O sol já havia começado a se pôr quando Noah adentrou pela rua principal de terra batida do vilarejo, de onde seguiria para a entrada da floresta até chegar em seu velho casebre. Ele mal saíra da ferraria do velho Wesley e já sentia falta do calor que o cercou durante toda a manhã. Ele não gostava muito de ajudar o ferreiro durante o verão, pois a temperatura elevada conseguia ser quase insuportável nas tardes já quentes, tornando o clima quase insalubre devido ao cheiro de enxofre que parecia se intensificar no vilarejo graças ao sol escaldante sobre o esgoto, porém, durante o inverno ele chegava a esperar ansiosamente ser chamado para ajudar com a forja de armas ou utensílios de ferro.
Seus dedos calejados estavam endurecidos, no entanto não doíam tanto, sendo anestesiados pelo frio.
— Ouvi há pouco o padre comentando com madame Vivianne que a filha mais velha do caçador Hayes morreu ontem à noite.
Noah parou por um momento, lançando um olhar de soslaio para duas senhoras que se encontravam em frente a uma pequena padaria, as duas cochichavam alto o bastante para qualquer um a pelo menos cinco metros de distância conseguisse escutar com clareza.
— Uma tragédia, realmente uma tragédia. Pobrezinha, estava quase na época de arranjar um matrimônio. Aquele pai desnaturado, como pode levar suas crianças para morar em um lugar tão perigoso? — A segunda mulher soltou um som de surpresa, enquanto colocava a mão sobre o peito. Noah notou ser Emma, a mulher de um dos guardas atuantes no minúsculo posto militar daquele lugar. Ela sacudia a cabeça mostrando sua insatisfação.
A primeira mulher, qual Noah não conhecia o nome, porém, já havia visto em algumas ocasiões no vilarejo, concordou com as palavras de Emma.
— Certamente, que morte horrível a pobrezinha teve, um grande infortúnio ser atacada por um urso durante a noite. Como a madame Vivianne disse, senhor Hayes deve estar amaldiçoado, primeiro sua esposa sucumbiu por uma praga, agora sua filha foi atacada por um animal selvagem. Uma situação deplorável. Não quero nem imaginar o que pode ocorrer com aquele pobre garoto no futuro, sinto que viverá de forma infeliz.
Ele ignorou a conversa proferida pelas duas e seguiu em direção a uma venda de especiarias, Noah havia pensado seriamente em comprar alguns pães, no entanto, o preço do pão se eleva muito no inverno. Pois, segundo o padeiro a massa crescia pouco e ele gastava muito mais lenha do que em qualquer outra estação, como consequência ele tinha que pagar algum garoto para cortar lenha e estocá-la durante o outono, o que lhe dava mais gastos.
Noah abriu uma velha porta de madeira coberta pelas ramas de trepadeira e entrou em uma pequena loja feita com madeira de carvalho que cheirava a ervas medicinais, três grandes estantes feitas de madeira já envelhecida estavam encostadas nas paredes, todas elas repletas de ervas de várias espécies, quais ele não sabia diferenciar nem dizer para o que elas serviam. Algumas prateleiras sustentavam cestos com todos tipos de especiarias, o cravo, a canela e as pimentas secas foram as únicas que Noah fora capaz de reconhecer graças ao cheiro específico que elas tinham e por serem as mais comuns. Grandes balaios de vimes estavam amontoados no centro da loja contendo cascas de árvore, enormes folhas que haviam sido enroladas e amarradas com palha e uma abundante quantidade de algum tipo de grama seca, que se encontravam levemente umedecidas. Perto do pequeno balcão de madeira, que fora atacado no último verão por cupins, estavam algumas pequenas cabaças pintadas pelas crianças do vilarejo.
Escorado no balcão se encontrava um jovem baixo de aproximadamente 17 anos, seus olhos eram verdes como as folhas de um pinheiro e o cabelo era marrom como a terra, sua pele era mais branca que a dos outros jovens do vilarejo, o que deixava suas inúmeras sardas ainda mais aparentes.
Assim que notou a entrada de Noah, ele endireitou a postura e mostrou um grande sorriso, parecendo estar animado.
Noah o observou de cima a baixo, o garoto era como uma bola ambulante de peles e tecidos.
— Noah! — O mesmo estendeu o braço esquerdo na direção de Noah, no entanto acabou esbarrando em um dos cestos do balcão derrubando alguns ramos de ervas. Ele xingou baixinho enquanto se abaixava com dificuldade para recolher os ramos.
— Você está animado como sempre Thomas, sinto que nem mesmo o frio intenso é capaz de resfriar seu ânimo. — Noah sorriu fracamente se abaixando ao lado do garoto que voltou a sorrir, o ajudando a recolher os últimos ramos.
— Você geralmente não vem muito no inverno, principalmente no meio da estação — assim que terminou de recolher as ervas, voltou a colocar o cesto sobre o balcão. — Você precisa de alguma coisa? Talvez tenha sido infectado por alguma praga ou pego alguma doença na barriga que causa diarreia? Tenho ervas perfeitas para aliviar a intoxicação.
