Expirou, e inspirou, com uma calma quase incompreensível para alguém no meio de uma queda livre.
A
água fria da bacia da cachoeira envelopa a figura de Lídia sem muita
resistência, um estalo grave se fazendo depois de seu mergulho, um dos
sons hidráulicos mais agradáveis de se ouvir.
Soltando
as cordas de suas mãos, permaneceu no fundo do rio, exalando seu ar de
poucos em poucos. Balançava a mão em meio as bolhas, as repartindo em
espuma.
Quando satisfeita, bastou apenas um salto para alcançar a superfície, para tomar uma arfada de ar novo, e alcançar uma pedra para segurar.
Ela saía da água, mas a água não saía dela, o tecido de juta se tornando irritantemente pesado, respingando sobre o chão da floresta.
Pondo os chinelos ao chão, os calçou para caminhar ao longo da vegetação do lugar.
Depois de muito caminhar, averiguando cada arbusto pelo qual passava próximo, um de seus pés prende em um cabo, e ao se localizar, tentando ver e sentir através da escuridão, sentiu sua mão segurar em um material sólido e duro, mas com textura de vidro e plástico.
— Oh... Eu sei onde estou. — Sussurrou consigo mesma.
Passando as mãos ao longo do objeto, encontrava um conector inserido neste, a partir do qual, um fio corria.
Ganchando o fio dentre os dedos, ergueu este e seguiu o trajeto que percorria.
Eventualmente, o fio se juntava a outro, e mais outro, e mais outros, até formar um cabo espesso, e levemente morno, onde Lídia parou, e alcançou suas mãos para frente, dando passos cuidadosos como um sonâmbulo, com a incerteza de um zumbi.
Até que seus chinelos estalam, ao pisarem na solidez rígida de concreto.
Sorriu embora não fosse possível ver, e prosseguiu seus passos firmemente, deslizando apenas uma das mãos ao longo da áspera parede,
até que estes encontraram uma superfície lisa, metálica, e aquecida, a qual fazia um ruído grave e contínuo.
Continuou, até retirar a poeira de um painel com vários pontinhos luminosos, alguns verdes, outros amarelos, e até vermelhos. Abaixo destes, botões e interruptores, alguns deles ativos, até parar em um específico, o qual acionou.
— Tic!
Lentamente, uma luz surgia acima de Lídia, oriunda no teto da escadaria onde a máquina embaixo se abrigava. Descalçou os chinelos, subindo os degraus até alcançar o ambiente principal da instalação.
Apenas algumas lâmpadas estavam ativas, levando a todas as sombras serem distorcidas o suficiente para Lídia não gostar do que estava em sua visão periférica a todo momento.
Conforme se aproximava de uma das portas, seus passos aceleravam, tomando cada vez menos contato com o chão, até estar na pontinha dos pés, e um sorriso animado ao olhar adentro da cozinha.
— ... Até o cereal eles levaram, bando de urubu.
Ao ver que nada além de poeira havia sobrado nos armários, Lídia firma os pés sobre o piso novamente, tomando uma pose fixa como uma estátua, quase a ponto de sua própria imagem se tornar a presença mais desconfortante no canto do olho de alguém.
Dando a volta para retornar à escadaria, seu primeiro passo trava, e ela olha para a outra porta próxima, a qual alguns cabos passavam ao canto.
— Não me lembro de ter entrado nessa.
Adentrando um corredor menor, seguiu os fios, até encontrar um freezer, e imediatamente o abrindo.
No instante seguinte, apertou a mão sobre a porta do eletrodoméstico, quase conseguindo levemente a amassar ao ver que ali também não tinha nada que se considerasse alimento.
A fechando, retornou o caminho que fez até ali sem hesitações.
— Tac!
Desligava o mesmo interruptor, e as luzes se foram da mesma fora que chegaram, restando apenas um longo suspiro da caçadora, a cair no sono.
— Tan ta-ta-tan! — Alguém batia na porta, e fora Figo quem atendeu.
— Entrega especial para Caju! — Peamel exclamou.
Tratavam-se dos costureiros, trazendo uma veste dobrada.
