É domingo e as duas garotas combinaram de se encontrar depois do almoço dessa vez. Tayná está terminando de escovar os dentes, ela almoçou tarde porque a mãe voltou tarde da igreja e acabou demorando para fazer o almoço, então está quase na hora de encontrar Alice.
Tayná parou na frente do espelho segurando duas roupas em dúvida de qual vestir, ela está ansiosa, as garotas se encontraram por pouco tempo no sábado por causa do atraso de Alice.
No fim das contas, Tayná decidiu pelo top rosa com estampa de gatinho branco e mangas compridas, a blusa arrastão por baixo, uma calça jeans cinza mais colada e o habitual coturno preto. Depois de se vestir, ela viu que demorou tempo demais para decidir, ela vai chegar atrasada, então ela pegou Sol logo e colocou a guia nele, depois pegou a bicicleta pra ir mais rápido.
Tayná chegou no banco que elas sempre se encontram, e Alice está ali sentada com um vestido preto todo florido, parecendo uma pessoa dos anos setenta, e também está com um arquinho florido que mantém todo o cabelo dela para trás revelando os brincos de rosas vermelhas. Ela está com fone de ouvido e olhando para o celular, então não percebeu Tayná se aproximando e ficou uma cena de Tayná a olhando esperando que ela percebesse.
Depois de uns cinco minutos, Alice olhou para cima e viu Tayná que acenou para ela.
— Por que você não me disse que chegou?
— Você parecia muito concentrada no que está vendo. O que é?
— Eu só estava escutando uma série de áudios da minha mãe falando sobre como eu teria uma vida melhor com ela do que com meu pai, ela mandou vídeo de filhas de colega de trabalho e coisas assim para me convencer.
— E te convenceu?
— Não tenho interesse em garotas sem conteúdo e minha mãe não me chama pelo meu nome.
— Entendi. Como assim não te chama pelo seu nome?
— Qualquer dia eu te conto isso, mas não é o momento.
— Tudo bem, eu já aprendi que não devo pressionar.
— Boa garota!
Tayná não esperava por essa frase e isso mexeu com ela, a garota achou estranho uma coisa tão simples mexer com ela, mas por algum motivo quando Alice a elogiou como boa, ela sentiu um sentimento de felicidade genuíno. Ela gosta quando dizem que ela é boa em algo ou simplesmente só boa, só que como tudo que Alice faz, isso teve um efeito maior. Então ela sorriu de maneira genuína.
— Olha, teu sorriso é bonito.
— Obrigada. - Tayná falou envergonhada com o elogio repentino.
— Minha mãe teve que viajar hoje de tarde, então eu já voltei para casa, por isso quando a gente for embora eu já vou levar o Sol, tudo bem?
— Tudo bem.
Tayná se sentou do lado de Alice e pegou a mão dela, sentiu que ela está tremendo um pouco, então ela acariciou a mão da garota de leve e depois fechou os dedos da mão entrelaçando as duas mãos. Alice ficou olhando curiosa sobre o que estava acontecendo.
— Você está bem para andar hoje? - Tayná perguntou.
— Eu acredito que sim, eu consegui chegar aqui sem grandes problemas.
— Mas você está tremendo um pouco ainda. Você não melhorou de sexta ou aconteceu algo mais?
— Eu melhorei, meu remédio fez efeito, é só que ainda está meio difícil porque eu estava com minha mãe.
— Entendi. Ela te deixa ansiosa então?
— Não só ansiosa, mas sim.
— Entendi. Quer ficar segurando a minha mão enquanto a gente anda como sexta? Eu tranco a bicicleta em algum lugar e você carrega a guia do Sol para ficar bem.
— Eu gosto da ideia. Como você sabe lidar com pessoas que nem eu?
— Bem… É um assunto dolorido, mas eu posso te contar.
— Só se você estiver confortável.
Tayná respirou fundo e começou a contar. Ela disse que tinha três irmãos, dois mais velhos e um mais novo que ela. Mas isso foi há três anos. Ela nunca se deu bem com os irmãos mais velhos, principalmente o do meio. Eles sempre falam que ela tem que ser mais doce, mais gentil, mas o irmão mais novo gostava dela do jeito que ela era. Ele era um ano mais novo só, então os dois se davam bem, mas o garoto sempre tremeu muito e ficava ansioso fácil. Não ajudava o jeito que a mãe cobrava tanto dos dois por causa dos exemplares irmãos mais velhos, então o garoto desenvolveu ansiedade e direto ele tinha crise e a mãe brigava falando que era falta de deus ou coisa assim, até que Tayná aprendeu a como fazer o irmão se acalmar e eles passaram a andar de mãos dadas até pela casa. Por um tempo ajudou, mas a mãe decidiu que eles tinham que ser menos colados e passou a afastá-los dizendo coisas maldosas.