Noah fez uma careta com as palavras de Thomas.
— Meu sal acabou antes do previsto, tive que usar mais da metade do que tinha quando começou a época de chuva, e acabei perdendo um pouco devido ao clima. — O sal custava caro, no entanto era algo essencial para a conservação de alimentos. Noah não compraria muito, apenas o suficiente para terminar o inverno e tentaria dar um jeito durante as próximas estações.
O garoto assentiu, compreendendo a situação. O frio ajudava a preservar a carne contra vermes e tardava o apodrecimento, porém ainda não era o suficiente para que impedisse que o gosto ficasse levemente azedo.
— Espere um momento. — Dizendo isso ele sumiu pela porta que levava para os fundos da loja, onde morava com sua família. Noah observou por um momento, até não ser mais capaz de ver as costas de Thomas, logo, voltando seu olhar para um ponto específico da loja, era um pequeno altar enfeitado com ervas e pedrinhas coloridas, colocado em cima de uma grande pedra lisa. A vela já havia se apagado a algum tempo e as gotas de cera já haviam endurecido. Antes que percebesse, Thomas já havia retornado com um pequeno saco marrom amarrado com uma tira de couro — papai havia separado uma porção para você, porém, acredito que possa não durar até o fim da primavera. Na realidade, acredito que dificilmente dure até o meio da estação.
Noah concordou, ele sabia que conseguiria dar um jeito, ele sempre sobrevivia independente da situação e com a temporada de vendas chegando, ele acreditava que conseguir dinheiro não seria um problema.
— Onde está Elisa? — A pergunta que rondava sua mente desde o momento que entrou na loja, finalmente veio à tona. Ele apontou sutilmente para o altar, como se indicasse suas suspeitas.
Thomas sorriu fracamente, parecendo achar um pouco de graça.
— Não é o que você está pensando. Elisa acabou pegando um resfriado e está descansando em casa, noite passada ela saiu sorrateiramente para procurar sua galinha que havia fugido e acabou adoecendo, também não encontramos a galinha. — Thomas indicou o altar, como se quisesse dizer que não havia mais a possibilidade de encontrá-la. — Elisa queria fazer um funeral, porém não havia um corpo, então fizemos um altar pedindo que sua alma alcance o céu.
Noah concordou, entendendo a situação.
Elisa era a irmã mais nova de Thomas, ela tinha apenas seis anos e era incrivelmente cheia de vida, tal como seu irmão mais velho. Sempre correndo de um lado para o outro com uma galinha debaixo dos braços, a qual Elisa nomeou de Capim, sua melhor amiga.
Noah observou Thomas com atenção, ele levantou a mão e passou a esfregar sua cabeça como fazia quando o garoto era uma irritante criança de seis anos e o seguia de um lado ao outro, como um pequeno carrapato e berrava vigorosamente quando tentavam afastá-lo.
Sua irmã teria a idade Thomas se ainda estivesse viva.
"Será que ela teria olhos tão brilhantes quanto os de Thomas?" — Noah sempre se perguntava quando os via, como um vislumbre ilusório de como seria sua irmã.
A onze anos atrás, Noah e seu pai vieram para o vilarejo de Gatria junto a um grupo de caçadores, vindos de uma cidade perto da fronteira do Reino de Caisus chamada de Regor. Nesse grupo estava a família Hayes, que era formada pelo caçador Theodor, a jovem Maria, que na época tinha oito anos, e a Senhora Sabrina, que ainda não havia dado à luz a Liam.
As duas famílias se desgarraram do grupo de caçadores e se estabeleceram no vilarejo, cada qual por seus próprios motivos. Theodor queria estabelecer sua família e achou que aquele lugar seria mais que o suficiente para terem uma vida tranquila, já Noah e seu pai tiveram seus próprios motivos egoístas, quais Noah via como a razão que levou à degradação do último membro de sua família.
Noah havia passado boa parte de sua vida perto de Maria, compartilhando momentos felizes, tristes e sonhos no qual nenhum dos dois seriam capazes de cumprir. Naquele momento, ele sentia que as poucas lágrimas que derramara não eram o suficiente, porém, no mais profundo de seu âmago, Noah sabia que aquelas lágrimas não eram inteiramente causadas pela morte de Maria, mas, também eram frutos de um passado que não queria ser enterrado no esquecimento. A razão de todo o sofrimento, o motivo que fizera, Noah, amargamente ter que se acostumar com a morte daqueles que o cercavam.
Na época, Thomas era o filho do único vendedor de especiarias do vilarejo de Gatria e geralmente as crianças procuravam plantas na floresta e trocavam com seu pai por moedas de cobre ou comida. Foi assim que o Noah de então doze anos e a Maria de oito, conheceram o pequeno Thomas, que na época não tinha mais que seis anos e era uma criança incrivelmente pegajosa e carente, que buscava incansavelmente atenção.
