— Hrrr-dr-dr-dr-dr-rrr...
Em meio ao breu do interior da fortaleza flutuante, uma passagem se faz, pela qual o anulador entra freneticamente, quase colidindo em um Stray, um de seus braços e seu tronco a mostrar falhas visuais brilhantes, as quais se desfazem em fumaça de estática.
Cambaleando a longo da nave, alguns dos poucos brigões presentes o acompanham com o olhar, curiosos da situação.
Chegando ao cômodo dos pilares, a entidade ativa um destes, mas para sua própria entrada na câmara.
— KSHRL-RL-Rl-rl-rrl...
Mergulhando ao líquido, os danos em seu corpo borbulham, amenizando.
— Tkra-sss!
Alguns minutos depois, o módulo se abre, dando saída a entidade, os danos sofridos agora não passando de rachaduras preenchidas por matéria brilhante em sua forma.
Ainda instável, o anulador se apoia nos painéis para se recompor, olhando ao redor.
Ao fundo do corredor onde estava, havia um grande painel, através do qual a parte frontal da nave era visível a fora, através de sua massa.
Contornando ao centro do espaço vazio e silencioso, um pedestal, onde um pequeno objeto flutuava, um pequeno cartão grosso, feito do mesmo material que os anuladores.
Se aproximando, a entidade leva suas mãos ao objeto, cuidadosamente o pegando e analisando com seus sensores.
Aproximando-o do painel de seu próprio, o encaixou ao meio de sua testa, e ao soltá-lo de suas mãos, várias linhas e pontos brilhantes surgem ao longo de seu corpo.
Também surgindo através das várias superfícies da fortaleza, e até de outros anuladores do grande salão.
A vista da frente da nave, qual antes era apenas um mirante, agora repleta de pontos brilhantes a piscar.
Com um mero gesto de suas mãos, o zepelim lentamente altera sua orientação, começando a se movimentar e avançando através dos céus, rumo a uma tempestade, em meio ao fim do anoitecer.
Caminhando em pleno dia, ao longo do asfalto sem começo nem fim, Nil surgia a partir de uma curva por dentre as colinas, seu passo sendo recebido por uma grande placa levemente danificada, a qual emoldurava a estrada em diante:
— Bem vindos a Satilha: Cidad dus Rons Presságios / 200 000 G a g antes
Ao passar pelo arco de entrada, encontrava a presença de um habitante, o qual, vagava sem pressa ou medo ao longo do pavimento amplo, fora da faixa de pedestres.
Sua pele também era incolor, e conforme Nil chegava mais perto, notava que não era a distância entre eles que borrava o rosto do cidadão, mas sim a completa falta de um rosto por inteiro, em seu lugar, apenas um cubo, de textura mais metálica que a pele sem cor.
O ruído dos passos dela chama a atenção do andarilho, que caminha em sua direção com sutil pressa.
Ao se aproximar, porém, a figura desfigurada apenas a encara, subitamente perdendo o interesse e voltando a vagar ao redor inertemente.
— ... Hruh. — Grunhiu a cinzenta.
Prosseguindo ao longo do asfalto, logo deparou-se com cada vez mais Gagantes a passear junto de Nil, mesmo ainda sem um destino, nem remetência.
No leve guiar de uma última curva, encontrava a vista de uma ampla cidade, qual transmitia a ideia de ser gigante para um morador fã da zona rural, embora vista como minúscula para o cidadão médio metropolitano.
Desde a chegada, percebia-se que parte das moradias nas extremidades do município foram arruinadas ou destruídas, para dar o contorno adequado de um perímetro quadrado, no qual uma muralha fora erguida, fechando toda a cidade.
Os edifícios pareciam ter sido derretidos para erguer as paredes, como um prédio sem limite em largura e construído várias vezes por cima.
— Brrrr...
Aos pés, ela sente uma vibração, e o ruído crescente de algo a se aproximar do mesmo sentido de onde Nil veio.
