Das moradias de Linha Castanha, apenas o santuário e o casarão estavam com suas luzes ligadas, além da chama de Caju, a recém chegar com Lídia e Aranji.
Batendo na porta, foram recebidos pela alta figura de um homem com cabelo médio e barba grisalha, vestido em um casaco feito de várias faixas distintas de tecido estampado, costuradas umas nas outras, com um cachecol azul por cima.
— Oh! Aí está a recém-chegada. — Ele comemorou. — Silica! Venha conhecer!
Arrumava seu cachecol, escondendo a cauda deste dentro do casaco, e lhe estendendo a mão.
— Muito prazer, me chamo Peamel! E você?
— Ah! — Caju abana as mãos, desfazendo o fogo, e estendendo uma delas a ele, tomando tempo para se lembrar do próprio nome. — Caju.
Assim que o cumprimentou, outra silhueta surgia atrás do homem, uma garota vestida inteiramente de verde-marinho-profundo, exceto por várias correntes, espinhos, pingentes e anéis prateados que a decoravam.
— Olá-olá! Sou a excelentíssima Silica. Já devem ter conhecido Náilin e Elasto antes, sim?
— Sim-sim! — Espelhou Caju.
— Que bom, que bom. Somos os costureiros da vila, prazer em conhecer!
— Vamos, entrem, não fiquem aí no sereno. — Peamel ordenou, abrindo caminho.
— Será que todo o mundo também tá tendo esse problema de bichos irritados aparecendo para destruir seus rádios?
Na sala de estar, sentados sobre os sofás e poltronas, estavam os irmãos com brinco de capacitor, a conversar sobre algo a ver com o rádio destruído pelo anulador. Com a exceção de Carlo, que estava escorado na parede da cozinha, próximo ao fogão.
Assim que Lídia entrou, Nádila chega até ela e cochicha algo em seu ouvido.
O rapaz mostra um sorriso presunçoso, e a caçadora devolve com um olhar afiado o suficiente para o executar ali naquele mesmo instante. Contendo-se, apenas apontou ao rapaz, e em seguida, deslizou a unha do polegar por baixo do queixo.
— Você, me, paga.
— Azar o seu! A minha fortaleza tem muros altos, então essa sua lata velha não consegue saltar por cima usando essa rampinha frouxa! — Figo provocou.
Ao meio do carpete, sentados no chão, Elasto, Nico, e Figo, a brincar com blocos de montar e carrinhos. Náilin estava em um cantinho, enfurnada dentre o armário e a estante, ainda rabiscando em seu caderno.
Peamel vindo a se sentar logo ao seu lado, com um copo de água em mãos, arregalou os olhos e apontou para o desenho.
— Ooh! Amei o jeitinho da saia, será que vai ficar bom de correr com ela?
Os dois contemplam a ideia ao olhar para um ponto distante e imaginário.
Aranji, Silica e Nádila se reúnem com Lídia em seu quarto, cochichando entre si enquanto guardava seu arco e preenchia a aljava com novas flechas. Aranji descansava o rifle escondido numa fresta do armário com a parede.
Caju para no corredor da entrada, olhando para todos presentes, ficando ali como um cabide para chapéus e casacos.
Ao redor da mesa, em uma de suas pontas, a líder se sentou, limpando as mãos com um pano de pratos, acompanhada por Pomelo, que estava logo atrás da guardiã, apoiando as mãos sobre o encosto da cadeira.
Ambos olhavam para a senhora do santuário, que descansava no assento ao outro lado da mesa, apoiando-se com uma bengala, acompanhada do rapaz com a grande cicatriz no rosto.
— Mas é o que estou te dizendo, dona Sílvia... — Amora elaborava.
Com uma espátula de ferro, a lenha dentro do fogão era remexida, limpando as cinzas, revivendo uma flama vibrante que aquecia várias panelas a ferver sobre a chapa. O arroz temperado quase secando, o macarrão terminando de fritar, e o feijão, já temperado, descansava morno.
— Desde que os grandes males foram mortos, os prateados pararam de se comunicar, não é, Yan?
O rapaz apenas assentiu com o rosto.
— Os grandes males... Não morreram, não. — A senhora apontou. — Ainda... Sinto suas presenças.
Leivos congela, parando de misturar o suco que estava preparando.
A tábula estava arrumada com pratos, talheres, copos, bacias com alface, tomate fatiado com anéis de cebola, maçãs e bananas, e jarras cheias de suco de laranja, um campo de batalha aguardando a ordem do comandante para o ataque iniciar.
Thin-clin-clin!
— Muito bem, quero todo mundo aqui na cozinha! — Anunciou Amora.
Em um minuto, todos na casa se reuniram frente a mesa servida, trocando olhares entre si, a líder, e a comida, como pistoleiros prestes a duelar.
— Primeiramente. — A líder pontuou. — Recebemos notícias da aparição de um novo grupo nas proximidades, um pessoal que vai pelo nome de "Jota Três".
O silêncio toma a casa.
— Então, peço para que qualquer sinal de atividade estranha nas nossas terras, seja imediatamente reportado pra mim. Desejo também, boa sorte aos caçadores em sua viagem para Satilha.
