CAPÍTULO DOIS: Nirvana
No dia 18 de março de 1936, mergulhado num mar de desgraça, comecei a relembrar de tal momento, sem ter a certeza do que era ou não era verdade, sonho ou não, visualizei a imagem que me marcou pelos próximos dois anos, a minha avó morta em minha frente com um tiro de rifle de infantaria de um soldado, uma morte rápida e injusta para a mulher que me tirou de uma catástrofe e me criou como filho, e desde aquele dia, não me lembro mais de seu nome.
Despertei num baque, a consciência retomou-se com intensidade, embaçando a vista, e o ar quente da cidade misturado à poeira entrou rasgando, me levantei, sentado num susto e comecei a tossir, até que a situação se normalizasse.
-Que susto! Você acordou, olha só! - Ouvi, eu estava no meu quarto, as luzes estavam apagadas e estava tudo escuro, voltei-me lentamente para o lado e vi um homem familiar, tinha pele escura e lisa, da cor do bronze e seu cabelo crespo em formato de espinhos se estendia como uma labareda, seus olhos eram pequenos e finos enquanto seu nariz se fazia em um formato de sino. - Sou eu, te salvei na noite passada, não se lembra? - A memórias rapidamente começaram a se acomodar em minha mente e comecei a me lembrar dos eventos que me trouxeram até aquele ponto. Olhei em volta e percebi, que eu estava enfaixado, com ataduras cobrindo toda a região do meu quadril, o lençol estava ensanguentado e um balde ao canto do quarto tinha um pano tingido num tom de vermelho vinho (é sangue). As memórias que tomaram conta da minha cabeça fizeram eu ter um nó na garganta e sentir as lágrimas se aproximarem, mas tentei evitar.
- Você não tem língua não? - Disse aquele homem com um ar de dúvida, não me pareceu uma pergunta irônica.
-Tenho sim. Tenho. - Respondi.
-Olha, toma muito cuidado, um tiro acertou você bem no coxis, foi tão forte que suas pernas perderam o movimento, não tenho certeza se vão voltar e não temos dinheiro para ir ao médico, consegui tirar a bala e estancar o sangramento. - Logo, jogou a munição na minha direção suavemente, estava amassada e ensanguentada. - Guarda de recordação. Seu irmão foi buscar uma cadeira de rodas pra você no ferro velho.
Ouvi o ferro velho ser citado e lembrei-me do disco que encontrei, senti a ansiedade engolir meu coração em um instante, até que o percebi ao meu lado na cama - Pensei que Lucca teria o levado junto para vender no ferro velho. Mas estava lá.
-Ah. - Ditei, a ficha ainda não caiu sobre os eventos da noite passada, estar sendo perseguido pela máfia e ter se tornado paraplégico não é uma das coisas mais agradáveis.
-Esse disco de ferro parecia importante pra você então segurei e não deixei que seu irmão levasse para vender. De qualquer forma, meu nome é Aren Bomani. Mas o pessoal aqui na cidade me chama de Café e minha vózinha me chamava de Chico.
-Você foi criado pela sua avó também? - Perguntei, sem me preocupar se estava parecendo ou não indelicado.
-Sim, você foi?
-Fui.
-Legal, a minha avó que me encorajou no meu sonho de lutador, mas infelizmente, estou incapaz de voltar aos ringues, não tenho mais uma carreira para construir, eu perdi tudo que construí nos últimos cinco anos. - inclinou-se para trás na cadeira de rodinhas e rodou até o outro lado do quarto.
-O que aconteceu?
-Eu era um lutador acima da média, sempre me dava bem seja nos ringues ou na luta de rua, mas na minha última luta de rua, fui completamente derrotado por um pugilista chamado Dante, fui parar na UTI e enquanto estava internado, meus empresários tiraram de mim tudo que eu tinha, dinheiro, carros, bens… Eu fiquei sem nada e vim parar aqui, nesse bairro.
-Você fala com tanta naturalidade. Não está com raiva?
-Não. Faz parte da minha filosofia de vida suprimir as emoções e se manter em harmonia com o interior, “tá ligado”?
O silêncio permeia o local por uns instantes, pensei em abrir a boca para perguntar algo, mas as palavras não saíam, ele ter sido roubado e eu ser justamente um ladrão me fazia ter vergonha.
-Estou feliz de ter te salvado. Você é boa pessoa. - Disse ele, pareceu ter ouvido meus pensamentos e me fez ouvir exatamente o que eu gostaria de ter ouvido.
