Era uma noite fria e seca, as nuvens de fumaça só eram percebidas pelo contorno alaranjado que a luz das chamas pintava. Se não por isso, seria fácil até demais de confundir as faíscas ardentes no ar por estrelas.
As copas das árvores ao redor se agitavam como em um dia de temporal, exceto por uma, que agitou por uma sequência de pancadas leves, seguidas de um baque achatado no chão.
— Agh! Chama isso de atalho?! — Lídia reclamou, se levantando e limpando a sujeira da roupa.
Caleb pousou firme logo ao lado, e lhe ajudou. Seguido por Caju.
Assim que o garoto se recuperou, Caleb correu em direção as luzes.
— Bem, por mais limitado que seja, é bem ligeiro, heh. — Lídia comentou, corrigindo a própria postura, com as mãos na cintura, olhando para a escuridão abismal da floresta de onde saíram e gritando:
— Vamos, Aranji! Se você viesse por cima, já estaria aqui conosco!
— Você consegue, Aranji! — Caju encorajou.
— Nem a pau! Eu não vou subir nessas árvores enormes e velhas! Os galhos devem estar todos apodrecidos!
Lá ao fundo, uma pequena luz vinha, correndo dentre arbustos e rochas, seguindo o contorno de um rio, buscando algum ponto para passar pisando em uma ponte de pedras.
— Vamos, vamos! — Lídia chamava. — Quero ver que tipo de Estray é!
Batia o pé, levemente o arrastando na direção qual vinham as faíscas.
Dois estalos barulhentos ecoam pelo ambiente do assentamento.
— Eita!
A caçadora se agacha, puxando Caju a fazer o mesmo.
Tomando proteção no morro onde chegaram, espiaram dentre a grama e os arbustos na direção dos ruídos.
Torreando sobre todo o ambiente, uma torre de barras de metal, reluzindo o brilho das chamas de casas de madeira as quais situavam-se em seu redor.
Algumas casas já haviam desabado, e agora eram lentamente mastigadas pelo fogo, outras, ainda perduravam.
Correndo ao redor da torre, estava uma criatura, de várias cabeças, braços, e outros apêndices escapando de seu corpo, coberta por um amálgama de tecidos envelopado em chamas, por mais distorcida que estava, ainda tinha dois rostos bem nítidos, normais senão pelos olhos brilhantes em puro branco.
— Um Estrei... Humano?
A agitação de Lídia aos poucos transmutava, passando a recuar.
— Não vai me dizer que ficou com medo? — Disse Caju, balançando o rosto. — É a mesma coisa que um Estrei comum... Eu acho.
— h-HÃAR!
O bicho solta um grito seco, como se tivesse a garganta entalada por uma dúzia de agulhas atravessadas. Ouvir aquele ruído fez Lídia e Caju terem a sensação de que haviam milhares de formigas trilhando por suas costelas.
Lídia esfregava as mãos ao longo dos braços para tentar se livrar da sensação.
— Hrrr! Que agonia! — Ela comentou. — Certo. Caju, cuide das casas e dos moradores.
— Tá.
— Certo.
Quicando o passo, Caju correu por dentre as casas do Assentamento, breves vistas do Stray visíveis dentre cada moradia que passavam.
Lídia permaneceu ao topo do morro, puxando seu arco e armando uma seta sobre este, caminhando ao redor do vilarejo para acompanhar os movimentos da criatura.
— ...! — Ela trava o olhar em algo.
Dentre as casas desabadas, havia uma ruína cujas tábuas de madeira não pareciam sequer terem sido tocadas por fogo, e no meio dos destroços, grandes estilhaços de acrílico, marcado por cortes e pancadas.
— Huh, é mais esperto do que pensei. — Comentou, e enfim prosseguiu.
— HEI! — Berrou uma voz de uma das casas próximas.
Caju imediatamente freou o passo e olhou ao redor, fitando uma alta construção de madeira ardente.
Em uma das janelas do edifício, a imagem de uma menina, a qual logo sumiu de vista, pois algo a mais se debatia no cômodo onde ela estava presa, um segundo Stray, parecido com o primeiro que Caju viu.
Avistar a criatura causou um espasmo na vermelhinha, e mudando o rumo, mirou para a porta da casa, e investindo em uma corrida contra esta.
PRAM-BAM!
A porta se rompia com o impacto, Caju quase perdendo o equilíbrio de ter se jogado de ombro contra a entrada.
O interior da casa estava completamente desgraçado pelas chamas, mas ainda havia acesso a escadaria, até a qual ela correu, subindo até o segundo andar, conseguindo avistar a menina no canto de um dos quartos, e o Stray a flutuar no centro do mesmo ambiente.
— Estou aqui! — Chamou Caju, e a garota se virou para ela. — Qual seu nome?
