Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
As memórias ainda liquefeitas faziam tremeluzir o ambiente. Observamos quando duas figuras risonhas entraram no quarto, uma apoiando-se na outra, mas, em verdade, parecia que ambas precisavam de ajuda para se manter de pé.
— Vinho? — indagou Margot, curiosa.
— Pavillon Rouge, du Château Margaux — comentei. Margot arregalou os olhos.
— C'est incroyable¹! Quem é a jovem que lhe proporcionou essa experiência tão única?
Dei um sorriso orgulhoso.
— Agatha Gomes. Naquela época, o vinho havia sido colhido apenas há uma década. Aproveitamos a juventude do vinho e seu barateamento para tomarmos algumas taças... — Ao dizer isso, meu eu-do-passado tropeçou no batente da cama e caiu igual uma boneca de pano entre os lençóis já bagunçados. — ... bem, talvez tenham sido muitas taças.
Gomes riu de mim. Ela estava vestida exatamente como me lembrava ou, talvez, aquelas memórias liquefeitas estivessem apenas reproduzindo o que eu me lembrava. Diferente do que costumava usar em Belém, considerando o clima tropical, Gomes vestia um agasalho marrom por cima da camisa branca de botões. Seus utensílios, como lupas, mapas, cadernetas de anotação e outras bugigangas, estavam entre seus bolsos internos; lembro-me de ter metido a mão uma ou duas vezes procurando por eles enquanto investigávamos os fantasmas Durant.
Ela estava de cabelos soltos e um pouco revoltosos, uma forma de avisar ao mundo que estava finalmente relaxando depois de uma semana inteira de investigação envolvendo uma viagem longa em um dos primeiros modelos de zepelim.
Havíamos passado o dia juntas, comemorando a madrugada não dormida após descobrirmos os grilhões que prendiam o fantasma do barco e o amor de sua vida, Alice Durant, ainda submissa à própria família. Foram dois dias burocráticos para convencer a população e as autoridades políticas locais de que a família Durant e a igreja estavam por detrás dos sacrifícios silenciosos que faziam parte de uma magia proibida, usada para eternizar sua riqueza e dominação local. O fantasma do pobre seminarista apaixonado despediu-se de sua amada, ainda viva, no cais daquela noite. Ao contrário do que esperávamos, Alice agradeceu-nos pela resolução do caso e por libertar seu amado, permitindo que alcançássemos o mundo todo em termos de popularidade, ultrapassando até mesmo uma dupla britânica de investigadores que Gomes descobrira em nossa viagem até a França.
— Fizemos questão que nossos nomes fossem levados para os jornais de Londres — comentei com Margot, rindo da maneira como Gomes encenava para meu eu-do-passado, as expressões assustadas do Sr. Durant ao ser descoberto. — Queríamos que duas mulheres do Norte do Brasil tivessem seu momento de fama em detrimento de uma dupla de investigadores sobrenaturais britânicos.
— Vocês vieram antes deles aqui? — indagou Margot. — Curioso que tenham optado por trazer vocês do outro lado do mundo.
— Tinham certeza de que Gomes não conseguiria resolver o caso dos Durant, por isso o padre nos chamou. — Dei um sorriso presunçoso. — Mas afirmo: ela não deve nada ao tal de Sherlock Holmes.
— Ouvi dizer que o parceiro dele, Dr. Watson, é bem cortejado.
— Ele é casado, atualmente.
— Eu jurava que Watson e Holmes tinham uma relação mais que fraternal. É comum que duplas acabem confundindo a parceria e a cumplicidade com algo mais... — Ela me encarou como se lesse através de mim, e depois desconversou: — Lembro-me bem das duas nos jornais de Belém. Quase convenci meu marido a recebê-las em nosso palacete, mas Frederico também tinha seus podres, e para ele seria um desprazer recepcionar investigadores.
— E aqui estamos, na casa de vocês... Bem, estamos e "não estamos". — Suspirei, exausta. — Lidar com assuntos pós-vida é sempre tão confuso.
Rimos da ironia antes de voltarmos nossa atenção para Gomes, que finalmente havia acabado com sua atuação pífia e tirava o casaco para se jogar na única cama do quarto. Lembro-me de senti-la afundar ao meu lado e de encará-la com uma adoração desmedida, que talvez tivesse sido disfarçada com mais facilidade sem o consumo de tantas taças de vinho.
Apesar das grandes proporções do caso, a remuneração serviu apenas para desfrutarmos de alguns dias nos melhores restaurantes e passeios de Sarreguemines. Optamos por deixar parte dos honorários para alguma outra viagem que pudéssemos fazer pelo Brasil e economizamos na hospedagem ao ficarmos na Mansão Durant, que ainda estava sob investigação da polícia nacional.
O dilema para escolher quem dormiria na cama foi tão brevemente solucionado por Gomes, não passando de um martírio de somente uma noite. Ela não se importava em deitar-se ao meu lado, embora eu mesma não conseguisse dormir direito com sua respiração quente e seu ressonar tão próximos de mim. Só pregava os olhos quando o cansaço me alcançava. Naquela noite, no entanto, a última que viveríamos em Sarreguemines, eu sentia tudo menos sono.
Gomes percebeu como eu a encarava e franziu o cenho:
— Está bem, Louise? Não me diga que as verduras salpicadas de azeite estavam contaminadas. — Revirei os olhos com sua conclusão. — Posso produzir um antídoto caso esteja indisposta.