- Eu jamais ficaria tão triste se visse alguém jovem como você ser agraciado pelos braços da morte. - Complementou, mas não entendi direito.
-O que quer dizer com isso?
-A morte é boa, o nascimento é ruim. Quis dizer que no seu caso, uma morte de alguém jovem, e daquela forma seria triste pra mim, que festejei o funeral de meus familiares. É uma parada cultural, mas também fala muito sobre mim.
-Você é religioso? - Perguntei.
-Sou, eu sou budista. - Respondeu, me pareceu interessante. -Eu vou te mandar a real, o budismo é uma religião, mas também é filosofia de vida. Para nós, budistas, pagamos pelos nossos erros aqui na Terra, o lugar onde sofremos é aqui, não temos um inferno, nem um céu, tudo que fazemos volta pra gente aqui mesmo seja ruim ou bom, é o que chamamos de karma. Por isso que para o budismo o nascimento representa algo ruim, pois é a entrada para um novo ciclo de dores e tristezas. E isso tudo não é comandado por algum deus, aliás, nem temos deuses. Ao limparmos nós mesmos de toda emoção explosiva e indesejada e desejos da carne, atingimos um nível espiritual tão alto que nos encontramos na verdadeira felicidade e simplicidade da natureza. É o que chamamos de Nirvana, é o que queremos alcançar. Faça por si mesmo e encontre a verdadeira felicidade.
Aquilo conversava comigo, fazia sentido para mim, diferente das crenças populares, superstições ou religiões, que ao meu ver sempre foram buscas no metafísico para o entendimento do mundo e formas de se sentir melhor perante a dolorosa realidade, é o convívio com falsas percepções. A falta do temor à alguma divindade, o contato com a natureza e suas forças, e o poder de escolha, me fizeram despertar um interesse nessa filosofia, pensei até mesmo em passar a me apresentar como tal um budista, propriamente dito.
-Você tá vivo Dai! - Estava com suor pingando no rosto, a corta vento encharcada e a cadeira de rodas em mãos, feita de um metal cromado, Lucca voltou. - As suas pernas voltaram?
-Não, o jeito é eu usar a cadeira mesmo.
-Puta que pariu, que merda, que caralho, como você vai roubar agora? Se os trabalhos não aceitam nem mesmo pessoas em plena condição, imagine só um cadeirante!
-Acalme-se, vamos dar um jeito isso vai passar - Sempre tive uma aura de otimismo para com as pessoas, tentando dar esperança de melhora em meio ao pessimismo infernal do cotidiano. - Pra começo de conversa, me coloca na cadeira eu quero buscar uma água. - De prontidão, Café se levantou e me pegou no colo e logo me colocou na cadeira, é desconfortável e o assento é um pano estendido, o mesmo serve para o apoio das costas
-É ruim? - Perguntou Café.
-Ruim uma porra, é terrível. - Tentava cruzar minhas pernas ou até balança-las no ar, mas não conseguia, de fato, estou paraplégico.
-Vou limpar o banheiro que você iria limpar no meu lugar. - Disse Lucca, ele parece desesperado e ansioso com a situação, mais preocupado que eu mesmo.
-Eu me disponho a voltar à luta de rua para substituir a renda que o Dai fazia. - Ditou Café, uma mensagem que pareceu acolhedora, mas me deixou um tanto desconfortável, ainda que eu deva minha vida à ele, nos conhecemos há poucas horas.
Agarrei os finos ferros que se estendiam do miolo da roda à borda, é frio e resistente, e os empurrei, propulsionando a cadeira pra frente, é estranho e difícil de controlar, mas acho que vou me acostumar, o corredor estreito do apartamento é um empecilho a se considerar no processo. Deslizei pelo chão de madeira até alcançar o azulejo da cozinha, estendi o braço até alcançar a caneca de cerâmica sobre o balcão, e logo me virei, nosso galão de água fica no chão e tem uma bomba de ar no lugar da tampa, se apertar o botão em cima, um pouco de água sai, é preciso bombear o ar várias vezes se quiser tirar um copo cheio. E assim o fiz, apertei, apertei e apertei até que a caneca estivesse cheia e com cuidado selei a borda do copo nos meus lábios e bebi um pouco, estou tremendo, não digeri toda essa informação, me inclinei e apoiei meus cotovelos sobre minhas pernas, agora falhas, fechei meus olhos respirei fundo, tentando me acalmar.
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