Joy estava cansada, mas quis lutar contra a necessidade de fechar os olhos mais uma vez. Era cedo, ela viu em seu celular através das pálpebras preguiçosas, e suspirou, tentando se convencer em meio aos sonhos, que a festa fora a horas atrás, não naquele presente momento. Mas os seus ouvidos ocos estavam lhe deixando perdida em meio ao seu ambiente, e quando se rolou na cama sentiu que as dores em seu corpo diziam que ela também não estava acostumada a dançar tanto.
Com um susto por perceber que havia cochilado novamente, ela se levantou da cama. O pensamento que seu pai poderia aparecer naquela manhã, rondou-lhe junto da nuvem de sono. Precisava ficar acordada. E como se uma enorme pedra estivesse em seus ombros, a impulsionando ainda mais para baixo, ela foi até o banheiro. Ela franziu o cenho para as duas pessoas no espelho.
Duas pessoas?
Olhou para trás e não viu ninguém, nem aos seus lados. Estava só, mas...
-Ah, oi. Licença.
Olhos escuros com marcas da falta de descaço, cabelos cacheados e tão profundos quanto a cor do carvão, pele escura e oleosa na testa. Ela tentou dar um passo para o lado, e entrar no banheiro, a pessoa não parecia disposta a sair da sua frente.
-Você... Olha, só quero mijar. -E então parou com os ombros caídos, com uma súbita vontade de chorar.
Ela deixou sua própria imagem para trás e correu para o vaso sanitário, como se a pessoa no espelho fosse persegui-la e a impedir. Ela sentia seus pés congelando no piso, as mãos na cabeça latejante. Não podia dizer que lembrava exatamente o que tinha acontecido, pois em certo momento, entre as danças desengonçadas e as risadas descontroladas, ela se lembrava de estar bem tonta. Ela se perdeu muitas vezes de seus conhecidos e quase fora parar dentro de um armário com três rapazes, mas ela não recordava daquilo na íntegra. E se sentia péssima, como se seu mundo tivesse saído dos trilhos, parado em cima de uma bomba da qual explodiu e a deixou para trás, partes do seu corpo faltando.
Se assustou quando percebeu que estava na sala, banho tomado e olhos vidrados em uma TV ligada. Não se lembrava do trajeto, tentou raciocinar se era algum tipo de sonâmbula, porém nunca passou por nada do tipo. E em um súbito choque ela se perguntou se tinha bebido algo que não tivesse sido água na festa, não lembrava de jeito algum. Lembrava de algo vagamente, como...
Um beijo...
Não, dois.
***
Com um braço o garoto a puxou pela cintura e Joy sorriu e disparou de forma rápida e nervosa os olhos para todos os cantos do rosto do outro. Ela se sentiu tensa, como se seu pulmão esquerdo estivesse no lugar da garganta, e o coração nas orelhas. Esperou que passasse, mas parecia infinito, ininterrupto. Sua mão pousou sem jeito no ombro do rapaz, e ele se aproximou. Seus lábios frios, puxando e se movendo contra a boca da garota, instigando um movimento recíproco, mas ela se manteve estática.
Se sentiu mais consciente dos movimentos dele, de como sua respiração tocava quente sua bochecha, como ele deslizava sua mão por sua nuca, lhe dando um arrepio frio. Ela tinha os olhos fechados com força, e estava começando a ficar com agonia por conta dos movimentos dele.
Quando isso acaba?
Joy abriu um pouco os olhos, vendo de perto o garoto, e deu um minúsculo impulso para trás, o rapaz entendeu e se afastou.
-Fiz algo errado? –Ele perguntou, seus olhos grandes de apreensão.
-Não! Não, é que... –Ela ficou presa nas palavras, não sabia como sair da situação.
-Nós podemos parar, se quiser. –Joy arregalou os olhos, ele quer mais?
-Ah, eu preciso de um pouco de água, na real. –O outro a encarou, perplexo, tentou processar o que ela disse e enfim a soltou por completo.
Joy se sentiu mal... Por estar tão aliviada. Ela saiu com passos rápidos de perto do outro, e quando deu por si, já estava quase saindo da casa. Sentiu uma mão quente lhe pegar o pulso, e sofreu por uns segundo pensando ser o rapaz, mas então viu uma cabeleira loira lhe guiando. Suspirou, e entontou os lábios quando se viu de frente para a garota dona da festa.
-Você disse que não iria embora tão cedo. -Ela parecia ansiosa, falou tão rápido que quase sua voz escapou de Joy. Ela focou em seus lábios, o batom rosado lhe distraiu um pouco.
-Eu mudei de ideia, estou ficando cansada. -Respondeu depois de um momento, Marie lhe encarava com a testa franzida.
-Você está bem?
-Sim, eu só...
-Venha jogar comigo. -Marie mudou de assunto abruptamente, sua expressão lhe mandava sinais distintos. Como se ela quisesse que a maior ficasse, mas já sabendo que ela não o faria.
