você quer levar um presente para Aleksey? — Ela perguntou e Poroshenko ergueu as sobrancelhas. — Ele vai amar se você levar algumas dessas frutas de presente. Eu acho que vi um pé de amora ali atrás e mais algumas mangas, que são a fruta favorita dele. Só que Aleksey é preguiçoso, então se você não cortar para ele, ele não vai comer.
— Mas é claro. — Poroshenko deu uma gargalhada, com um afeto claro na voz. Morena baixou o olhar para suas mãos, que seguravam o canivete, sentindo um bolo se formar na garganta. — Será que me arrumam uma cesta para ficar mais fácil? Vou lá perguntar. Muito obrigado pela sugestão.
— Disponha — disse ela, observando-o se afastar sem sequer terminar a comida do prato e suspirando assim que ele saiu de vista.
Em condições normais, ela teria dado um milhão de sugestões como aquela para Poroshenko, se deleitando em ver como ele deixava Aleksey feliz; já teria ido até a casa dele e comido um banquete enquanto tomavam vinho e fofocavam, já teria ajudado Aleksey a se vestir enquanto ele contava histórias escandalosas das aventuras dos dois. Em condições normais ela seria parte daquilo e estaria ao lado de Aleksey de alguma forma, adicionando Poroshenko com prazer à vida que compartilhavam.
O problema todo não era Aleksey estar com Poroshenko; era Aleksey não estar com ela.
— Ah, aí está você! — Uma voz feminina a tirou do devaneio. — Estive te procurando por todo canto! Como você é difícil de achar.
Morena franziu a testa e se virou, deparando-se com Nadezhda Lyubovevna, a Baronesa Medinikov, tão bonita quanto no dia em que se conheceram. Ela usava o cabelo preto em um coque alto e trajava uma calça de caça apertada com uma blusa branca que não tinham o direito de cair tão bem assim em ninguém. Os olhos dela brilharam com malícia quando ela arrumou a carabina que carregava no ombro, e Morena teve a impressão, por um instante, de que fora encurralada por um predador que sabia que encontrara uma presa fácil.
Sentiu o coração acelerar, subitamente nervosa, mas anos de prática a fizeram permanecer impassível, olhando-a de soslaio. Começou a virar os anéis de Ivan que estavam nos dedos de forma descuidada, e quase riu quando a mulher deu um passo para trás, para ficar a uma distância segura. Morena se surpreendia todas as vezes em como era fácil enganar quem não era Alquimista quanto às suas capacidades. Morena não era uma Transformação como Ivan, então nenhum anel carregava feitiços ofensivos — o perigo que ela representava era muito maior, muito mais devastador do que qualquer coisa que um anelzinho era capaz de causar. Porém, ali estava uma das mulheres mais poderosas politicamente de todo o Império, talvez do mundo, com medo de um anel que possuía um feitiço para aliviar dor de cólica. Se não estivesse tão preocupada tentando calcular o que a esposa de Yakov queria com ela, poderia até ter gargalhado.
— Ah, perdão se te fiz me procurar. Achei que fosse de conhecimento geral que estou neste passeio para apreciar a natureza, não para matá-la. — Morena forçou um meio sorriso. — Muito bom vê-la novamente, Baronesa Medinikov.
— Ah, não venha com formalidades. Você é amiga de meu estimado sobrinho, é praticamente família. — Nadezhda enunciou tudo sem titubear, como se fosse apenas um fato da vida, como se o marido dela não fosse responsável por todas as desgraças na vida de Aleksey. — Pode me chamar de Nadya.
Ela se aproximou de Morena com cuidado, a tensão nos ombros e a forma cuidadosa com que dava seus passos traindo um nervosismo que disfarçava bem na fala. Morena cruzou os braços, sentindo uma satisfação imensa em perceber que Nadya a reconhecia como uma igual, uma predadora igualmente perigosa, e não a presa. Bom. Era exatamente o que Morena queria.
— Mal tivemos tempo para conversar ontem — continuou Nadya, no mesmo tom amigável. — Mas para a minha sorte, você está aqui sozinha e não preciso arrumar uma distração para tirar o seu marido de perto e podermos conversar de mulher para mulher.
— Bom, não faz muita diferença porque qualquer coisa que você me disser, ele vai ficar sabendo — Morena retrucou e Nadya sorriu.
— Ah, fique à vontade para contar tudo para ele. Eu não me importo nem um pouco. — Ela deu de ombros, ainda tranquila. — Mas você sabe como homens são, tão passionais e impacientes. Eu acho que você e eu vamos chegar a um entendimento, sem precisar das emoções desnecessárias que um homem pode trazer — explicou Nadya e Morena levantou as sobrancelhas, sem querer responder que era verdade que se Ivan estivesse ali já a teria expulsado. — Vamos dar uma volta e eu explico. Vou até deixar a carabina aqui, para que você confie mais em mim.
Morena a seguiu com o olhar enquanto Nadya apoiava a arma em uma árvore próxima ao assento de Poroshenko, mostrando que ela estava sem munição. Era um gesto de boa vontade, uma sinalização de que o que acontecera entre Aleksey e Yakov — o pretenso “acidente” que as duas sabiam que não fora nada acidental — não se repetiria ali. Morena ponderou por um instante antes de decidir que conversar poderia trazer algumas informações sobre aquela mulher que ela conhecia tão pouco.
Nadya estendeu um braço para Morena, que o aceitou, e as duas caminharam em silêncio por alguns metros. O perfume de Nadya estava ainda mais intenso, atordoante, a mistura doce, muito parecido com o do bosque em que estavam, com todas as suas flores, frutas e animaizinhos em decomposição. Depois de um tempo, Morena precisou se segurar muito para não olhar para Nadya e exigir que a conversa seguisse.
— Eu vou ser direta, porque acho que, assim como eu, você não tem tempo para arrodeio. — Nadya finalmente quebrou o silêncio, mantendo o passo na mesma velocidade. — Eu nasci para ser uma Princesa.
Aquilo fez Morena gargalhar.
— Eu achei que quem nascia para ser Princesa era quem nascia herdeira de uma das famílias responsáveis pelos oblasts, não a segunda filha da terceira filha de uma Condessa — respondeu Morena e Nadya abriu um sorriso que não alcançou os olhos.
— A graça de ser a segunda filha da terceira filha de uma Condessa é que eu posso me casar com quem eu quiser, meu amor — declarou ela. — E quando me casei com Yakov, essa foi a única condição que impus a ele: ele precisava me fazer Princesa. Eu poderia ter me casado com aquele bufão do Príncipe Sokolov e resolvido esse problema, mas Yakov me prometeu que não mediria esforços para cumprir sua palavra.
Morena encarou a mulher, franzindo a testa. Nadya continuou, ignorando a reação, gesticulando com a mão que estava livre enquanto explicava:
— É claro que se me casasse com Sokolov, eu não teria a liberdade de continuar ao lado de Carina, então Yakov era perfeito porque ele mesmo já possuía um arranjo próprio com Nikolai.
— Nikolai, o Imperador Bogdanov? — perguntou Morena, confusa, e a outra mulher pareceu surpresa, como se não houvesse um Nikolai por esquina em Argon.
— Nikolai, o primo de Yakov — retrucou Nadya e Morena arregalou os olhos.
[Continua na Parte 2]
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