Caju vai até a entrada, acompanhada por Nádila para a receber.
— Vamos, vamos! Experimente, eu quero ver. — Silica apressou.
— Oh, mas já? Tudo bem.
Ao pegar a vestimenta, a deixou sobre a mesa, alcançando as mãos até a base da própria cami-
— PERA PERA PERA PERA! — Pomelo interrompeu, cobrindo os olhos de Figo. — No quarto, por favor! No quarto!
As meninas param e olham para ele por um looongo instante, porém, Caju ainda atendeu, pegando a roupa e a levando consigo ao quarto, sumindo dentre as cortinas.
Aranji a seguiu, indo até um armário, e retirando deste, algumas mochilas empoeiradas, entregando uma para Caju, e saindo do quarto para entregar a outra a Pomelo.
Os costureiros se escoram nas paredes ao redor da entrada, Peamel tendo que segurar um braço com o outro pra conseguir manter-se parado por mais que três segundos.
Náilin e Silica cochichando entre si. Enquanto Elasto retirava um ioiô de madeira de dentro do casaco, brincando com este.
— Seguinte, rapaziada. — Ela declara, puxando os olhares dos caçadores. — Passo ligeiro, e olho aberto.
De uma gaveta, retirou uma garrafa, enchendo esta na torneira da pia, guardou junto de outros itens em uma mochila de mensageiro, a qual vestiu, pegando a espingarda e a alçando nas costas.
Pomelo nervosamente investiga a sacola empoeirada que recebeu, meticulosamente olhando cada bolso que esta possuía, a iluminando com a luz de uma das janelas.
Até que sentiu algo pequeno caminhando com várias patas ao longo de seu antebraço.
— ...! Aah! — Ele pasma e grita, estapeando o próprio braço.
Logo atrás dele, estava Nádila, rindo.
— Haha-hah! Trouxa!
O garoto congela, olhando para ela como se estivesse prestes a cometer um crime contra a humanidade.
— Não teve graça.
— Hihih, ui ui, ele tá bravinho, ele.
Uma mão rubra atravessa a fenda das cortinas, segurando o longo pano para o puxar para o lado, trazendo a imagem de Caju, utilizando as vestes criadas pelos costureiros, que rapidamente entram na casa para a cercar e averiguar a garota.
— Oya oya! O que achou?! — Peamel perguntou, dando pulinhos.
— Eu... Uh, achei...-
— Ficou apertado em algum lugar? Ficou solto demais em algum lugar? — Silica belisca alguns cantos do tecido.
— É que, é que-
Náilin pega seu bloquinho de notas, rabiscando algumas coisas.
— Em uma escala de zero a cem, que número você daria ao peso, textura, sensação térmica, mobilidade, e proteção, a esta vestimenta?
— Acho que uns... Noventa?
Figo nada disse, apenas cutucando uma das mãos de Caju para apontar a um de seus braceletes, que estava levemente torto, foi a única coisa que ela conseguiu responder em meio a toda aquela interrogação.
— Com licença.
Aranji chamou aos Costureiros, apoiando o punho sobre a cintura, enquanto levemente batia um dos pés, estalando o assoalho.
Um por um, eles param e olham para a atiradora, um frio lhes descendo a espinha.
— Não me lembro de os ter deixado entrar, então... Caiam fora! Já estamos bem atrasados! Muito obrigada!
Marchando igual uma patrola, ela empurra Peamel e Silica para fora da casa, e os costureiros mirins os seguiram logo depois.
— TRAM! — Terminava, batendo a porta.
Não demorou para Lídia acordar, com a luz do sol nascente vindo ao longo do corredor até chegar a seu rosto.
— Ah, qual é?! Eu tô no meio de uma caverna!
Resmungou, levantando e estapeando sua vestimenta pra tirar a sujeira da máquina e do chão, e logo caminhar até a saída, atravessando os monitores para mergulhar na neblina e no matagal.
Meras centenas de metros caminhou, percebeu sua visão sendo subitamente cortada em um padrão de fios escuros a se cruzar várias e várias vezes.