Joy enrugou o rosto, pensando em como poderia fugir daquela situação. Andava fugindo bastante naquela noite, mas ainda permanecia no mesmo lugar.
-Eu...
-Ok, pode ir. Perca mais uma oportunidade de se divertir.
A maior riu, ficando séria logo em seguida. Observou a outra enquanto começava a se afastar, e dobrou a cabeça para o lado. Não fora puxada novamente, mas foi interceptada pelos amigos ao chegar na sala. Primeiro os viu lhe encarar por um tempo, e então os viu sorrir.
Talvez conseguisse uma janela aberta...
-Não, não vai agora. –Mateus poderia ser bem divertido em geral, mas naquele momento Joy quis ele longe.
-Cara... –Ela tentou falar algo, mas se viu sendo arrastada mais uma vez.
-Nossa a sua cara... –Laís soprou quando a morena sentou ao seu lado.
-A única que tenho. –A resposta seca fez mais algumas pessoas da roda lhe olhar, mas a ruiva soprou um riso.
-Uau. –Ouviu alguém soltar, mas ela não quis ver quem. Preferia evitar mais julgamentos.
-Vamos jogar. –Joy escutou e observou ao redor. Só conhecia três pessoas na roda, Marie estava sentada do outro lado, seus olhos em si, Mateus ao seu lado direito e Laís em seu esquerdo. O resto da roda eram jovens de outras classes, mas sabia que eram do seu colégio.
-Hoje não é meu dia. –Ela sussurrou, e se sentou mais ereta no sofá, a expressão tensa. Mateus lhe olhou risonho e confuso.
-Não é com apostas. Nem é poker, você não vai precisar mentir. –Respondeu o rapaz, sendo acompanhado de um par de reações divertidas.
-Hum. –Os olhos de Joy continuaram no caminho estreito que a escada ao longe na sala possuía. Ela conseguiu ver o rapaz loiro descendo, os rosto sério, um copo pendurado em seus lábios enquanto ele digitava algo em seu celular.
Joy olhou ao redor, pensando por uma fração de segundos, como era covarde, mas pulou do meio do sofá mesmo assim e saiu correndo pela porta em poucos segundos. Ela quase respirou aliviada quando deu um relance para trás e viu o garoto loiro lhe seguindo.
-Ai meu Deus, como? –Ela sussurrou, voltando a olhar para frente, seu corpo comprimindo de ansiedade.
-Você ia me deixar lá plantado? –Escutou sem se virar, mas parou, respirando fundo.
-Talvez. –Ela murmurou.
-Como? –A voz dele saiu ansiosa, e com uma fragilidade que fez Joy se virar para encara-lo.
Ela franziu o rosto, a pontada de culpa lhe corroeu. Não conseguiu encara-lo por muito tempo e virou o rosto, coçando a garganta.
-Eu fiz algo errado. –O outro afirmou, querendo se aproximar, mas sentindo que não seria uma das melhores atitudes naquele momento.
A menor suspirou e fechou os olhos por um segundo, o encarando logo em seguida. Só conseguia balançar a cabeça para ele, ao observar suas expressões, ela não sabia o que dizer, como dizer, para não o machucar. Se sentiu brava consigo, pois não sabia o porquê de não querer machucar um estanho que não beijava bem.
-Eu preciso ir. –Ela disse voltando a se afastar.
-Espere. –A voz do outro foi baixa, mas a fez aguardar.
Ele andou depressa até si e segurou em seu antebraço, coberto por seu casaco. O jovem olhou para baixo e a observou de perto, as poucas marcas de espinhas marcavam perto das bochechas dela, e ele sorriu involuntário ao ver o sinal perto dos lábios dela.
-Senta aqui comigo um pouco? –Ele apontou para um canteiro onde haviam flores pequenas e brancas, um espaço de mármore suficiente para duas pessoas sentarem espremidas, como eles fizeram.
Joy sentiu a superfície gelar não só sua bunda como sua alma, as noites na cidade mais frias que o resto do dia, parecia um pouco com o deserto.
-Eu sei que você não é muito... Acostumada com estar no meio de muitas pessoas assim. –Ele foi falando enquanto a garota se ajeitava no acento improvisado, observando o jardim cheio de jovens.
-Sim... –Ela concordou quando percebeu estar sob a atenção dele, que sorriu para ela.
Ela franziu o as sobrancelhas, qual a graça?
-Você sempre teve essas marcas? –Ele perguntou, e Joy observou de perto enquanto ele apontava para alguns riscos em sua mão esquerda que estava apoiada em seu joelho.
Joy reparou com um pouco de irritação como ele era obvio em sua troca de assuntos.
Duvido que se importe de verdade.
-Não, ou sim. Bem, eu cai quando eu tinha uns 6 anos. Não meu lembro exatamente, mas minha mãe contou a história.