Na época, Tayná era uma criança de treze anos, então não tinha como ela saber o que podia acontecer se ela seguisse o que a mãe falava, então ela acabou afastando o irmão mais novo e com isso, teve um dia que ela precisou usar o banheiro social de madrugada, porque o do quarto dela estava reformando e encontrou lá o corpo do irmão mais novo, já sem vida. Até por isso que a mãe tenta maneirar com as próprias atitudes, com medo de perder mais um filho dessa maneira.
Terminando de contar, Tayná olhou para Alice e os olhos dela estão cheios de lágrimas, ela está chorando.
— Ah, não chora, por favor - disse enxugando o rosto de Alice com a manga da mão direita que estava livre.
— Mas… O que você me contou é muito triste, eu sinto muito por isso ter acontecido - soluçou.
— Ah, está tudo bem, já tem uns anos, eu já superei. - Tayná abraçou a amiga.
Sol ficou parado na cesta da bicicleta olhando tudo, então ele pulou da cesta e subiu no colo de Alice e se esfregou nela.
— Ah, meu bebê. - Alice se soltou de Tayná e pegou o gato e se esfregou nele.
— O que a gente vai fazer hoje? - Tayná perguntou.
— Eu não sei, a gente sempre toma sorvete, acho que poderíamos mudar um pouco, eu só não sei o que fazer.
— Tem um lugar que vende bolos aqui perto, é de uma senhora que largou a igreja católica e foi para o candomblé, minha mãe não gosta dela, mas podemos ir lá.
— Tua mãe não vai brigar?
— Só se ela descobrir.
— É melhor não ir, então.
— Vamos, eu gosto do bolo dela, meu pai também, por isso ele me defende quando vou. Vai ser legal, ela é uma boa pessoa.
— Tudo bem, então. Vamos.
Tayná prendeu a bicicleta no bicicletário do parque e depois segurou a mão esquerda de Alice e elas começaram a andar com ela de guia para onde ir. Sol foi acompanhando do lado de Alice como o bom gatinho que ele é, sem dar trabalho.
Chegando no lugar, Alice achou bem diferente, é uma garagem aberta com várias mesinhas e no fundo da garagem um balcão com diversos bolos. Quando as duas garotas chegaram perto, Alice ficou mais surpresa ainda, tem bolos com a bandeira trans, lésbica, pan, entre outras.
— Que linda a tua namorada, Tayná. - A senhora disse.
— Namorada? Não, ela não é minha namorada, nós só somos amigas. - Tayná disse.
— Mas andam de mãos dadas e uma acalma a outra, além de compartilharem algo importante juntas.
— Como a senhora sabe disso tudo? - Alice perguntou.
— Simplesmente sei, minha querida.
— Deixa eu te apresentar ela, dona Maria. Esta é a Alice, uma amiga e a segunda mãe do meu gato, o Sol. A gente encontrou ele juntas.
— Vocês são garotas de sorte, que um espírito guardião as escolheu para proteger. - as palavras de Dona Maria saíram num tom meio misterioso.
— Espírito guardião? - Alice disse confusa.
— Imagino que você vai querer um pedaço desse bolo não é querida? - Dona Maria apontou para o bolo com a bandeira trans.
Alice assentiu de leve com a cabeça, envergonhada de Tayná perceber o que isso significa e com medo dela a odiar por causa disso, como tinha acontecido algumas vezes. Alice recebeu um pedaço de bolo com as cinco faixas de cor da bandeira trans.
— E você, este, né, minha querida? - Dona Maria disse apontando para o bolo com as cores da bandeira lésbica.
— Sim, senhora. A senhora sempre sabe o que eu quero.
Depois de pegarem os bolos, as garotas sentaram na mesa mais perto do balcão por ser mais ao fundo da garagem. As mesas são lindas, são quadradas, tapadas com um pano branco com flores rosas nas pontas, no centro de cada mesa tem um jarro com flores de plástico, fazendo um arranjo multicolorido e tem um apoio triangular rosa de guardanapo. Isso, junto com as várias flores nos cantos da garagem, formam um ambiente confortável.
— Vocês vão querer o que para tomar? - Dona Maria disse perto delas.
— Eu vou querer suco de cajú. - Tayná falou.
— Eu quero o mesmo que ela.
— Já volto com os copinhos com suco para vocês meninas, aproveitem o encontro.
— Isso não é um encontro. - Alice disse meio sem energia para discutir, porque no fundo ela meio que desejava que fosse.
Tayná viu a carinha pensativa de Alice e tentou adivinhar o que ela está pensando, ela começou a achar que dona Maria a deixou desconfortável e que a garota gosta de garotos e por isso está achando ruim ela ter sido entendida como namorada de outra garota.
— Desculpa. - Tayná falou.
— Pelo que?
— Por eu fazer ela entender que você é minha namorada, é que a última vez que eu vim aqui, eu comentei de uma garota que estava interessada, mas isso tem muito tempo já. E já que você gosta de garotos, isso deve ser desconfortável.
— Ah, você está falando isso por causa da minha cara?