Dei-lhe um tapa no ombro, arrancando-lhe um riso.
— Estou com uma aparência tão lamentável assim?
— Louise Doyle, não há nenhum momento em que esteja com uma aparência menos que agradável. — Gomes pôs um dedo em riste. — A não ser quando precisa tomar andiroba.
Fiz uma careta com a mera lembrança do gosto amargo do medicamento natural que minha avó produzia. Gomes riu enquanto eu me erguia para estapeá-la, meu tronco quase todo em cima dela, que tentava segurar meus pulsos.
— Obrigada, agora estou com gosto amargo na boca.
— Posso ajudá-la com isso!
Meu estômago revirou, e antes que eu pudesse sequer cogitar dizer "sim", Gomes colocou algo em minha boca. Tossi, engasgando-me com seja lá o que fosse aquilo, mas imediatamente sendo agraciada por um sabor agridoce.
— Colhi essas uvas em um de nossos passeios... — Ela tirou outras do bolso do casaco. — Sei que você gosta.
— Sim, claro — grunhi. O que exatamente eu estava esperando, afinal?
Margot virou-se para mim sussurrando:
— Sua queridíssima padece de "pomba lesice".
— Não se atreva a falar mal de Gomes. — Sustentei o olhar da fantasma por alguns segundos antes de voltar a focar na cena à minha frente, tentando não deixar minhas emoções me enervarem mais ainda.
— Louise? Está bem? — Gomes tocou-me no ombro esquerdo. — As uvas estão azedas demais? Que curioso, as que provei estavam excelentes.
— Estão ótimas. — Dei-lhe um sorriso sincero. — Apenas fiquei um pouco tonta...
E era verdade. Não estava acostumada a beber mais de uma taça de vinho, nem em eventos de família. Minha mãe sempre me moldou nesse sentido: nenhuma dama de respeito deveria tomar mais de duas taças por noite em uma festa. Era curioso porque, sempre que tínhamos esses eventos, eu encontrava maman tomando o restante da garrafa de vinho com minhas tias depois que as festas sociais acabavam, mas talvez seus ensinamentos fossem direcionados somente às solteiras.
O quarto de repente ficou silencioso, e lembro-me de pensar que, se não fossem suas mastigações nada discretas, acharia que Gomes estivesse dormindo. Sobre o ombro, dei uma olhada em seu semblante concentrado nas uvas que comia.
— Essas aventuras contigo são formidáveis! — disse eu. Gomes encarou-me, a mão com uma uvinha a caminho da boca. Ela riu.
— Louise, sua voz está embargada.
Revirei os olhos. Era verdade, estava embargada, mas não pelo vinho. Por algum motivo, naquele momento, estar ali com ela, desfrutando de uma conquista conjunta, havia me emocionado em demasia. Queria que todos os dias fossem como aquele, não com um caso confuso e perigoso a ser resolvido, mas apenas eu e Gomes, vivendo, colecionando experiências. O resto era só um meio que nos levava a isso.
— Louise — ela me chamou, e eu, tanto no passado quanto no futuro, estremeci. Sim, porque, afinal, até a Louise de 22 anos sabia que a maneira como seu nome fora dito denotava mais do que qualquer outra vez em que ele foi pronunciado pelos lábios de Gomes. Havia algo ali, e eu, por instinto, contrariando toda minha racionalidade científica, sabia que existia uma linha invisível que separaria minha vida dali em diante.
Então, com toda coragem que o êxtase da vitória e a autoconfiança de uma missão bem resolvida me forneciam, encarei Gomes. Ela estava séria, quieta e me observava, não com a maneira de sempre, aquela com que via sem realmente ver por estar pensando demais. Ela realmente parecia me enxergar ali. Ajeitou-se na cama para que ficássemos uma de frente para a outra.
— Lembra de quando estávamos no ginásio, em véspera de escolhermos qual curso faríamos dali em diante? — indagou-me, e eu assenti. — Foi na mesma época em que descobri uma fórmula matemática capaz de impulsionar a aerodinâmica de um zepelim, ainda que a níveis muito menores em termos de gastos de energia para uma máquina pequena.
Tentei não revirar os olhos tamanha vontade de rir que sentia naquele momento.
— Sim, lembro-me.
— Lembra que eu fiquei tão em êxtase que invadi a nossa sala de aula, a puxei da carteira no meio de uma prova de biologia e te mostrei a fórmula na sala de artes?
— Sim, inclusive, até hoje, aquela nota baixa por ter largado a prova no meio mancha meu currículo...
— O êxtase que eu senti ao encontrar aquela fórmula é muito semelhante ao que sinto quando estamos juntas.
Parei minha frase no meio, gaguejando uma ou duas sílabas, e de repente senti a garganta seca.
— Hm.
— É interessante como nossos organismos reagem aos maiores prazeres da vida — disse ela, com certo entusiasmo dosado com seriedade. — Estar contigo, Louise, é como se eu fosse uma arqueóloga que descobre um tesouro inexplorado, ou como se eu fosse uma oceanógrafa que encontra, nos confins abissais do mar aberto, uma nova espécie marítima! Como se eu fosse uma médica que conseguisse chegar a um remédio capaz de curar o incurável! Ou como quando eu tinha três anos de idade, lembro-me bem! Foi no meu aniversário que finalmente entendi a diferença entre somar e multiplicar, porque, afinal, eram grandezas que sempre resultavam em mais e mais...
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¹ "Que incrível!" (tradução livre).
[Continua na Parte 2]
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