Ele esperou, ela não continuou.
-Qual é a história? –Ele apoiou o queixo no punho e cruzou as pernas para escutá-la.
-Eu cai. –Ela disse, observando o outro. Seus olhos claros lhe sorriam, uma sobrancelha se ergueu.
-Essa história é emocionante. Digna de uma heroína. –Joy se irritou consigo mais uma vez, pois riu com ele.
-Tá. Eu fui tentar pegar um pássaro. Parece que quando pequena eu era um pouco psicótica. Eu pensei estar vendo um pássaro azul e fui atrás dele, quando me viram eu estava já caída em um terreno em construção, molhado, e sem asfaltar. Acham que eu escorreguei e cortei minha mão, levei alguns pontos.
-Nossa. –Ele observou mais uma vez as cicatrizes, vendo em sua mente a história agora construída. –Quantos pontos?
-Uns cinco? –Ela soprou, movendo a pele mais clara em suas mãos com um dedo.
-Você teve mais algum machucado assim? –O rapaz ergueu os olhos para a face dela.
-Que eu lembre não. –Joy juntou as pálpebras, tentando recordar algo. –Você já?
-Ah, eu não. Eu era uma criança comportada. –Ele riu vendo-a cruzar os braços para ele, a face séria. –Brincadeira. Bem, eu já me machuquei sim, mas só no psicológico. –Viu quando Joy lhe encarou, para logo depois olhar para baixo.
Ela quis saber sobre o que ele estava falando, mas sentiu que ele poderia não querer falar.
-Quem não? –Respirou, puxando uma das flores do canteiro.
-Você... –Ela o olhou, esperando que continuasse, mas o viu virar o rosto rapidamente para algum ponto na rua.
Ao longe Joy viu uma discussão, e se perguntou o que estaria acontecendo, até que tudo virou uma confusão. Um rapaz pulou em cima de um garoto, lhe acertando um soco no rosto. Ela pulou da onde estava sentada, vendo que algumas pessoas vinham até o lado de fora para ver a situação.
-Eu conheço aquele casal. – Joy se virou ao ouvir a frase, vendo o rapaz tenso ao seu lado. –Vou chamar Marie, espere aqui.
E por um momento, ela pensou se seria capaz de separar a briga, mas sabia que não tinha tanta força ou coragem. Quando viu o casal indo embora, percebeu todos saindo de perto sussurrando sobre o ocorrido.
Marie surgiu em seguida, seu rosto preocupado, o celular no ouvido. Talvez já estivesse falando com as pessoas que saíram. E quando finalmente a percebeu paralisada no lugar, focou o olhar em Joy, sua expressão mudando pouco. A menina se perguntou o que poderia estar escrito em seu rosto, só soube que foi o suficiente para a outra se aproximar. Ainda falando ao telefone, chegou a se sentar onde Joy uma vez estava, e a puxou para que ficasse ao seu lado.
A mão dela permaneceu em suas costas, e a pele morna lhe deu um aconchego que ela não sabia que precisava. Mas até fazia sentido, estava tão acostumada a ficar em casa, a realidade daquele dia lhe atingiu quase tão forte quanto o soco que o rapaz havia deferido no outro menino que agora saiam da festa. Tudo aquilo ela so vira na internet, estar tão perto lhe assustou.
Agora ela só queria ir para casa, se deitar embaixo das cobertas e sentir o aconchego de sua bolha mais uma vez. Seu corpo doía, sua cabeça latejava e sentia um cansaço psicológico se erguendo em seu interior.
-Eu preciso ir. -Ela disse baixinho. A outra ainda falava algo no telefone, mas pareceu prestar atenção em si.
Na realidade Marie estava atenta a todos os seus movimentos, sua mão ainda lhe dava suporte. E quando escutou o que ela disse, voltou a lhe afagar. Joy não se mexeu porém, muito menos para ir embora como para se esquivar da caricia. Não estava incomodada.
Ela queria pedir que Marie lhe acompanhasse, de repente bastante amedrontada. Queria evitar qualquer fantasma que a noite poderia trazer, e sabia que sozinha seria muito pior. Só que por algum motivo, por mais que não fosse algo tão difícil de fazer, ela se impediu de pedir aquilo para Marie.
A outra desligou o telefone em algum momento, e aproximou seu rosto o suficiente para ver os olhos da mais velha. Já que ela tinha mantido a cabeça baixa em todo aquele tempo. Queria saber o que ela poderia estar pensando, já que o choque era claro.
Marie se sentiu péssima e lhe deu um aperto em suas mãos frias, até sentir ela retribuir. Ela pareceu voltar a realidade quando teve seu nome chamado, e lhe encarou de volta. Seus olhos estavam cansados, mas parecia estar na realidade naquele momento. Marie se levantou.
-Eu vou com você até sua casa.
Joy respirou aliviada.
Comments (0)
See all