Lídia respondeu apenas sorrindo e assentindo com o rosto.
— E por último, mas não menos importante...
Pegando um prato, Amora o serviu com um pouco de tudo de salgado o que havia preparado.
— Gostaria de dar minhas mais sinceras boas vindas, por mais que atrasadas, a nossa mais nova integrante do vilarejo, Caju.
A oferecendo, a menina tomou o prato em mãos, e lhe deu a primeira garfada.
— . . . E então?
— É bom!
— Bom? Ah-hah! Ela disse que é bom!
— VRADE-A-IUVEN, Ó MANDRIÃO!
Todos ao redor da vermelha exclamaram e riram quase a ensurdecendo, rodearam a mesa, pegando suas porções do jantar e logo saindo da cozinha, retornando aos cômodos onde antes estavam.
Ian serviu para si, e para a senhora, em seus pratos, apenas os grãos, massa e salada.
Caju, não tendo muito de um lugar anterior, sentou-se à mesa, logo ao lado de Leivos, e ambos trocam olhares secos por um mero instante.
Leivos pouco havia servido, então foi o primeiro a terminar seu prato. O levando a pia, fez questão de lavar, além deste, o restante dos talheres e utensílios sujos.
Amora entorta o olhar a ele, como se visse um fantasma, e ao mesmo tempo, alguém fazendo malabarismo com nove pinos simultaneamente, ergueu o beiço em orgulho antes de bebericar seu suco.
Caju encerrou sua refeição logo depois, tratou de ajudar o conselheiro, pegando um pano de prato para secar a louça recém lavada.
Uma multitude de vozes ricocheteava por todo o ambiente da casa, conversa atrás de conversa dentre todos os outros, mas entre eles, nem uma palavra sequer foi trocada, e ambos não pareciam ter problema algum com isso.
Assim que terminaram a tarefa olímpica, Leivos havia coletado todos os restos de comida em um só potinho, e o levou consigo até a saída.
Afora, a grama estava úmida de encharcar os pés de quem ousasse andar de arrasto, e os grilos faziam sua sinfonia de estridulados, com o raro, mas icônico, chirriar de uma coruja.
Contornava o casarão, até seguir uma trilha que levava a um pequeno espaço cheio de arbustos, derramando os rejeitos em um trecho de terra exposta. Olhou ao redor, percebendo a densidade da neblina que escurecia ainda mais o ambiente.
Em vez de retornar, tomou um novo rumo, saindo da terra marcada por passos, e indo em direção a floresta que cercava o vilarejo.
Só o que ele não percebeu, foi Caju, surgindo logo depois de sua presença nos arbustos, seguindo seus passos, trouxe também outros restos de comida, para os despejar no mesmo local.
Notou que o conselheiro não havia voltado ao casarão, e decidiu o seguir, vendo não mais que a silhueta do homem por dentre a serração.
Os grilos cada vez mais quietos, e a coruja era não mais que um eco distante.
Assim que mil passos foram dados, a silhueta de Leivos se distorcia, ganhando retas e ângulos pontudos, e o conselheiro passava a flutuar, agora em sua verdadeira forma, ganhando velocidade.
— !
Caju tentou correr para o alcançar, mas ao passar de uma árvore dentre a outra, ele sumiu.
Olhava ao redor, puxando sua adaga e a aquecendo. O único som que ouvia sendo sua própria respiração vaporosa, e o chiado da lâmina que fervia a umidade no ar.
— . . . Droga.
Apertou o cabo do punhal de quase o partir ao meio, e afrouxou, resfriando, guardava-o consigo novamente. Sem mais um rastro a seguir, Caju não teve escolha, caminhou de volta ao vilarejo.
Virando o canto da cabana da líder, encontrou todos os costureiros reunidos frente à entrada.
— Ah! Aí está você, minha querida! — Peamel segurava em seu ombro. — O que acha de posar conosco hoje? Vamos fazer uma festa do pijama!
— Uhm, tudo bem? — Caju timidamente respondeu.
— Isso, isso! — Silica carimbou. — Não precisa se preocupar com nadinha, temos colchões e cobertores de sobra.
— Ou! Vamos levar a vermelhinha pra posar lá na oficina, belê?! Obrigado pelo jantar!
Peamel exclamou à Amora, que espreitou da cozinha ao inclinar a cadeira pra trás, respondendo apenas com um joinha, e sumir de novo.
— Nem pra responder direito... Bruxa. — Curvou a boca, rindo abafado.
Chaves trilincavam, e a tranca estalava, porta de metal rangendo.
— Muito bem, aqui estamos!
A oficina em questão era uma casa de dois pisos, encontrada em alto terreno, mas na outra ponta de Linha Castanha.
Por dentro, a casa era coberta dos mais variados tecidos e estampas em suas paredes, haviam quatro máquinas de costura no meio, além de amplas mesas cheias de rolos de linha, tesouras, e trabalhos terminados, em progresso, ou quase esquecidos nas laterais. Além de caixas com mais tecido e matéria-prima nos cantos e embaixo das mesas.