— Sim…
— Não se preocupe, eu não estou chateada por ela achar que a gente é namorada, é justamente por não ser.
— Como assim?
— Deixa quieto. E quem disse que eu só gosto de garotos?
— Então você gosta de garotas também? - Isso saiu um pouco mais animado do que o esperado.
— Sim, eu sou pan.
— Ah, meu deuso. Você é LGBT também, eu sou lésbica.
— Eu sei. - Alice disse e apontou para o bolo.
— Por que você escolheu o bolo da bandeira trans?
— Porque ele é bonito.
— Entendi.
Alice está agradecendo aos céus que Tayná é lerda e não pensou que é porque ela é trans, a garota não gosta de falar disso porque a última experiência que teve com gente sabendo foi traumática.
Enquanto isso, Tayná está agradecendo a tudo que é divindade que possa vir a existir que a amiga é pan, porque isso quer dizer que ela tem alguma chance e ela se sentiu aliviada por isso. Só depois que ela percebeu que estava feliz em saber que a garota gosta de garotas também porque ela queria poder ter alguma coisa com ela e começou a se perguntar quando isso começou, ela nunca gostou de alguém tão rápido assim.
As duas deram uma garfada nos próprios bolos em sincronia e levaram na boca. Tayná que já está acostumada com o bolo, ainda ficou feliz de sentir aquele sabor preenchendo a boca dela e Alice que é a primeira vez dela comendo aquele bolo, ficou com os olhos cheios de lágrima porque por algum motivo ela considerou que aquele é o gosto que ser trans tem, ela está surpresa por um bolo conseguir transmitir o gosto de uma experiência e o bolo é muito gostoso, com fundo amargo do chocolate amargo que o compõe, exatamente como ela se sente sobre ser uma garota trans na sociedade atual.
Dona Maria chegou com os sucos e viu que Alice já terminou de comer, enquanto Tayná está comendo devagar olhando para a garota com admiração e um sorriso bobo.
— Aqui os sucos de vocês.
— Obrigada. - As garotas falaram juntas e riram quando perceberam.
— Recebeu uma boa notícia, Tayná?
— Pode se dizer que sim, dona Maria.
— Como? Você não tem internet no celular e não recebeu uma ligação, como pode ter recebido uma boa notícia? - Alice perguntou.
— Você me deu uma boa notícia.
— Dei?
— Você quer mais um bolo, minha querida? - Dona Maria perguntou.
— Sim. - Alice disse.
— O da bandeira pan?
— Exatamente, dona Maria.
Levou menos de um minuto para a senhora voltar com o pedaço de bolo nas cores da bandeira pan para Alice e a garota começou a comer, apreciando o gosto a cada segundo, esse é de morango e mirtilo, fazendo uma mistura de gosto muito boa e ela ficou muito feliz de ter sido apresentada à esse lugar.
— Ei… Você quer fazer disso um encontro como dona Maria falou? - Tayná disse bem baixinho entre os dentes.
Alice olhou para ela com os olhos arregalados e a boca suja de bolo. Tayná vendo isso, pegou um guardanapo e limpou a boca da garota com delicadeza, segurando o rosto dela com a mão que não está usando para limpar.
— Você se suja comendo bolo, isso é fofo.
— Eu entendi certo o que você disse?
— Esquece o que eu disse.
— Por que?
— Porque você é minha amiga e eu não sei o que estava pensando quando disse, me arrependi em seguida.
— Você se arrependeu porque acha que eu vou negar ou porque não quer?
— Porque…
— Sim?
— A gente se conhece só há uma semana, não acho que seria certo.
— Mas essas coisas não servem para as pessoas justamente se conhecerem? E também tem gente que se conhece em um dia e começa a namorar no outro.
— Você tem razão.
— Só que não podemos fazer disso um encontro.
— Por que?
— Porque a gente não se arrumou como se fosse um e nem veio com a mentalidade de um.
— Mas eu me arrumei para você, para ser sincera… - Tayná falou abaixando a cabeça envergonhada.
— Bem, tem mais um motivo, você ainda não sabe o suficiente sobre mim.
— Mas eu quero saber mais…
— Mas eu ainda não me sinto confortável de falar mais.
— Entendi.
Tayná se desanimou e voltou a comer o bolo devagar, Alice sentiu o coração se cortando em mil pedaços. Ela se aproximou devagar e deu um beijo na bochecha de Tayná e se afastou rápido.
— Considere isso minha promessa que a gente vai em um encontro quando eu estiver pronta.
Tayná ficou envergonhada, com cara de tonta e com a mão na bochecha por um longo período de tempo até voltar para a realidade.
As duas garotas conversaram mais um pouco antes de Alice ir para casa com Sol, feliz porque Tayná quer ir em um encontro com ela, mas com medo pelo mesmo motivo. Ela quer mais que tudo se aproximar da garota, mas tem tanto medo dentro dela que acabou negando hoje.
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