Feixes de luz surgindo a partir das placas na curva na estrada alertam a cinzenta, que zarpa ao largo da rodovia para chegar a vegetação que a contornava, se escondendo por dentre alguns arbustos.
Pensamento crítico ausente nos Gagantes também presentes, muitos dos quais foram facilmente atropelados pelo grupo de veículos pesados que surgiam a viajar em direção a cidade.
Adentro de um dos blindados, a luz do sol criava feixes adentro do veículo, os quais refletiam ao longo da imagem de Lídia, e de vários soldados que a cercavam, a irritava até acordar.
— Bom dia, flor-do-dia! — Dizia uma voz aguda e melosa, abafada por tecido. — Estamos quase chegando.
Levou as mãos aos olhos para tirar a remela, pasmando ao sentir um de seus pulsos travado pelas presas de uma algema decorada com um tecido felpudo.
— Eugh-
Ela olha sua nova pulseira com o desgosto de uma laranja podre, e ligeiramente olhando as figuras que a cercava, apertou os lábios.
No uniforme de dois deles, conseguia ler remendos os quais levavam seus nomes: Desvo e Emeralda.
— Ah, perdão pela algema estranha. — Disse outro dos soldados. — Perdemos a única adequada que tínhamos.
Haviam várias feridas e rasuras em sua pele, a roupa estava surrada e cheia de manchas e sujeira, o estômago rangendo de fome, e grande parte de seu corpo quase entrando em combustão espontânea de tanto calor.
Apesar de tudo isso, o maior desconforto vinha da sensação de algo morno a escorrer.
— Tinha que ser justo agora?
Ela sussurra, com uma voz ríspida e desidratada.
Uma sirene canta sua melodia pontiaguda, aumentando na medida que o blindado para, e o arrasto de portões reverbera a longo da cabine.
Além do barulho de folhas a cair, e objetos cristalinos pesados a debater.
Logo prosseguindo novamente, o som da sirene se esvaiu no mesmo arrasto que chegou.
Através de uma de várias fissuras, Lídia conseguia enxergar afora do veículo.
Nas dependências contornadas pela muralha, ainda próximas da borda, restava apenas a casca de uma comunidade.
Centenas de prédios vazios, vários dos quais caindo aos pedaços ou já em ruínas.
Ainda a perseguir o carro forte, alguns Gagantes, os quais são detidos por soldados com correntes e atravessados com lanças, desfazendo-os em pó.
— Dibes! — Alguém de fora grita.
— Bang!
Um disparo é feito.
A cada quarteirão que passavam, encontravam esquinas quase trancadas de barreiras, e guardas a passear ao longo das calçadas, alguns parando para olhar o veículo em passagem.
Pouco a pouco, encontrava construções cada vez mais deterioradas, e das fissuras no concreto que antes carpetava o chão, brotava uma densa vegetação.
Como um quintal esquecido por todo um século, várias plantas comuns e árvores fruteiras agora partilhando espaço.
A cidade logo ressurgindo adentro do jardim, construções coloridas, e em perfeito estado, suas bases cobertas em canteiros e paredes com trabalhos em grafite.
Para cada soldado que agora passavam, havia também meia dúzia de civis a conversar, levar e trazer materiais, ou cuidando do bosque ao redor.
Reduzindo a velocidade assim que o cercado do quintal de um templo surge, o blindado para ao alinhar com uma trilha de pedras que levava até a entrada da construção.
Abrindo as portas do carro-forte, quase todos os soldados saíram, sobrando apenas aqueles que ela conseguiu ler o nome.
Desvo destrava a algema de Lídia, e lhe segura a acompanhar para saírem do veículo, a luz do dia lhe mostrando um rastro rubro a percorrer ao longo de uma das canelas da garota.
— Ou! Ela está sangrando.
Sequer a deixaram tocar os pés ao chão, ambos segurando Lídia pelos ombros.
— Então acelera aí, molengão! — Emeralda apressou.
— Uurgh.
Lídia grunhiu, fechando os olhos, coincidentemente na hora que outro soldado lhe apontou um rifle.
— Pronto?