Parando e olhando ao redor, reconheceu que era a tela de arame de uma alta cerca que Lídia estava vendo através, a qual corria por longuíssimos vinte metros e meio, subitamente acabando em fios entortados.
— Oh. Sempre me disseram que lá fora, as plantas sangram, e que o sol e os passarinhos vivem atrasados.
Ela
comenta ao se aproximar, encontrando na cerca, uma passagem na forma de
um portão levemente aberto, logo ao lado de uma placa, a qual logo atravessou, na curiosidade de ver o que havia escrito.
[ NÃO ULTRAPASSE - PROPRIEDADE DO INSTITUTO ALVORADA ]
— . . . Ela falou que eu literalmente nasci dentro desse cercado, então. Ganho um prêmio em vez de uma multa?
Comentou, ao virar para continuar caminhando.
— Pfft- — E riu sozinha.
— Que caminho estranho. — Disse Caju.
Os caçadores chegavam a uma ampla estrada de chão, tomando o caminho a qual seguia adentro do vale, logo chegando a uma ponte.
— Como é? — Pomelo inquiriu.
Caju se aproxima de uma das bordas, olhando o rio a fluir, logo retornando ao grupo.
— Existe gente tão grande que quando caminham, fazem trilhas largas assim?
Todos os outros aquietam por um momento, antes de estourarem em uma sinfonia de risos de chaleiras, motores afogados e portas velhas.
— Brr! Talvez! — Figo apontou.
— Hrrs-ss-rr-s. — Um arbusto chacoalhava.
Assim que atravessaram a ponte, sumindo na primeira curva da estrada, Lídia saiu do matagal, deslizando um pequeno barranco para saltar a vala até o caminho batido.
— Ela está, tão linda.
Comentou, havendo recém visto a camisa, os braceletes, e a saia que Caju estava usando. Quase esquecendo os detalhes menos importantes:
— E está com o meu arco!
Reclamou, antes de começar a correr, chegando até a ponte.
— Hrrs-rs-ss-rs. — Outro arbusto chacoalhou.
No outro lado da ponte, Lídia saiu do matagal, deslizando um pequeno barranco para saltar até o caminho batido, parando para olhar para Lídia.
As duas se encaram, e Lídia nota que seu reflexo não tinha cor alguma.
— Quem é você? — A questionou.
A cinza sorriu, e correu na direção da caçadora, saltando para agarrá-la.
Lídia a evitou com um leve salto lateral, erguendo e firmando os punhos.
Freando e dando a volta, novamente a entidade salta na direção dela, com um leve ajuste.
Lídia repete seu salto para esquivar, porém, sendo pega pela correção da criatura.
Elas se travam a segurar uma no pulso da outra, disputando suas forças.
— Por que se parece comigo?!
A arqueira interrogou, vendo os olhos completamente pretos de sua cópia.
Por mais que tivessem literalmente a mesma força, a maneira desengonçada que a entidade a utilizava desnorteou Lídia, a ponto de ela perder a disputa, sendo derrubada pela cinzenta, que logo a sobe por cima e leva as mãos a pegar seu pescoço.
— Huh, não vai... Se apresentar?
Lídia a provocou, enquanto forçava e apertava os pulsos da incolor.
Balançando o corpo, desajeitava o peso da garota sobre si, até conseguir a jogar para o lado e separar-se do agarro, rolando na direção oposta para se levantar.
— Nesse caso, coff! Huff! — Cuspiu terra, recuperando o fôlego. — Vou te dar um nome então.
Olhava para a entidade, que levemente se torcia, rastejando na direção de Lídia.
— Já que você é... Acromática, que tal "Acroma"?
A cinzenta soca o chão ao se levantar, e suas mãos se envolvem em um brilho branco e borbulhante.
— Acho que não gostou.
Correndo para trás para escapar de Acroma, cuidou seus passos até chegar a perto da borda da ponte, onde a esperou.
— Então, que tal "Nil"?
Lídia propôs, estendendo a mão direita para ela, escondendo a esquerda atrás do próprio corpo, enquanto Nil vinha em disparate para lhe esganar.