Thomas amava Maria, mais do que qualquer pessoa poderia amar e Noah sentia que não era a pessoa indicada para contar-lhe sobre a morte dela. Por mais que parecesse cruel, não seria a pessoa que lhe daria essa notícia, ele aceitaria de bom grado a raiva que Thomas poderia ter dele e sabia que uma hora ou outra todos superariam e seguiram em frente.
Porém, Noah sabia que, assim como a treze anos atrás, ele seria o único preso ao passado e incapaz de seguir em frente por mais que essa fosse sua maior vontade.
Pois Noah havia se tornado incapaz de esquecer.
— Onde está seu pai? — Noah perguntou casualmente, após deixar seus devaneios de lado. O pai de Thomas, Peter, geralmente ficava na pequena loja, arrumando com certa obsessão suas mercadorias e discutindo sobre ervas e suas propriedades medicinais com seu filho e os clientes mais animados.
Thomas colocou a mão no queixo e fez uma expressão pensativa.
— Ontem, logo pela manhã ele viajou para Suren, ele disse que venderia algumas ervas na cidade e que depois viajaria para Macrias onde compraria calêndulas. A filha do Senhor John desmaiou enquanto ajudava as freiras na cozinha da igreja e acabou se queimando. Meu pai usou todo o estoque de calêndulas que tinha para preparar um unguento e aliviar as queimaduras, não foram muito graves, porém seu braço esquerdo foi coberto por queimaduras superficiais — Thomas fez uma careta, lembrando quando seu pai o mandou cortar a manga da roupa da filha do Sr. John. A pele da jovem garota havia grudado na roupa e ele quase vomitou quando teve que arrancar o tecido com vestígios de pele com uma faca, — Se ele não tiver feito muitas pausas pelo caminho, deverá chegar em Suren antes do sol nascer, creio que se não houver nenhum infortúnio, ele deve retornar daqui uns oito ou nove dias.
Noah concordou, a cidade de Suren não ficava muito distante do vilarejo de Gatria, no entanto para chegar lá você deveria cruzar o rio Anguis, o que levava a viagem a durar um pouco mais de dois dias, Macrias era uma pequena vila que fica a meio dia de Suren, seus habitantes são conhecidos por cultivar diversos tipos de ervas usadas na produção de unguentos.
Certificando que o pequeno embrulho estava devidamente guardado, Noah cruzou os braços e encarou Thomas, que naquele momento brincava com o ramo de alguma erva que ele não era capaz de identificar.
— Soube que você está planejando participar da temporada de vendas novamente esse ano — ele parou de brincar com o ramo e suspirou levemente. — Apenas tome cuidado, as coisas estão meio turbulentas esse ano, principalmente nas cidades baixas. E a cidade de Pecúnia não é uma exceção.
A temporada de venda ocorria na cidade de Pecúnia, uma das maiores cidades da Zona Sul do Reino de Arcais e era uma das que faziam fronteira com o Reino de Galees. Era uma das cidades mais famosas do reino, não apenas por sua riqueza, mas também por possuir um forte quase impenetrável e uma força militar admirável. Diziam que tudo isso se devia à administração do marquês de Pecúnia, lorde Robert Mallen, que era responsável pelas cidades baixas. Diferente dos membros da realeza, a muitos anos o marquês preparava seu povo para uma futura guerra que poderia vir a acontecer, já que as terras que administrava seriam as mais prejudicadas.
— Eu sei.
Thomas o encarou fixamente, como se tivesse mais alguma coisa para dizer, porém antes que Noah conseguisse perguntar ele desviou o olhar e suspirou. Noah arqueou as sobrancelhas, Thomas, desde criança agia dessa maneira quando queria contar um segredo que achava muito importante. Ele agiu da mesma forma a dois anos atrás quando resolveu contar a Noah que estava perdidamente apaixonado por Maria.
— Após a primavera, eu e meu pai vamos... — Thomas hesitou, fazendo com que a curiosidade de Noah se aflorasse — vamos deixar o vilarejo e partir para as cidades altas.
Noah contraiu os lábios, sabendo onde Thomas queria chegar e ele não estava gostando nem um pouco. Era uma conversa desagradável, qual eles tiveram mais de uma vez durante o último ano e sempre acabava em uma pequena discussão, na qual Noah sempre sentia que estava perdendo.
— Thomas, eu admiro muito seu pai e também sou a favor de uma revolução, no entanto, você sempre soube que isso é algo que não quero me envolver. — Noah querendo encerrar aquela conversa, olhou para a pequena janela entreaberta, vendo que o sol já havia se posto e a escuridão começava a dar início a noite. — Já é tarde, acho melhor ir embora.
— Se mudar de ideia, saiba que sempre vamos aceitá-lo.
Noah apenas concordou sem pensar muito no assunto e se despediu deixando a loja de especiarias. No entanto, quando sua mente foi clareada pelo ar frio, ele sentiu a sensação de que Thomas tinha mais algo a dizer, a verdadeira razão de sua inquietação.
Comments (0)
See all