Peamel se põe logo ao centro do salão, apoiando as mãos sobre uma das máquinas. Enquanto Náilin e Elasto vão direto para o segundo piso. Silica se vira para fechar a porta assim que Caju entrou.
O ambiente estava bem frio, porém, poucos minutos levaram até o ar ficar morninho como se estivesse embaixo de um cobertor.
— Sinta-se livre para ir e vir, cutucar as coisas, pegar o que precisar, como quiser.
Ele gesticula a todo o ambiente ao redor.
— Você não é minha prisioneira, e mais importante: Eu não sou seu "guardião."
Sinalizou as aspas com os dedos.
Indo até uma caixa que havia em um canto, o rapaz pegava uma grande faixa de tecido amplo, cujas pontas eram unidas na forma de dois nós abertos.
— Silica, uma mãozinha aqui, por favor.
A garota terminava de trancar a porta quando ele chamou, e logo o alcançando, pegava uma das pontas, a levando a um gancho que havia em um dos pilares das paredes, enquanto Peamel o pendurava a um noutro lado da casa.
— Aí está, aí está. Já dormiu em uma rede, Caju? — Silica inquiriu.
— Por alguma razão sinto que, já.
Dizia, enquanto cautelosamente testava a firmeza dos ganchos, e sentava sobre o tecido, logo deixando-se afundar adentro da rede, espreguiçando.
— Oh, certo, certo. Cuide para não cair, se precisar, tem um cadarço que dá pra amarrar, qual fecha a rede.
Alcançando a gaveta mais baixa de uma das mesas, Silica retira uma garrafa cheia de um líquido alaranjado, além de dois copos, entregando um a Peamel.
O gargalo era estranho, possuindo uma espécie de bolinha a qual se agitou enquanto despejava a bebida sobre os copos.
— Então, quando chegou? — Peamel perguntou, puxando um gole. — Arh! Quente!
— Acho que não faz uma semana.
— O tempo passa tão devagar, não é? Tudo aqui parece ser um dia de cada vez.
Silica entregava o outro copo a Caju, que hesita ao perceber um forte cheiro de madeira oriundo da bebida. Eventualmente, decidindo beliscar, sentiu o gosto irritado.
— Esse negócio parece me odiar.
— Oh, entendo, é bem forte mesmo! Mas, não precisa beber se não qui-
Caju vira o copo inteiro de uma vez, o secando. Ambos os costureiros petrificando como se tivessem visto um monte de cobras ao virar da esquina.
— . . . Gente.
— ...
— Blergh!
O relógio marcava as onze horas, talvez sem bateria ou quebrado, pois a escuridão impenetrável da madrugada garoava sobre o vilarejo já em sono profundo.
Passos deslizavam, com ruído abafado por meias nos pés, a custo de serem manchadas pela cera sobre o assoalho. Cortava a cortina de um dos quartos, dando entrada a uma sombra, que perdurava sobre a figura de Lídia, que estava a dormir, escondendo uma única flecha em uma das mãos.
A luz de uma vela sobre o balcão da janela revelava que se tratava de Carlo, seus olhos não refletiam o brilho, mas um dos de Lídia, sim.
Suas mãos, finas como galhos de uma figueira, se aproximavam da garota, serpenteando abaixo das cobertas.
— Você é mais doente do que eu pensava. — Amora sussurrou, logo em seu ouvido.
O ombro de Carlo é puxado, apenas um glimpse do rosto da guardiã conseguiu ver, seguido de uma mão fechada chegando a seu rosto no instante seguinte, e apagou.
Ainda segurando seu ombro, abafou a queda do rapaz, o sentando sobre o chão da casa.
Seu olhar voltando a caçadora, e jogando suas cobertas afora da cama, e a menor avança para a apunhalar com a seta.
Amora agilmente a restringiu, amordaçando sua boca com a bucha de gaze, e apertando sua mão até a seta que segurava se quebrar, caindo sobre a cama.
Pegando uma corda que trazia na cintura, amarrou seus tornozelos e pulsos, e a puxou da cama, e sem se importar com a queda da menor, arrastando-a ao longo do piso, logo para fora do casebre.
Lídia nem um ruído sequer fez, estendendo o que podia dos braços, conseguindo alcançar apenas seus chinelos ao tentar pegar o arco embaixo da cama.
— Eu não devia estar fazendo isso, pois é exatamente o que quer.
— Depois de tudo o que eu te dei, que Eles te deram...
— Você sabe desde que nasceu, que não dá pra sair daqui, e ainda assim, insiste em ir embora.
— Te avisei tantas vezes do quão horrível as coisas são lá fora, mas pelo visto, é só sentindo na pele que irá aprender.
A guardiã parou, largando Lídia sobre a beira de um precipício.
Apesar do caminho ter levado consideráveis minutos, sua vestimenta estava apenas molhada, suja, e levemente danificada, Lídia sofreu apenas leves arranhões.
Colocava o pé sobre o corpo da garota, e deixando apenas o peso de sua armadura arder sobre a caçadora.
— Então, aproveite! E nunca mais volte!
E a empurrou.
— Assim como aquela garota insuportável em quem você vivia grudada.
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