Assim que próxima, um leve recuo abriu o caminho para a mureta da ponte.
Nil dá com quase o corpo todo na parede baixa, porém ainda impedida de cair, afinal atendia os padrões de segurança.
— Porque você é um zero à esquerda! Hah!
Lídia a acerta a bochecha de Nil com um gancho aberto o suficiente para lhe jogar contra o muro novamente, desta vez, completando o caminho para pender seu corpo na direção do rio, a derrubando na correnteza.
Ch-Bum!
— Sinceramente, haah. Eu gostei de Nil.
Caminhou até a base da ponte através de uma trilha numa das pontas, acessando o rio para limpar a sujeira de seu corpo, enquanto assistia Nil ser levada pela correnteza.
Retornando a estrada, seguiu o caminho dos caçadores, ainda que apenas em caminhada.
— Vamos ficar com esse, se não se importa.
No estilo câmera-rápida, muitas vezes utilizado em novelas, o tempo passa, o dia esvaindo no horizonte com nuvens surgindo, correndo, e sumindo ao longo dos céus, e a noite chegando com cada vez menos estrelas a brilhar.
— Dip!
Tal rápida metragem termina ao abrir dos olhos de Nil, deitada numa cama de pedras na beira do rio que a levou. A razão de seu despertar encontrada logo a seu lado: um anulador brigão, armado com apenas uma de suas espadas luminosas.
— Trrr-wip-bip!
O brigão espasma e recua com um jato dos propulsores em seus pés, manifestando sua segunda lâmina e assumindo uma pose ampla, seu suposto olho brilhante tremendo conforme salta entre diversos pontos na imagem de Nil.
A
cinzenta se ergue, e limpa a sujeira de si, se espreguiçando na tentativa de livrar-se da enorme dor de ter dormido nas pedras.
Sua expressão sem sabor algum subitamente tendo os olhos chamados pelo brilho das armas do brigão.
Ela
estende a mão na direção do anulador, e este imediatamente afasta a espada, a escondendo atrás de si.
Nil cerra o punho estendido e ajusta os pés dentro dos chinelos, permanecendo parada.
A pirâmide animada fica balançando as espadas de luz, em um gingado estranho, apenas os sons de seus propulsores a bufar de vez em quando. Se aproximava da garota dessaturada, a contornando. E ela apenas moveu o corpo para continuar o mantendo em sua visão.
Eventualmente, ele ergue o sabre brilhante para o descer contra Nil, mas ela leva a costa de sua mão até o "rosto" da criatura antes que a lâmina pudesse cair.
— CRRR-Wunn!
O
brigão é atordoado pela pancada, e seu ataque se dá de maneira
desengonçada, fácil até demais para Nil o evitar com uma esquiva
lateral, e acertar sua garra, tomando uma das lâminas do anulador para
si.
Recuperando a estabilidade dos sistemas, a entidade percebe a falta de uma de suas armas, e a reencontra agora em possessão da cinzenta, a descendo contra ele na mesma maneira que ele a atacou antes.
Mas a lâmina para, a poucos centímetros de sua existência, e Nil se afasta, o deixando ali.
Subitamente, o anulador apita e salta mais uma vez, recuando, para pousar firme ao chão, em uma estância ampla, com a lâmina apontada a Nil. Passeava de um lado pro outro com movimentos mais firmes e precisos, não mais como uma provocação.
— Chrr-ip! Dhrrr-ip! Trr-ip!
O ruído chama a atenção dela, e ela faz o que qualquer garota faria: Abre um sorriso enorme e quase monstruoso, ergue os braços para os lados e corre na direção dele como um ganso em modo de ataque.
A entidade espasma de novo e dispara-se aos céus em fuga, quase separando os circuitos do próprio corpo e os deixando pra trás, sumindo em meio a alta vegetação.
Nil
permanecendo ali, contemplando sua mais recente aquisição, descobrindo
que era possível desligar a lâmina, sorriu levemente, ligando e
desligando mais algumas vezes, antes de a guardar na faixa da cintura, e adentrar a floresta, para caminhar ao longo da subida do rio.
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