— É E- Ugh-... Elina. — Ela respondeu, pondo a mão no pescoço.
— Certo, Elina, quero que corra pra cá, e passe por mim. Eu lido com o estrei.
Caju puxou sua adaga, pronta para cortar.
— Espera, não! — Assim que avistou a adaga, estendeu sua mão e se levantou. — É o meu gato!
A presença das duas já era demais para a casa, bastou uma das pancadas do Stray contra uma parede, e o chão do segundo andar simplesmente cede, desabando todo de uma vez, e trazendo a garota, Caju, e até algumas paredes junto.
Tábuas caindo umas sobre as outras, mas apesar do colapso, o exterior da casa continuava em pé, e ambas recebendo apenas alguns arranhões.
— !- Topázio! — Exclamou a menina, ao avistar o Stray menor, preso embaixo de um pedaço de uma das paredes que desabou.
Caju a acompanhou, consumindo com suas mãos, alguns focos de chamas que haviam no caminho, até chegarem na criatura. E com a proximidade, foi possível perceber um ferimento na lateral do corpo do Stray.
Ela apenas se aproxima mais, e estende sua mão em direção ao ferimento. O bicho ofegava, tentando morder esta quando chegou perto.
— Shh, shhh. — A menina consegue segurar a boca da criatura, e acaricia seu pescoço, o que foi efetivo em o distrair.
Sua mão começa a flamejar, mas, mesmo ao tocar a ferida, as chamas não queimaram, apenas criaram faíscas.
A respiração do Stray alivia aos poucos, e de seu corpo, partículas de estática incolor começam a emanar, como se a criatura estivesse virando pó.
Ao fim, era para revelar sua verdadeira forma, de um mero gato doméstico e agora inconsciente, e a ferida antes exposta, uma cicatriz de longa data.
Firmando as mãos em uma das tábuas, tentou erguer a parede, e ao falhar, por desespero, tentou cortar a madeira com sua adaga, também sem sucesso.
Percebendo algo familiar, o ambiente ao redor de Caju perde o brilho e o ardor das chamas. Substituídos por bolhas e feixes de luz vindos do sol através da água, o peso de um rio se fazendo sobre seu corpo, a impedindo de se mover. E ao mesmo tempo, flutuava.
Uma dor aguda, como uma agulha grossa e fria, atravessa seu peito. Os braços formigando por um instante, e o corpo inteiro amortecendo logo depois. Fechando os olhos, a dor se esvai, e em seu lugar, uma sensação morna. Um brilho avermelhado se espalha, sua pele rachando por fissuras brilhantes como magma. Bolhas ferventes surgindo em seu redor, ofuscando sua visão.
Até enfim, retornar.
Caju firma ambas as mãos no cabo do punhal, e a lâmina deste começa a arder, e assim, conseguiu atravessar a madeira com esta, começando a cortá-la, mesmo que aos poucos.
Reconsiderando, ela começa a retirar a lâmina, porém, antes de conseguir, Elina também firma as mãos sobre as dela, e ambas forçam o fio da adaga, que finalmente recorta a madeira com rapidez, partindo a parede quase ao meio, e libertando a criatura.
Assim que o gato é acolhido nos braços de Elina, um estalo enfim anuncia, a casa a desabar.
Fincando a adaga em uma tábua, Caju puxa a menina para si, cobrindo sua cabeça em um abraço.
CA-CTRA-PRA-TH-BRAM
Se faz uma orquestra desarranjada, de telhas e tábuas caindo umas por cima das outras, lascando e despedaçando em uma nuvem de poeira e fumaça, parte do fogo sendo sufocado, e outra, realçado pela ventania.
— Cof! Coff! Agh!
As chamas se contorcem, indo em direção ao centro da ruína, e deste meio, cobertas por sujeira e carvão, estavam as duas garotas, a menor estando a tossir.
Guiando-se através das lascas, Caju traz a garota afora do destroço, a repousando sobre o gramado próximo.
Elina se senta sobre a grama, e segura Topázio no colo.
Tirando um rasgo da manga de sua camisa, o entregou, e com este, um esparadrapo foi improvisado para a ferida do gato, e durante o improviso, Caju apoia as mãos em suas costas, o mesmo brilho morno de sempre surgindo sobre estas, e a tosse da garota aliviou aos poucos.
Caju abre um sorriso suave, afastando-se dos dois, e virando para o primeiro Stray, ao fundo, ainda a atormentar os Prateados.
Suas mãos subitamente inflamam, cobertas de uma leve camada de chamas inofensivas, porém energéticas, Caju sentia como se sequer tivesse se cansado.
— Você, é o próximo.
— Com quem está falando?
— A-ah! Ninguém! Ninguém!
Comments (0)
See all