— Pronto!
Ela sente seu corpo ser surrado por água fria e áspera, lhe enxaguando da cabeça aos pés, banho que durou por um ou dois minutos, até se livrar do sangue, e da consciência.
As portas já abertas emolduravam com o carpete, uma escultura de Iuven, a qual se encontrava adentro do templo em breu, iluminada em si e ao redor pela luz de dezenas de velas sobre um altar de pedra, e por pequenas janelas circulares ao topo das paredes.
Levando ao busto de uma figura de braços grossos e cabelo volumoso com duas partes amarradas, e uma franja, qual cobria um dos olhos, os quais estavam fechados. Tendo a pose abaixada pelo peso da moldura de um globo o qual carregava nas costas.
A maior parte dos espaços laterais tomada por espaços divididos por cortinas erguidas em suportes metálicos, com caixas e baús, a carregar variados suprimentos, como armas, alimentos, e equipamentos de pronto-socorro pelos cantos. Surrealmente, haviam camas sobrando.
Seus olhos se abriram apenas ao cair da noite, ainda podia ouvir vozes a conversar afora de seu quartinho, a paróquia sendo iluminada apenas por velas, e um fraco brilho da lua crescente.
— Uau! Parabéns, meus queridos!
No minuto seguinte, uma figura em roupas brancas entra, olhando os soldados, ela deixa uma mochila pendurada atrás da porta.
— Balearam mais um civil e aí trazem aqui como se a gente fizesse isso por pura paixão.
Completou, balançando a cabeça enquanto abria alguns baús e pegava objetos metálicos e pontudos.
Lídia sentia um arrepio lhe descer a espinha.
— Ela não foi baleada.
— Oh?
Olhava os dois, e então a menina, franzindo o cenho.
— Pelo menos, a gente imagina que não.
— ... Tá, certo, caiam fora.
Os empurrou, com níveis cada vez mais elevados de força até os soldados saírem da sala. Quando conseguiu os expulsar, pegou algo da mochila, e caminhou até a garota.
— Fique bem deitada, e de preferência, não tire os olhos do teto.
A figura fica nos cantos da visão da arqueira, e coloca “o algo” sobre a mesa: uma maleta, e depois de dois estalos, a abriu, acessando um conjunto de objetos, o primeiro deles sendo um par de luvas.
— Então... Lídia, né? — Ela olha algo ao lado da cama. — Muito prazer, me chamo Farpas, não sou doutora.
Um fluído frio e de cheiro levemente salgado é derramado nas feridas da garota.
— Hss!
Ardia como uma escova de aço esfregada por baixo da pele, mas eventualmente, a dor derretia em um borbulho.
— Seja lá o que você aprontou, deu a sorte de só se arranhar. Me avise se algo doer.
— ... — Lídia pressiona os lábios.
Aos olhos da arqueira, e seguindo o pedido de Farpas, Lídia não conseguia enxergar o que ela estava fazendo, mas sabia que envolvia coisas como algodão, soro, fitas, cordas, um pedaço de madeira, um livro e algumas colheres de bicarbonato de sódio.
— Diz aí, de que buraco tiraram você?
A figura pergunta, enquanto caminhava ao redor da cama para acessar outro ferimento.
— Linha Castan- Hsss! — A arqueira tenciona os braços. — É aqui perto.
Farpas pausa por um instante, olhando para o meio do nada.
— Na Alvorada?
— Todo mundo fica falando disso... Nem faço ideia do que seja.
A não-doutora dá de ombros, e resume sua tarefa, retirando uma bisnaga da maleta.
— Bem, essas são minhocas pra se olhar os dentes outra hora.
Derramava uma espécie de pomada sobre os dedos, e passando-os sobre algumas regiões dos braços da garota.
— Enfim, vista seu uniforme.
Disse Farpas, pegando uma mochila e a jogando para a garota.
— O Bicho Véio logo estará vindo te ver.
Removendo as luvas, descartou-as numa lixeira, na qual haviam as roupas de Lídia, ainda úmidas e manchadas. Saindo através de uma das cortinas.
Abrindo a mochila, Lídia encontrava um uniforme verde-oliva, um par de botas, além de outras sacolas de tecido, e um pacote com absorventes de pano.
Cobriu-se com o manto que havia na cama, e foi até a cortina espiar.
Encontrando a fora dos quartos, ninguém, e nada além um pedestal vazio, cercado por um altar com velas acesas.
Ao terminar de se vestir, Lídia suspira o estresse a fora, e retira o manto.
— É tão mais... Leve.
Tinha o mesmo formato que o uniforme dos soldados, com a exceção de não ter uma estampa camuflada, que a distinguia.
— Pera, cadê a estátua?
Ela olha para os ornamentos, percebendo a falta.
A figura
esculpida de Iuven ressurgindo a abrir a cortina, a vestir um largo casaco por cima dos ombros, adentrando o espaço da arqueira.
— Sabes quem sou. — Ele dizia.
Um brilho surgia ao longo do corpo da escultura, com a textura de carvão a queimar, saturava sua imagem, lhe dando os diversos tons de verde qual possuía.
— Mas embora me chamem de Bicho Véio, meu nome é Ganymedes.
Como um calendário no fim das férias, a expressão de Lídia salta de recém encontrar um animal pequeno e bonitinho, para a de ser aproximado por um oferecedor de empréstimos na rua.
— O que você quer? — Ela interroga em um tom áspero.
Ganymedes ergue a sobrancelha por um instante, e abre um sorriso, estendendo o palmo a Lídia por um instante.
— Sua ajuda.
Estática, apenas os olhos de Lídia se movem, investigando o gesto e rosto da figura, até ela apenas soltar um leve sorriso.
— Heh, me impressiona estar tendo cortesia de pedir agora.
Cruzava os braços, erguendo o rosto.
— Enquanto suas tropas estão a zanzar por aí, tomando recursos.
— Oh, sério? — Ganymedes recua, olhando para as velas. — Isso é, um problema, pra falar a verdade.
— Bem, qual a sua desculpa? — A caçadora se empurrou. — Vai dizer que é um "mal necessário"?
Ele ergue o olhar das velas, vendo o reflexo de seus brilhos na escultura metálica, antes de se virar e encarar Lídia mais uma vez.
— Foi necessário matar um dos meus soldados a sangue frio?
Flutuando, se aproximou, o suficiente para sua imagem ficar comicamente distorcida diante dos olhos da arqueira.
— E quanto aos outros dois mortos pelos Prateados?
A voz dele reverbera ao longo do templo.
Sentando na borda da cama, Lídia arruma o encalço das botas, firmando os cadarços e as mãos para
estalar as articulações dos dedos.
— Fizemos isso para sobreviver.
Ela responde, olhando ao chão a frente.
— Correto!
Ele se afasta, voltando para as cortinas, estendendo o palmo para ela.
— Sei que está com um dos meus irmãos. — Ganymedes olha para as roupas na lixeira. — O vermelhinho.
Ela solta e arruma os bolsos do uniforme. Os dedos da garota enrijecendo, mas ela resistia a fechar os punhos.
Enquanto isso, Ganymedes alcançava um dos baús, pegando uma espécie de revólver, o mexericando, destravando o tambor e vendo suas câmaras vazias.
— Quero que o deixe aqui em Satilha, e em troca, nunca mais terão que lidar com Anuladores.
Girava o tambor e o estalava de volta adentro da arma, puxando o martelo até a trava, e apontando para o chão, antes de puxar o gatilho.
— Clic!
O cão batia os dentes, e ele voltava a olhar a garota, largando o revólver de volta no baú.
— Então,
o que me diz?
Lídia puxa o ar, o retendo, e levanta da cama, mantendo os braços firmes, levando o olhar lentamente através da sala, observando os baús, a lixeira, as cortinas, o altar, e no meio disso, uma lembrança de um dia claro e águas turvas demais, até chegar em Ganymedes, exalando.
— Não.
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